Livro: Arthur Bispo do Rosário: Arte além da loucura
Arthur Bispo do Rosário, o “louco” perdido em uma “barafunda de objetos” ou o artista laureado por suas obras de arte? Frederico Morais – em “Arthur Bispo do Rosário: Arte além da loucura” – assumiu o desafio de desenredar essa pergunta e desvendar a vida e a obra do homem que vivia em uma situação de quase orfandade de laços e de meios, e que abraçou a missão esquizofrênica de “inventariar” o universo.
//Vevila Junqueira
Como um personagem marginalizado, reduzido em sua ficha médica, em 1939, a uma conjunção de sete características – “negro, solteiro, naturalidade desconhecida, alfabetizado, sem parentes, antecedentes policiais, esquizofrenia paranoide” – passou a ser visto algumas décadas depois como um dos fenômenos contemporâneos mais interessantes e complexos da arte brasileira?
Esta é a indagação que conduz “Arthur Bispo do Rosário: Arte além da loucura” (296 págs., Nau Editora, 2013, R$ 148,00), livro assinado pelo crítico Frederico Morais, com organização e prefácio da psicanalista Flavia Corpas. Juntos, assumem a tarefa de tirar do confinamento a história, a biografia e as obras retidas por 44 anos em uma “cela-ateliê” e libertar Bispo do Rosário “do estigma da doença e da camisa-de-força institucional” – como expressa Hugo Denizart, psicanalista e fotógrafo, autor do documentário “O prisioneiro da passagem”, um dos primeiros registros sobre Bispo.
Desde a década de 1980, Morais assumiu o desafio de dar conta da complexidade do que esse artista representava e compreender as duas forças digladiantes que conformaram toda a sua vida: a segregação pela doença mental e o impulso de uma participação ativa no mundo através da arte, capaz de provocar intensos debates políticos, estéticos e conceituais. Essas duas forças se confrontaram durante toda a existência do artista até a sua morte.
Afinal, que marcas essas forças deixaram e por que elas merecem ser objeto de reflexão da sociedade?
BISPO E SUAS FORÇAS DIGLADIANTES
O ano de 1938 foi um marco. Às vésperas do Natal, um surto psicótico significou uma reviravolta que imprimiu marcas definitivas na biografia de Arthur Bispo do Rosário. Após imediata internação no Hospital Nacional de Alienados da Urca, foi removido, em janeiro de 1939, para a Colônia Juliano Moreira.
Até então, atuava pacatamente como uma espécie de faz–tudo para uma tradicional família carioca. Mas, daquele ponto em diante, o confinamento deu um novo e radical rumo à sua vida: representou a institucionalização de sua doença mental e a segregação que perdurou até a sua morte.
O livro conta as repercussões do isolamento e do impulso artístico na vida de Bispo. Apesar do interesse e da curiosidade que suas obras atraíam, foram necessárias décadas até que elas fossem desvendadas e tratadas como algo além de “trabalhos manuais”. Isso aconteceu por três fatores, principalmente: a segregação social à qual Arthur Bispo do Rosário estava sujeito (por conta de sua doença psiquiátrica), o estado de suspeita sobre sua legitimidade artística e as barreiras que ele próprio impunha ao acesso à sua obra.
Por empenho de Morais, a partir de 1982, a reclusão artística de Bispo começou a ser testada. A exposição “À margem da vida”, idealizada e realizada pelo crítico, apresentou pela primeira vez o artista ao mundo. A primeira individual de Bispo do Rosário, intitulada Registros de minha passagem pela Terra, só foi inaugurada no Rio de Janeiro em 1989, ano de sua morte. Segundo Frederico Morais:
“Enquanto viveu, Bispo do Rosário protegeu sua obra como quem protege um bem precioso, um tesouro, dificultando ao máximo o acesso a ela e recusando-se a exibi-la. Em 1982, com a realização da mostra ‘À margem da vida’, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, alguns estandartes puderam ser vistos pela primeira vez fora da Colônia. Com sua morte, em 1989, o próprio ateliê-cela de Bispo do Rosário pôde ser adentrado e alguns enigmas começaram a ser desvendados”.
O compromisso de Morais de desvendar Bispo do Rosário extravasou e muito a idealização e a realização de exposições. Em sua função de crítico, não apenas documentou e catalogou, mas ampliou a rede de significados de suas obras. Nesse sentido, o livro oferece perspectivas ricas para a análise do artista. A concepção de que o reconhecimento artístico de Bispo pressupôs uma luta simbólica contra o confinamento e contra as amarras institucionais a que estava sujeito, é um deles, como destaca Frederico.
“Arthur Bispo do Rosário (…) desconstruíra dois emblemas poderosos da instituição manicomial – o uniforme azul do qual arrancava o fio com que teceria sua obra, e as celas da prisão, transformadas em seu ateliê de artista”.
Apesar de apresentado ao mundo em 1982, a reclusão física perdurou até a sua morte, tempo em que não foi possível concluir a “tarefa ingente de inventariar o universo” (leia ao lado). Apesar de “inconcluso”, o legado deixado por Bispo foi capaz de imprimir marcas defi nitivas na história da arte.
OS ELEMENTOS DO LIVRO
A história de um negro sergipano-carioca a partir dos elementos mais básicos que constituíram a sua identidade. Morais transita por este labirinto a partir de depoimentos dos que conviveram com o artista e pistas encontradas em um acervo artístico quase intocado de 1938 (ano do primeiro confinamento de Bispo) a 1982 (ano em que Frederico organizou a exposição que apresentou pela primeira vez Bispo ao mundo).
Bispo nunca falava de sua família ou origem, mas descobriu-se que nasceu em Japaratuba, Sergipe, em 16 de março de 1911, filho de Adriano Bispo de Jesus, carpinteiro, e Blandina Francisca de Jesus. Praticamente nada se sabia até o ingresso dele na Escola Aprendizes Marinheiros de Sergipe, em 23 de fevereiro de 1925, que precedeu sua chegada ao Rio de Janeiro, no ano seguinte, com apenas 14 anos. A partir daí encontram-se registros (ainda que imprecisos) de sua admissão na Light & Power, seu vínculo com a família Leone, sua incursão como garimpeiro de ouro, sua trajetória como pugilista. A partir desses dados, Morais desvenda os aspectos mais particulares de sua vida.
Uma parte significativa do livro é marcada pelo resgate histórico da vida de Bispo, enriquecido pela apresentação do contexto brasileiro da época e de relatos sobre as condições gerais das instituições manicomiais, além da cronologia do despertar de Morais por Bispo – que começou precisamente no dia 18 de maio de 1980 ao assistir uma reportagem do Fantástico que mostrava o estado em que viviam os internos. Assim relata o crítico:
“Mas o que despertou minha atenção, na reportagem, foi a figura de um homem negro, já desgastado pela idade e pela doença, sozinho em meio a uma barafunda de objetos os mais variados, bordando palavras, nomes, datas, imagens. (…) E de repente intuí que estava ali, diante da câmera, alguém que lutava contra o esquecimento, alguém que queria narrar sua história de vida e assim carimbar sua identidade”.
Nas partes seguintes – também marcadas por reflexões sobre o conceito de arte e sobre a legitimidade da arte produzida por Bispo do Rosário –, Morais faz uma análise crítica das obras de Bispo e escreve um verdadeiro tratado desmistificando a arte e a loucura na forma de uma seção de perguntas e respostas. Todo esse conjunto (biografia, análise crítica, seção de perguntas e respostas) é ilustrado por mais de 30 imagens jornalísticas e documentais.
Na última parte, as obras de arte comentadas podem ser conhecidas. São mais de 70 imagens do acervo artístico de Bispo, algumas delas referenciais como “Estandarte Colônia Juliano Moreira”, “Navios de Guerra” e “Vós habitantes do planeta Terra, eu apresento suas nações”, além do “Manto do Reconhecimento” – “a roupa que o identificaria no momento em que se apresentasse a Deus” –, “Partida de Xadrez com Rosangela Maria”, e muitas outras.
PRIMEIRAS IMPRESSÕES DO CARÁTER ARTÍSTICO
Em uma das incursões sobre a biografia de Bispo, Morais destaca um relato de 1961 digno de nota para se compreender o processo em que o “paciente exótico” começa a ser gradualmente suprimido pelo artista que começava a despontar.
Naquele ano, em uma de suas liberdades “tutoradas”, Bispo do Rosário prestou serviços na Assistência Médica Infantil de Urgência (AMIU), onde sua arte começou a ser notada pelo pediatra Avany Bonfim:
“Espantei–me com o sem–número de miniaturas que ele fabricara em seu isolamento esquizofrênico. Eram navios de guerra, automóveis, galardões, mantos, estes em veludo, policromicamente bordados à mão. Vi também dois ou três caixotes cheios de plaquetas de flandres, que ele recortava das latas de leite em pó. Tais plaquetas eram picotadas a prego, contendo os nomes das pessoas que ele conhecia. (…) Nos caibros ele armazenava os carretéis e demais apetrechos do seu artesanato misterioso que ele exerceu na clínica por quatro anos”.
Nesse período breve de liberdade tutorada pela família Leone – cujos membros acolheram Bispo a partir de 1937 por quase três décadas –, alguns incidentes relacionados à sua religiosidade se intensificaram e obrigaram uma nova internação. Naquela época – Bispo já tinha 50 anos – a logística da mudança revelou um “acervo” artístico que começava a se consolidar. Assim relata o pediatra Avany Bonfim:
“Tivemos que fretar um caminhão para transportar toda a produção armazenada no sótão. (…) E lá se foi o Bispo com as plaquetas, as miniaturas, os mantos bordados. Visitei–o uma vez na Colônia Juliano Moreira. Perguntou por todos. Continuava em sua confecção artesanal”.
MISSÃO: CATALOGAR O MUNDO
No surto às vésperas do Natal de 1938, Bispo do Rosário, viu-se a si mesmo como Jesus, o filho de Deus. Encarnou também a figura de São José. O desdobramento mais importante desta convicção paranoide foi a missão que Bispo do Rosário assumiu, a partir de 1967, de representar tudo o que existia na terra. Foram anos trancafiado, obcecado pela palavra e por objetos portáteis e estandartes que aos poucos passaram a ocupar um complexo de 11 celas- -ateliês por ele “usucapidas”. Segundo Morais:
“E deu início à sua missão. Duríssima, pois sendo um só homem, um homem só, na metade do caminho de sua vida, e tendo como única ferramenta de trabalho, ou ferramenta-mor, suas duas mãos, precisava representar tudo o que existia na Terra (…), enfim tudo o que ele já vira ou apenas sabia existir”.
Além da utopia da missão, Morais destaca que o compromisso de Bispo com essa tarefa resultava mais em uma sensação de responsabilidade do que de prazer. Segundo relato do próprio Bispo enquanto estava sendo filmado por Denizart:
“Não, não é uma glória […]. Eu escuto a voz e a voz me obriga a fazer tudo isso […]. Se pudesse eu não faria nada disso”.
Mas o artista estava convicto de seu caráter divino, talvez daí tenha vindo a força para se dedicar a essa missão. Questionado se iria se transformar em Jesus Cristo, Bispo enfatizou ao documentarista:
“[…] rapaz, você está falando com ele. […] Mas para quem enxerga. Para quem não enxerga, não dá pé”.
Flavia Corpas resignifica esse comentário mencionando o poder que a habilidade de enxergar além do convencional tem de revelar aspectos que passariam por banais. Poderia ter sido o caso da “barafunda de objetos” de Bispo do Rosário, não fosse a habilidade de Morais e outras pessoas sensíveis que ajudaram a inserir definitivamente Arthur Bispo do Rosário na história da arte. Diz Flavia:
“Ao postular que a função da arte é nos colocar diante do mundo como que pela primeira vez, o crítico atribui aos artistas a potência inventiva de deslocar as coisas de seus ‘devidos’ lugares, tornando–as, assim, ‘visíveis sob outros aspectos’. Não é de se surpreender, então, que Morais tenha visto em Bispo do Rosário aquilo que antes ninguém havia enxergado: seus objetos como obras de arte. Não posso, diante da frase que acabei de escrever, deixar de pensar nas palavras do próprio Bispo do Rosário: ‘Mas pra quem enxerga. Pra quem não enxerga não dá pé’.”
Fonte: Medicina CFM Revista de humanidades médicas SET/DEZ 2013 Pág. 90