A morte no Frankenstein de Mary Shelley
A morte no Frankenstein de Mary Shelley: quando a realidade é mais forte do que a ficção
//Viviane Cristina Cândido*
Os grandes clássicos da literatura são inesgotáveis! Deles podemos nos aproximar de diversas maneiras, fazer diferentes e até mesmo opostas reflexões. Por isso são imortais! Assim é Frankenstein ou O Prometeu moderno, que ganhou espaço em diferentes interpretações para o cinema, assim como, recentemente, a vida da autora Mary Shelley, em filme homônimo (2019).
Para alguns, o filme buscou traduzir a experiência de abandono vivido pela autora, que perdeu a mãe muito cedo, viu seu pai casar-se com outra mulher que não lhe tinha (a ela, Shelley) nenhum afeto, casou-se muito jovem com um homem que não lhe dava atenção e foi traída por sua meia-irmã, que se envolveu com seu marido. A autora ainda viu morrer seus três filhos (ainda que somente a morte de um deles seja retratada pelo filme), o suicídio da ex-esposa do marido e a morte deste aos 29 anos.
Esses fatos explicariam a fala plena de sentimentos de abandono da criatura ao seu criador: “Adeus! Deixo-o e será o último ser humano que meus olhos contemplarão. Adeus, Frankenstein! […] se ainda nutrisses um desejo de vingança contra mim, seria mais bem saciado em minha vida do que em minha destruição”. E, mais adiante: “eu morrerei, e não mais sentirei o que sinto agora. Em breve, essas desgraças candentes estarão acabadas. […] Meu espírito dormirá em paz, ou, se pensar, seguramente não pensará assim. Adeus”.
Mas não estou certa de que essa interpretação alcance a mulher que enfrentou tudo isso e viveu até os 53 anos dedicando-se à criação e educação de seu único filho sobrevivente, esforçando-se em publicar os trabalhos do marido e os próprios romances, bem como lutando, nos seus últimos anos, com a doença, sofrendo com dores de cabeça e crises de paralisia em partes do corpo. Assim, quero propor um outro olhar, quero pensar no enfrentamento da morte, agonia dos viventes.
Frankenstein começa com as cartas que o capitão Robert Walton escreve para a irmã Margaret desde sua embarcação, que ruma para o Polo Norte. Inicialmente, as narrativas falam da solidão de Robert (“Desejo a companhia de um homem que possa identificar-se comigo; cujos olhos respondam aos meus”) e, posteriormente, de seu hóspede Victor Frankenstein, ao qual se afeiçoa como ao amigo esperado, sobre o qual afirma: “Nunca vi uma criatura mais interessante: seus olhos geralmente têm uma expressão de selvageria, até mesmo de loucura, mas há momentos em que, se alguém tem um ato de bondade para com ele ou lhe presta o mais insignificante serviço, seu semblante inteiro se ilumina, como se tocado por um raio de benevolência e doçura como eu nunca vi igual”. E continua: “Mas, geralmente, ele é melancólico e desesperado, e às vezes range os dentes, como se fosse torturado pelo peso das aflições que o oprimem.”
Assim nos é apresentado o criador, o homem que, grato a Walton por salvar-lhe a vida, narra sua história de glória e de desgraças advindas do resultado de seu trabalho: dar a vida a uma criatura. Frankenstein é um homem apaixonado – não por sua família, embora reconheça ter tido uma infância muito feliz, nem por Elizabeth, sua prima, ou Clerval, seu quase irmão, mas pelas ciências naturais, sobre as quais afirma: “foram o gênio que regulou o meu destino”. Victor é obcecado pela ciência, pelo desejo de glória, por mostrar ao pai, aos seus professores e ao mundo seu brilho como cientista. Segundo ele, seus sonhos não são perturbados pela realidade: “A saúde era um assunto inferior, mas que glória não acompanharia a descoberta [do elixir da vida], se pudesse banir a doença do corpo humano e tornasse o homem invulnerável a tudo que não fosse a morte violenta!”. Em sua busca, o que encontra é a desolação oriunda dos rastros deixados pela morte, logo ele, que descrevia seu círculo familiar como um espaço “do qual as preocupações e sofrimentos pareciam banidos para sempre.”
A primeira morte que Victor vivencia mais diretamente – pois, antes, já havia falecido sua tia, mãe de Elizabeth – é a de sua mãe, vitimada pela febre escarlatina: “Ela morreu calmamente, e mesmo na morte seu semblante irradiava afeto. Não preciso descrever os sentimentos daqueles cujos laços mais caros são rompidos pelo mais irreparável dos males, o vazio que se instalou nas almas e o desespero nos semblantes […].” E embora tenha lhe trazido uma melancolia que desconhecia, essa perda também o impulsionou para fora, para a ampliação de horizontes, para a saída de seu lugar. Uma vez em Ingolstadt, afirmava sobre si: “dedicava-me de corpo e alma a algumas descobertas que eu esperava fazer. Ninguém, a não ser aqueles que a experimentaram, pode imaginar a tentação da ciência.” […] “Minha atenção se dirigia aos objetos mais insuportáveis à delicadeza dos sentimentos humanos”. E assim tornou-se capaz de conferir vida à matéria inanimada.
Todavia, diante de sua obra acabada e do horror e asco que sentiu ao vê-la, Victor reconhece que a beleza do sonho desapareceu, e que era “incapaz de suportar o aspecto do ser que havia criado”. Abatido pela fadiga, dorme, sonha e vê Elizabeth em Ingolstadt: “Encantado e surpreso, abracei-a, mas quando depositei o primeiro beijo em seus lábios, eles ficaram lívidos, com a cor da morte; suas feições pareceram mudar, e julguei que segurava em meus braços o cadáver de minha mãe […]”. Nesse ínterim, o personagem toma conhecimento da história de Justine Moritz, que estima como irmã, e cuja mãe, que a desprezava, agora a busca, arrependida depois da morte dos outros filhos.
A partir daí, a história do criador e da criatura se juntam. Ambos são obrigados por suas contingências a olhar para dentro de si, a conviver com a solidão, com o medo, com a não aceitação de si mesmo e dos outros. A criatura verá na morte uma forma de aproximar-se de seu criador, e esse contemplará em desespero o assassinato de seus entes mais queridos pela criatura. Os assassinatos começam com William, irmão mais novo, e arrastam Frankenstein, doente e atormentado, a uma viagem de volta a sua casa. Ao ver a cidade que deixou, afirma: “A paisagem parecia um vasto e obscuro cenário do mal, e previ sombriamente que estava destinado a me tornar o mais infeliz dos seres humanos”. E constata: “em toda a infelicidade que eu vislumbrava e temia, não concebi a centésima parte da angústia que eu estava destinado a suportar”. Em busca do responsável pelos assassinatos, Frankenstein não sabia que essa era uma intuição ainda muito branda perto do que estaria por vir.
O primeiro encontro do criador com a criatura é marcado pelo diálogo desesperado: “Monstro odioso! Demônio que és! As torturas do inferno são um castigo muito brando para teus crimes. Pobre diabo! Reprova-me com tua criação; vem então, para que eu possa extinguir a centelha que tão negligentemente conferi”. Ao que responde a criatura: “Já não sofri o bastante, para que procures aumentar ainda mais a minha infelicidade? A vida, embora seja uma sucessão de angústias, me é muito cara, e eu a defenderei”. E mais adiante: “Lembra-te que sou tua criatura: eu deveria ser o teu Adão, mas sou antes o anjo caído, de quem tiraste a alegria por crime nenhum”. O criador aceita o convite da criatura para segui-la a fim de conhecer sua história, porque “pela primeira vez, também, sentia quais eram os deveres de um criador para com a sua criatura, e que deveria fazê-la feliz antes de reclamar de sua maldade”.
Ao contar a sua história, a criatura narra como chegou a maldizer o criador insensível e sem coração pela experiência vivida de abandono e rejeição e, olhando para Victor, afirma: “Você me dotou de percepção e de paixões, e então me largou para ser objeto de desprezo e horror por parte da humanidade. Mas só de você eu poderia exigir piedade e reparação, e de você eu me determinei a obter aquela justiça que em vão tentei conseguir de qualquer outro ser que tivesse a forma humana”. A reparação que esperava era a criação de uma outra criatura para ser sua companhia.
Uma viagem da família a Londres permite a Frankenstein viver a experiência de morte em vida, sem encontrar nenhum prazer na contemplação do local, na companhia dos amigos e familiares ou em qualquer outra coisa; o máximo que consegue é ver no amigo Clerval a imagem de seu antigo eu. Mais tarde, em uma ilha, nem mesmo a dedicação ao cumprimento de sua promessa (dar vida a outra criatura), que outrora lhe trouxera tão grande satisfação, poderá removê-lo dessa experiência de viver morrendo: “Eu encarava sua conclusão com trêmula e ansiosa esperança, a qual eu não ousava questionar, mas que se mesclava com obscuros pressentimentos de maldade, que faziam meu coração revoltar-se dentro do peito”. Victor decide então não terminar essa última criação, para decepção da criatura.
Frankenstein deixa a ilha numa precária embarcação. Ao narrar a história a Walton, à beira da morte, conclui: “Como são mutáveis os nossos sentimentos, e como é estranho esse amor com que nos apegamos à vida, mesmo em meio ao mais extremo sofrimento!”. E mais adiante, ao narrar a morte de Clerval, assim como a criatura, maldiz a vida: “Por que não morri? Mais infeliz que qualquer homem antes, por que não mergulhei no esquecimento e no repouso eternos? […] Mas estava condenado a viver”.
Não continuarei os relatos daqui para frente, para que você, leitor, que não teve a oportunidade de ler essa obra, vivencie essa experiência com alguma surpresa, outras percepções e sentimentos. Mas, para finalizar esse olhar acerca da morte, vale reproduzir uma última fala de Walton a sua irmã Margaret: “Acabou. Estou regressando à Inglaterra. Perdi as esperanças de ser útil e de alcançar a glória”.
O que aqui propusemos foi um olhar para o criador e sua criatura na perspectiva da morte, tema central para uma filosofia dos viventes e, consequentemente, para uma filosofia das ciências da saúde em geral e da medicina em particular. Se “filosofar é aprender a morrer”, como no título de um dos ensaios do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592), esse aprendizado advém de experiências de viventes – seres humanos reais que, ao contrário do primeiro relato de Frankenstein sobre seu círculo familiar, padecem de preocupações e sofrimentos, como a solidão, experimentada por Walton, pela criatura e, depois de todo o vivido, pelo criador.
Criatura e criador não temem a morte; pelo contrário, a esperam. Para Arthur Schopenhauer (1788-1860), em seu Da morte, “o temor da morte é independente de todo conhecimento”, sobretudo porque “tudo o que nasce já o traz consigo”. Sendo assim, para ele, é desprezível aquele “que se apega sem reservas à vida, insurgindo-se com toda a sua força à proximidade da morte, e se desespera à sua chegada”. E mais adiante: “Se o que faz a morte nos parecer tão assustadora fosse a ideia do não ser, então deveríamos experimentar o mesmo temor diante do tempo em que ainda não éramos”. (2007, p.25;27).
Entre o nascimento e a morte, quando não podemos dizer nada sobre o antes e nada sobre o depois, está a vida. Isso o criador descobrirá à beira da morte, a criatura descobriu ao nascer e Walton descobriu ao ouvir as narrativas de Frankenstein, que afirma: “Já que você [Walton] quer preservar minha narrativa, eu não gostaria que ela chegasse mutilada à posteridade”. Será que mutilar a obra de Mary Shelley seria retirar dela esse olhar sobre a vida e a morte, donde concluímos nossa impotência e nossa pequenez? Frankenstein, lançado ao mar aberto, ainda perguntava sobre o destino da embarcação que lhe poderia salvar a vida. Ainda que fosse pelo medo de deparar-se com a criatura, não seria também uma forma da autora nos indagar acerca do nosso desejo de controle e crença na nossa suficiência – do Homem, da Ciência, da Filosofia, das Ciências da Saúde, da Medicina? Por último, não estaria a sofrida Mary Shelley nos mostrando, por meio da dor de seus personagens, que o sofrimento, que ela tão bem conheceu, é parte da existência, como o entendeu Schopenhauer?
*Escola Paulista de Medicina (EPM), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
MONTAIGNE, Michel de. Que filosofar é aprender a morrer e outros ensaios. São Paulo: L&PM, 2016.
SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte. Metafísica do amor. Do sofrimento do mundo. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2007.
SHELLEY, Mary. Frankenstein, ou O moderno Prometeu. São Paulo: Landmark, 2016.