John Locke médico: a relação entre a filosofia e sua prática médica
// Antônio Carlos dos Santos e Henrique Batista e Silva
RESUMO: O objetivo deste texto é investigar um aspecto pouco conhecido da obra de John Locke: a relação entre a filosofia e a sua prática médica. Este tema se justifica porque a sua concepção filosófica é largamente conhecida, mas seus estudos na área de medicina são, no Brasil, praticamente ignorados. Para levarmos a cabo tal tarefa, o artigo está dividido em três partes: na primeira, abordaremos o debate em torno da prática médica inglesa no século xvii; na segunda, o pendor de Locke pela medicina e, finalmente, na terceira, a prática médica de Locke. Esperamos que o presente texto possa colaborar com o avanço de pesquisas sobre John Locke no Brasil, especialmente na sua relação com a medicina.
palavras-chave: Locke; medicina; filosofia.
INTRODUÇÃO:
O objetivo deste artigo é contribuir com o debate sobre John Locke (1632- 1704) médico, aspecto importante da sua vida profissional, esmaecido por sua monumental obra filosófica. O fato é que o autor do Ensaio Acerca do Entendimento Humano (Locke, 1978) se dedicou à medicina antes mesmo da filosofia. Ele não só a praticou como produziu textos sobre a área. Essa fase de sua produção, no entanto, não só é excluída do seu cânone filosófico como é tida como de menor valor, não passando de arroubos das “paixões intelectuais” juvenis (Rogers, 2007, p. 9). Ao abandonar essa parte da vida e da obra de Locke, a literatura especializada nesse pensador tem deixado de compreender a fecundidade da relação entre a filosofia e a medicina no século XVII inglês. Uma leitura atenta desses textos conduz o seu leitor a alguns questionamentos que podem ser divididos em duas frentes. Na primeira, a relação entre o seu pensamento filosófico e a sua produção intelectual envolvendo a medicina: por que essa fase da vida e da produção de Locke é tão pouco analisada? O conhecimento filosófico de Locke estaria tão distante de sua prática médica? Na segunda perspectiva, as questões se voltam para a sua concepção propriamente dita de medicina: como a concebia? Que tipo de medicina ele realmente exerceu? Instigado por estes questionamentos, buscaremos fundamentar este trabalho em três partes: na primeira, abordaremos o debate em torno da prática médica inglesa no século XVII; na segunda, o pendor de Locke pela medicina e, finalmente, na terceira, a prática médica de Locke. Esperamos que o presente texto possa colaborar com o avanço de pesquisas sobre John Locke no Brasil, especialmente na sua relação com a medicina.
No entanto, antes de entrarmos propriamente no texto, precisamos deixar clara uma precisão conceitual e metodológica: a estreita relação entre a filosofia e a medicina que, desde os antigos gregos, denotavam o seu vínculo. Segundo Jaeger, “A Medicina jamais teria chegado à ciência sem as investigações dos primeiros filósofos jônicos da natureza, que procuravam uma explicação natural para todos os fenômenos, sem a sua tendência a reduzir todo o efeito a uma causa e a comprovar na relação de causa a efeito a existência de uma ordem geral e necessária, e sem a sua fé inquebrantável em chegarem a descobrir a chave de todos os mistérios do mundo, pela observação imparcial das coisas e a força do conhecimento racional (2001, p. 999).”
Isso implica dizer que a medicina surgiu irmanada com a filosofia dos antigos tempos gregos, numa íntima e fecunda relação epistemológica; sua legitimidade estava embasada no empirismo dos médicos e na metafísica dos filósofos em que tudo se explicava no campo das relações entre o físico e o metafísico. A importância da medicina deu-se em razão da cultura grega estar orientada tanto para a formação do corpo como do espírito. Mesmo tendo campos distintos e se diferenciado em suas origens, a medicina, bem como a filosofia, representa fértil campo de questionamentos e reflexões diante dos dilemas existenciais da humanidade. Em outras palavras: se a medicina está mais voltada para os conhecimentos biológicos e medicais, a filosofia se volta para a especulação e reflexão desses mesmos aspectos práticos. Sob esta perspectiva, elas não estiveram tão distantes quanto se imagina.
Além do mais, às portas da Modernidade, a separação entre a filosofia e a ciência não era tão evidente. No caso específico da medicina, ela estava inserida naquilo que à época denominava-se Filosofia Natural (philosophia naturalis) ou saber da natureza. Na época em que Locke viveu, havia uma longa tradição de médicos-filósofos e filósofos-médicos que remontava a Aristóteles (384-322 a.c.), Galeno (129-204), Albucassis (938-1013), Avicena (980-1137), Avensoar (1091-1162), Averróis (1126-1198) e Maimónides (1138-1204), dentre outros. Essa herança era embasada na doutrina aristotélica que se ocupava em compreender os fenômenos naturais e suas causas em dimensão epistemológica e ontológica.
Contudo, no século xvii inglês, teve início um movimento contestador e transformador do pensamento aristotélico por uma nova visão de conhecimento experimental. Certamente o pensamento de Francis Bacon (1561-1626) foi fundamental para a gênese da “medicina moderna”, da qual Locke é um dos mais fiéis herdeiros. Afastando-se de concepções aristotélicas, apontava para um novo modo de pensar (a Filosofia Experimental), provocando um estatuto mais corporificado da matéria em seus respectivos conceitos de forma, textura e atividade. Esta concepção de filosofia não era muito diferente da medicina, uma vez que ela se caracterizará pelo seu caráter de saber prático e experimental. Filosofia e medicina neste período, portanto, não estavam estanques (cf. Crignon, 2020).
A PRÁTICA MÉDICA INGLESA NO SÉCULO XVII
Sabemos que, na época de Locke, o conhecimento das disciplinas médicas estava avançando, notadamente em anatomia, com a obra de Vesalius (2002)1, ao lado dos experimentos iniciais de fisiologia humana, afastando-se da forte influência do aristotelismo revisitado pelos médicos árabes e do galenismo2 assimilado pela metafísica aristotélico-tomista.
Para contextualizar o interesse crescente pela medicina, há de considerar que havia dois movimentos no século XVII que, em termos gerais, se opunham. De um lado, a iatrofísica, decorrente do cartesianismo, que concebia o organismo humano sujeito apenas às leis da física, semelhante ao mecanismo de um relógio; o homem dissecável nos anfiteatros de anatomia e nos laboratórios de fisiologia. De outro, a iatroquímica, baseada no humorismo de Paracelso3, Sylvius4, e de Van Helmont5 que, em terreno oposto, afirmava de modo peremptório que o organismo humano não seria mais do que um compartimento onde reações químicas se processavam. Em que pese os dois modelos conterem verdades para traçar novas vias de desenvolvimento da medicina, reagindo contra os exageros da elaboração metafísica e as discussões do galenismo, ambos se encontravam estagnados por conta do unilateralismo dos oponentes.
Predominava no pensamento filosófico uma clara convicção da possibilidade de se definir a priori a noção de matéria e substância em toda sua extensão. Entretanto, pensadores como Francis Bacon, René Descartes, Robert Boyle e Thomas Willis apontavam para os limites desse conhecimento metafísico, propondo outra forma de repensar o tema na
Francis Bacon (1561-1626), ao estabelecer novas bases para elaborar o conhecimento, contribuiu para o avanço da ciência e, em decorrência disso, para modificar o modo de conceber a medicina. Em sua obra, Of the Proficience and Advancement of Learning, Divine and Human (2006), publicada em 1605, Bacon esclarece a necessidade de intervenção na Natureza como o melhor caminho para explorar suas possibilidades de desenvolvimento científico; defende ainda a ideia de que esse avanço depende de determinados fatores: a conjunção de esforços, a colaboração de diferentes grupos de trabalho e o desenvolvimento de instrumentos. Demonstrando seu inconformismo com as limitações filosóficas da época, ao apontar os obstáculos, ele revela também as condições de removê-los. Descontente com o aristotelismo e com as limitações da Filosofia Natural, defende a base fundamental para os novos rumos do conhecimento:
Mas se minha opinião tem alguma valia, a utilidade da história mecânica é, dentre todas as outras, a mais primordial e fundamental para a Filosofia Natural; essa Filosofia não deve desaparecer nas brumas de uma especulação sutil, sublime ou deleitosa, mas ser operante para o enriquecimento e benefício da vida humana. Não apenas indicará e sugerirá para o presente muitas práticas engenhosas em todos os ofícios, conectando e transferindo as ob- servações de uma arte para o uso de outra quando as experiências de diversas técnicas forem abraçadas pela mente de um só homem, como ainda fornecerá mais luzes a respeito das causas e axiomas do que jamais se conseguiu até agora (bacon, 2006, p. 87).
Essa assertiva baconiana pode nos auxiliar a compreender seu referencial filosófico com ênfase no entendimento de que a ciência deve se destinar ao bem estar do ser humano. Bacon, ao reconhecer os limites do conhecimento humano para compreender a essência dos fenômenos da natureza a priori, expõe um conjunto de recursos e instrumentos que possibilite ao homem descortinar novos saberes, conforme formulados na sua obra Novum Organun, de 1620. Defende o inglês:
Aforismo I– “O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fa- tos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais”.
Aforismo II – “Nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos regulam e ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precavêm” (bacon, 1984, p. 13).
René Descartes (1596-1650) procura explicar os movimentos orgânicos do ser humano e suas doenças pelas leis da mecânica. Suas concepções filosóficas, opondo o mundo da matéria ao mundo do espírito, exerceram grande influência no pensamento médico. Além do Discurso sobre o Método, as obras Tratado da Luz e Tratado do Homem constituem, em seu conjunto, um tratado de fisiologia, pois explicam o funcionamento do corpo como um mecanismo. Esses elementos fundantes podem ser encontrados também na obra A Descrição do Corpo Humano. Mas é no Tratado das Paixões que o autor apresenta sua concepção do organismo humano com propostas inovadoras em um projeto que visava superar a prática médica existente baseada na anatomia de Galeno. Neste sentido, Descartes pode ser compreendido como um filósofo com preocupações médicas que buscava superar as concepções aristotélicas do homem; ao conjecturar que tudo no corpo é movimento e que esse movimento se exprime por meio da matemática, pode ser também identificado como o criador do materialismo médico (cf. marques, 1993).
A iatroquímica, por sua vez, teve seus mais influentes representantes ingleses em Robert Boyle e Thomas Willis que, em oposição ao funcionamento do organismo como um relógio, defendiam que a vida nada mais seria do que um conjunto de processos e reações químicas; o corpo humano funcionaria em compartimentos nos quais esses fenômenos se processavam. Importante ressaltar que as correntes das duas concepções da prática médica se debatiam em discussões intermináveis, ambas entendendo as doenças como resultados de seus desequilíbrios (cf. gomes, 1953).
Robert Boyle (1627-1691), nas duas obras, Ensaio do nitro (1966, Essay on nitre) de 1661 e o Origem das formas e qualidades (1982, The origin of forms and qualities) de 1666, propõe “construir uma história experimental delas”, referindo-se às substâncias em sua forma, textura e atividade; um modelo que se afasta das elucubrações metafisicas e das sutilezas lógicas do estudo da natureza. Segundo Zaterka (2012, p. 16), ao demonstrar que o nitro (nitrato de potássio) pode ser deposto pelo fogo em nitro fixo (carbonato de potássio) e espírito de nitro (ácido nítrico) e que, depois, pela simples reunião desses componentes, era possível refazer a substância original, ele descartara a teoria aristotélica em que a forma do nitro seria completamente destruída, não podendo ser decomposta. Logo, o aristotelismo não conduzia à descoberta de novos conhecimentos, porque se restringia a processos circulares inúteis e incapazes de explicar, de fato, a natureza das formas e sua conexão com a ideia de substância. Deste modo, ele elabora e desenvolve uma concepção de filosofia a posteriori, experimental e operativa, em que o processo científico é mais importante do que a possibilidade de se atingir as verdades absolutas a priori; o raciocínio se restringia ao âmbito de existências e não de essências. Referindo-se à medicina, Boyle consegue sintetizar os benefícios e proveitos da filosofia experimental. Nas palavras de Zaterka: “Pela decomposição dos corpos, libertando suas partes mais ativas, (…) alterando a textura inicial das produções da natureza ou presenteando-nos com novos concretos de novas texturas (…) deve necessariamente surgir um depósito de medicamentos novos e ativos que com grande probabilidade serão dotados com tais virtudes que não encontramos nos medicamentos comuns (Zaterka, 2012, p. 20).”
É nesse sentido que devemos compreender a sua Filosofia Experimental, pois Boyle trabalha com a hipótese corpuscular da matéria. Desse delineamento, parece que o autor consegue, então, aderir a um corpuscularismo mecânico, operando, porém, com uma conceituação ativa de matéria, tão cara ao projeto baconiano de ciência. Devemos atentar que existe uma concatenação das ideias de Bacon com as perquirições de Boyle na perspectiva da matéria composta por corpúsculos encontrados na natureza, formados pela forte adesão de partículas mais simples. São esses compostos os responsáveis pelas qualidades e propriedades dos corpos materiais.
Thomas Willis (1621-1675), médico e professor Sedleian de Filosofia Natural em Oxford, investigava a natureza para construção do conhecimento abandonando as opiniões dos pensadores clássicos. Pesquisando a química das substâncias, durante a década de 1650, Willis desenvolveu novas técnicas experimentais – conservantes, microscópicos e injeções. Ele fazia parte de um grupo de estudiosos (virtuosi6), denominado de “Círculo de Oxford” ou Clube Experimental de Filosofia, instituído por John Wilkins (1614-1672). Era composto por uma dezena de sábios dos quais faziam parte Robert Boyle, David Thomas e John Locke. Incorporando os preceitos de Bacon, Willis abandonou as opiniões dos antigos autores, cuidando de registrar os dados de suas investigações necroscópicas. Nesse trabalho, cruzando os registros com os achados clínicos dos seus pacientes, especialmente os quadros das epidemias de febres, procurava explicar os resultados obtidos em termos de causa e efeito (monducci, 2010, p. 16).
Segundo Brown (1970, p. 17), o trabalho conjunto de Willis e Boyle, cujos experimentos indicavam que os corpúsculos interagiam entre si para formar novos compostos químicos, possibilitou a Willis publicar, em 1659, seu primeiro trabalho, intitulado Diatribes Due Medico-Philosophica. Nesse livro, buscava explicar a origem das febres, não obstante o carácter paradoxal, ao preservar os métodos terapêuticos do antigo modelo humoral das doenças. Mesmo assim, na esfera da clínica, Willis merece ser referenciado pelo seu labor em distinguir o caráter contínuo ou intermitente das febres e por ter conseguido elaborar uma classificação das doenças.
Com a publicação em 1664 do seu mais famoso livro, o Cerebri Anatome cui accessit Nervorum Descriptio et usus, onde consta o famoso desenho (feito pelo arquiteto Christopher Wren) das artérias da base do crânio, conhecido como “polígono de Willis”, ele apresentou um olhar inovador no estudo da anatomia. Fazendo comparações anatômicas entre vertebrados e invertebrados, ele detalha o funcionamento do cérebro como centro-sede das funções corporais e da alma humana. Com isso, ele negava a Filosofia Natural que conciliava a filosofia de Aristóteles com a anatomia e fisiologia humorista de Galeno. Prevalecia, no ensino da medicina, a concepção galênica de que a alma era tríplice: alma desiderativa no fígado encarregada das funções vegetativas; alma irascível alojada no coração, ocupada em vivificar o corpo; e alma racional, localizada no cérebro que promoveria a sensibilidade, o movimento e o pensamento (Monducci, 2010, p. 11).
Em 1672, Willis publicou De Anima Brutorum Quæ Hominis Vitalis ac Sensitiva Est. Trata-se do livro de anatomia do sistema nervoso em que o tema central é a mente, ou, na expressão de Willis, a alma racional dos homens, no qual ele propunha uma teoria para explicar as funções da alma à luz da anatomia cerebral, em oposição aos ensinamentos de Galeno. Seus estudos o levaram a propor que eram o cérebro e os nervos os órgãos os mais importantes do corpo. Com esse intuito, buscava uma explicação para a alma e suas perturbações; advogava que os comportamentos instintivos e os hábitos pertenceriam a uma alma corporal ou alma dos animais. Entretanto, com receio de ser apontado como ateu, não abdicava de uma explicação metafisica para se esquivar de conflitos com as autoridades eclesiásticas, razão pela qual concebeu a existência de uma alma racional, imaterial e imortal, dádiva de Deus. Sua explicação metafisica para solucionar os problemas causados pelas diferenças entre funções corporais e funções mentais gerou polêmica, porque diligenciava desvelar “o lugar secreto da Mente do Homem, e olhar para a Capela viva da Divindade”, conforme sua dedicatória ao Arcebispo de Canterbury, Gilbert Sheldon. Ele estava adentrando questões que geravam ásperas discussões entre a religião e a ciência, em uma nação ainda envolvida em convulsões sociais (Monducci, 2010, p. 43).
William Harvey (1578-1657), outro pesquisador que se indispôs fortemente contra a anatomia galênica, fortaleceu o movimento da iatrofísica com a descoberta em 1628 da circulação sanguínea defendida em seu livro Exercitatio de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus. Essa publicação de 72 páginas de comprovação anatômica mudou radicalmente a concepção da fisiologia circulatória e consolidou o método experimental na medicina, possibilitando a descoberta de novos instrumentos de precisão. Suas obras posteriores preconizavam uma abordagem experimental das questões anatômicas e fisiológicas por intermédio de dissecações (necropsias) humanas e de animais para compreender o funcionamento do corpo e das doenças. Demonstrando conclusivamente que o sangue se move em círculos, ele demarca o final da velha tradição e o início de nova era do conhecimento médico. Mais tarde, diria a Boyle que foi o estudo da anatomia das válvulas venosas que aprendeu com Fabbricio D’Acquapendente8, quando foi seu assistente em 1597, que o induziu a pensar na circulação do sangue (cf. Osler, 1913).
Nesse cenário de contradições, insurgia-se o médico Thomas Sydenham (1624-1689) contra a prática médica vigente. Sem formação acadêmica tradicional, preconizava a necessidade de os médicos retornarem à observação clínica hipocrática. Contrapondo-se aos raciocínios metafísicos e às prescrições galênicas, praticava a medicina pelo método da observação cuidadosa dos doentes e do processo evolutivo das doenças.
Payne considera que Sydenham foi o grande reformador da prática médica, um autêntico seguidor das ideias de Bacon e de seu amigo Boyle (Payne, 1900). Nesta mesma perspectiva, Osler9 sustenta que Sydenham defendeu a retomada de Hipócrates10 e da natureza pelos médicos a fim de estabelecer a proposição fundamental de que toda doença deveria ser descrita como uma história natural. Para justificar tal ideia, Osler cita John Brown, médico de reconhecido prestígio no período: “Em meio a uma massa de erros e preconceitos, de teorias ativamente maliciosas; numa época em que a mania de hipóteses estava no auge, ele se firmou enquanto a parte prática de sua arte era invadida e estancada por vil e tola panaceia” (Osler, 1913, p. 164, tradução nossa).
Robert Brady, Professor Régio de Medicina da Universidade de Cambridge, defendia Sydenham das críticas dos seus opositores. Em carta de 30 de fevereiro de 1679, ele o incentivava a continuar suas observações sobre as febres de Londres (cf. gomes, 1953). Em resposta de agradecimento, Sydenham revelava seu método de praticar a medicina: “Eu devo limitar a função do médico na investigação cuidadosa da história da doença e no efeito dos remédios mostrado pelo único professor – experiência; atenção somente dirigida para aquele método correto da razão baseada no senso comum e não na dita especulação” (Latham, 1848, p. 247, tradução nossa).
Osler reproduziu em seu livro a narrativa de Sydenham ao comentar a natureza das doenças:
Então, como escrito, a história natural das doenças, em que cada mera hipótese filosófica deve ser descartada, o fenômeno deve ser anotado com extrema exatidão em seus detalhes, até em minutos. A necessidade desse procedimento não deve ser negligenciada, do mesmo modo que se comparando com as sutis interrogações e traços insignificantes dos modernos escritores, por menor que seja; não é desta maneira que são descobertos novos medicamentos e as causas das doenças são percebidas como sintomas peculiares? Hipócrates ficou conhecido como o pai da medicina seguindo ess- es passos, sua teoria sendo uma exata descrição da natureza, onde encontrou a cura das doenças com remédios simples ou mesmo sem eles (1991, p. 164, tradução nossa).
Entretanto, em que pese a aprovação de muitos médicos importantes, Sydenham recebia críticas pelo seu trabalho inovador; uma das mais veementes foi a do dr. Henry Stubbe (1632-1676) (payne, 1900, p. 126), médico e ex-tutor de Locke. Polemista, ao mesmo tempo que atacava a Filosofia Experimental (apoiador de Thomas Hobbes na sua disputa com John Wallis), ele se apresentava como médico empirista, mantendo forte correspondência com Boyle. Uma das suas acusações favoritas era afirmar a existência de uma trama secreta dos membros da Royal Society of Phisicians visando desestabilizar a ordem religiosa e política, bem como a organização das universidades (Crigton, 2016, p. 478).
Durante os anos de 1659 e 1660, conforme registros biográficos escritos por Frédéric Picard, Sydenham cursou medicina na Universidade de Montpellier; foi aluno de Charles Barbeyrac, Doctor of Medicine, que ministrava aulas particulares para médicos. Barbeyrac se destacava também pelo fato de ensinar novas ideias sobre doenças, fora dos padrões da medicina vigente. Payne (1900, p. 95) relata que consultou o livro Dissertations sur les Maladies escrito por Barbeyrac, mas não encontrou correlação de palavras ou ideias nos trabalhos de Sydenham, além de uma referência sobre tratamento de esfriamento. Importante salientar que a Universidade de Montpellier era considerada o centro dos estudos de Hipócrates, enquanto a Universidade de Paris concentrava seus ensinos em Galeno.11
Presume-se que Sydenham iniciou sua prática médica em Londres em 1661, depois de retornar da França, ainda sem permissão legal, como alguns médicos naquela época a praticavam; somente conseguiu a licenciatura de Bachelor of Medicine em 25 de junho de 1663, pela Universidade de Oxford. O grau de Doctor of Medicine lhe foi concedido pela Universidade de Cambrigde, em 1676, mas nunca alcançou o grau de Fellow do Royal College of Physicians. O estudo favorito de Sydenham era o grupo das doenças febris de grande prevalência na época. Foi sobre esse tema que escreveu seu primeiro livro12, em 1666, Thomas Sydenham’s method of treating fevers, based upon his own observation. Esse livro teve grande impacto na medicina por descrever valiosas observações das doenças epidêmicas de Londres durante os anos de 1661 a 1675. Escrito em latim, foi dedicado a Robert Boyle, que aprovava seu método de trabalho e em diversas vezes o acompanhava no atendimento de seus pacientes. Fato significativo foi Robert Boyle o ter admitido no seu grupo de trabalho, “os virtuosos” de Oxford. Na segunda edição do livro, de 1668, Locke escreveu um poema como prefácio. As edições revisadas de 1685 (Strasbourg e Gênova) foram dedicadas ao Dr. John Mapletoft (1631-1721), médico e filósofo, professor da Gresham College em Londres (cf. woolhouse, 2007). Segundo Crignon (2016, p. 472), foi Mapletoft quem traduziu os trabalhos de Sydenham para o latim e se encarregou de publicá-los. Amigo comum de Sydenham e de Locke, ele foi o responsável, em 1668, pelo encontro que se tornaria profícuo na vida dos dois médicos. Essa amizade permaneceu até a morte de Sydenham, e sobre essa associação podemos interrogar até que ponto houve influência de um sobre o trabalho do outro. Alguns historiadores dizem que Sydenham foi aluno de Locke em filosofia; mas nada há que possa afirmá-lo, haja vista que não existem traços dos trabalhos de Sydenham nos textos de Locke. No que se refere aos assuntos médicos, pode-se dizer que Locke foi aluno de Sydenham (cf. Payne, 1900).
O PENDOR DE LOCKE PARA A MEDICINA
Dados biográficos mencionam que Locke iniciou seus estudos em 1648 na Westminster School, transferindo-se em 1652 para Christ Church do College of Oxford, permanecendo na instituição até 1684, alcançando a condição de fellow em 1668. Ainda estudante já demonstrava ao seu pai adoentado sua inclinação para assuntos de saúde quando o visitava no período de férias; em conversa com seu médico Dr. AyliffeIvye, anotava receitas e remédios para as doenças mais comuns. Escrevia textos substanciais sobre matéria científica, desde a circulação do sangue em rãs até pequenas notas sobre a medicina. Com o aperfeiçoamento nos estudos, tendo lido Bacon e Descartes, afastou-se da medicina acadêmica de inspiração galênica associada ao aristotelismo. Seu entusiasmo pelas ideias de Descartes o fez declarar, anos mais tarde, que sua insatisfação pelas disciplinas acadêmicas havia sido curada depois que leu seus trabalhos (Woolhouse, 2007, p. 35).
No período de 1664 e 1665, frequentou as aulas de Thomas Willis, como parte dos estudos eclesiásticos que permitiriam exercer uma atividade remunerada (cf. Crignon, 2016).
Atendendo as disciplinas da Filosofia Natural, integrou o grupo dos virtuosi, participando de estudos e experimentos no campo da física, da química, da botânica e da medicina. Sobre isso, na “Carta ao leitor” do Ensaio acerca do Entendimento Humano, ele se considera um simples colaborador junto a Boyle, Sydenham, Huygens e Newton. Além disso, é importante destacar que, desde 1659, Locke auxiliava Willis em atividades acadêmicas, compartilhando dos seus pressupostos filosóficos, estudos de anatomia e experiências com elementos químicos. As palestras do mestre entre os anos de 1663 e 1664 chegaram até os nossos dias graças a seus cadernos de anotações; há relato de que são mais concisas e menos controversas do que as dos próprios escritos de Willis (cf. isler, 1986). Talvez porque, quando Locke foi seu aluno, Willis estava vivendo seu período mais criativo como profissional e suas ideias ainda estavam em estágio embrionário; somente mais tarde os livros nos quais Willis discute as doenças do cérebro e da alma foram publicados. Segundo Monducci (2010, p. 243), fortalecendo essa interpretação, Locke possuía a edição de Opera Omnia, de 1682, contendo todos os trabalhos de Willis.
Após ter recebido o grau de Master of Arts em 29 de junho de 1658, ele concentrou seus estudos nos temas médicos. Quando foi apresentado a Robert Boyle em 1660, pelo médico e fisiologista Dr. Richard Lower (1631- 1691), Locke já estava bem versado em vários tópicos da medicina. Ao lado de Lower, participou das experiências de fermentação de alimentos, da fisiologia da urina e do sangue; estudando anatomia, percebeu que os livros clássicos apresentavam muitos erros causados pelas técnicas de dissecção. Segundo Yolton (1996, p. 267), Locke, influenciado por Boyle, apreendeu a hipótese corpuscular da matéria, afirmando que existem substâncias sólidas e extensas (locke, 1978). Em decorrência desse entendimento, Locke concordou com o conceito de “coesão”: força que mantém a matéria unida, impedindo que as partículas se dispersem. A integração da noção de forma com uma determinada concepção de matéria possibilitou a “reintegração da forma em termos corpusculares” (emerton, 1984). Sobre as teorias e as hipóteses da Filosofia Natural, acompanhava as opiniões de Boyle ao criticar os médicos que tentavam ajustar os fenômenos das doenças a alguma teoria anterior; afirmava que as teorias gerais são como um devaneio em que as hipóteses servem apenas como auxiliares para orientar os médicos em casos particulares e que elas não servem como fundamentos para sustentar a verdade (yolton, 1996, p. 117). Vale ressaltar que em 1666, como assistente do médico David Thomas, dedicou-se intensamente aos estudos de química, pesquisando remédios e águas medicinais. Poderia ter recebido o título de Doctor of Medicine em 1666, antes de concluídos os estudos formais, mas o recusou, e certamente tal ato contribuiu para a impressão de seu pouco interesse pela profissão. Lord Clarendon assegura em carta ao vice-chanceler que Locke estava apto para obter o diploma oficial, mas, por solicitação do próprio filósofo, declinou de tal título:
Eu estou seguro que Mr. John Locke (…) tem se dedicado ao estudo da medicina com tal propósito que se encontra qualificado para o grau de Doutor nesta faculdade (…) mas não tendo recebido o grau de Bacharel em Medicina ele deseja que lhe seja dispensado desse título, o que me parece uma proposta modesta e razoável dele exercitar ambos os títulos. Desta maneira, dou meu consenti- mento para atender seu propósito (Crignon, 2016, p. 29, tradução nossa).
Isto pode parecer contraditório e certamente contribuiu para formar a ideia de sua inapetência para a profissão. Todavia, nosso entendimento é que existe razão para sua recusa e, além do mais, reforça sua preferência pelos estudos médicos. Ele se negou a receber a titulação meramente como formalidade por seus reconhecidos conhecimentos. Mais importante para ele era manter seu vínculo com a instituição por intermédio de bolsa de estudos (Studenship). Essa condição era somente destinada aos alunos matriculados nas ordens sagradas para receber a licença eclesiástica. Deste modo, ao receber a titulação, encerraria seu vínculo institucional e, em consequência, inviabilizaria suas pretensões de continuar seus estudos médicos. Duas semanas depois (provavelmente por influência de Lorde Ashley), ele conseguiu obter a dispensa da obrigação das ordens sagradas por ordem do Secretário Geral em nome do Rei ao Reitor da Christ Church (woolhouse, 2007, p.73). Assim, Locke conseguiu consolidar sua privilegiada condição de fellow na instituição, livre da pressão de ingressar nas ordens sagradas, com os direitos e vantagens pecuniárias até 1684.13 E, ao contrário de relatos biográficos que afirmam que recebeu o grau de médico a título honorífico, de fato, Locke foi realmente diplomado, em 1675, por merecimento, recebendo o grau de Bachelor of Medicine das mãos do Chancellor of University of Oxford, conforme consta na cópia da Medical Licence na Bodleian Library, datado de 06 de fevereiro daquele ano (cf. cranston, 1957). Woolhouse (2007, p. 116) comenta que posteriormente, ao conseguir o Medicinae Baccalaureo e dispor da licença para exercer a medicina, Locke não teve interesse em obter o título de Doctor of Medicine.
Locke esteve na França no período de 1675 a 1679 para tratamento de saúde por recomendação de Sydenham, aproveitando para aperfeiçoar seus estudos medicinais. Frequentando aulas com vários médicos, anotando as condições sanitárias locais, teve oportunidade de atender pacientes. Ele visitou os hospitais, Invalides e Charité em Paris com o médico Samuel Cottereau-Duclos e Peter Guenellon; em Lyon, no Hôtel Dieu, com Pierre Magnol, Godefroy, Claude Brouchier; e em Montpellier com Charles Barbeyrac (woolhouse, 2007), de quem Sydenham tinha recebido lições (dewhurst,1966). Locke costumava dizer que “nunca conheceu duas pessoas com carácter e opiniões tão parecidas como Sydenham e Barbeyrac” (Payne, 2019, p. 124).
É nesse cenário de influências que Locke desenvolveu sua formação, escrevendo vários manuscritos e ensaios que perscrutam o espírito clínico e verdadeiramente sancionam a arte de curar. Para Crignon (2016, p. 32), o volume de trabalhos desta fase revela a importância dessa temática na sua vida intelectual. Esses manuscritos foram elaborados entre 1659 e 1670, antes dos Drafts A e B do Ensaio acerca do Entendimento Humano, datados de 1671. É importante observar também que o Ensaio somente foi publicado em 1690, resultado de 20 anos de estudos e de reflexão. O acervo que se encontra na Biblioteca Bodleian de Oxford – Lovelace Collection of the papers of John Locke – (1989) evidencia seu espírito crítico e reflexivo, inclusive nos temas voltados para a medicina. Os textos de Notebooks and Common place Books se ocupam de reflexões referentes à anatomia, respiração, varíola, morbus, epidemia de peste e o estado da arte médica que nos permitem constatar o lugar de relevância da profissão, antes de escrever suas obras de maior alcance filosófico. Smallpox Manuscripts foi escrito em conjunto com Sydenham, e provavelmente Anatomia e De Arte Medica. Esses manuscritos refletem a influência da Filosofia Experimental (que ajudou a construir) na medicina que praticava. As anotações são organizadas sob um sistema de classificação de entradas de temas: Pestis; Pleuritis; os riscos do charlatanismo (carta Dr. Ivy a um médico alemão em 1666); os males da epidemia da peste bubônica (carta a Boyle em 12/12/1665); cartas sobre sua colaboração com o Dr. David Thomas com quem estudava a medicina química (1666); registros das descobertas recentes de outros médicos (J. Strachey carta de Sténon de Londres ao dr. Cronne, datada de 1666) (Crignon, 2016).14
Suas reflexões e comentários nos textos mostram percucientes conhecimentos teóricos da medicina, muito valorizados por vários sábios. Buscamos ressaltar neste tópico sua formação médica e seu profundo conhecimento das peculiaridades da profissão. Se então não restam dúvidas que Locke se formou em medicina, reconhecido e prestigiado por eminentes médicos, diante dessa constatação precisamos tornar distinto que tipo de medicina ele exerceu.
JOHN LOCKE E A PRÁTICA MÉDICA
Crignon (2016, p. 20) evoca Victor Cousin para demonstrar que a visão do século xix sobre o filósofo inglês era eminentemente filosófica: “o verdadeiro título de glória de John Locke foi ter escrito o ‘Ensaio acerca do Entendimento Humano’”. Ora, Locke compartilhava a construção de um método experimental em oposição às abstrações médicas da Filosofia Natural que predominava na época seiscentista. Portanto, ele colaborou enormemente para a construção do empirismo do qual a medicina muito assimilou naquele mesmo período. Existem vários registros de que Locke praticou a medicina ao longo da vida, atendendo e receitando para muitos pacientes (yolton, 1996), mesmo quando excursionou pela França. Além disso, muitos amigos procuravam seus conselhos médicos. Ele também exerceu a prática médica quando se refugiou na Holanda, no período de 1683 a 1689, por ocasião do exílio de Lorde Ashley, com o nome de Dr. Van der Linden, disfarçado para escapar dos seus opositores que o acusavam de traidor do reino. Logo ao chegar à Holanda, seus primeiros interesses foram as atividades médicas; ele reencontrou Peter Guenellone e juntos eles formaram um grupo de médicos com Phillip van Limborch, Matthew Sladus, Egber Veen, Abraham Quina, Peter Bernagie e Abraham Cyprianus. No final da vida, quando retornou do exílio, enquanto viveu com a família Masham, “Dr. Locke”, como era chamado pelos seus contemporâneos, atendia pacientes em seu consultório em High Laver, pequena vila de Essex (cf. woolhouse, 2007). Foi por volta de 1667, quando Locke, Willis e Lower se mudaram para Londres, que o autor do Ensaio começou a se distinguir como médico, coincidindo com o momento em que se distanciava das ideias de Willis, divergindo de que a pesquisa anatômica cadavérica pudesse contribuir para esclarecer a causa das doenças; ele discordava do dualismo dogmático de Willis, que propunha uma alma corporal ou dos animais e uma alma racional dos homens; para tal, Locke propôs o fisicalismo como base para explicar os fenômenos mentais. O fisicalismo contido nas ideias de Locke é o conceito segundo o qual as funções mentais podem ser explicadas pela fisiologia do cérebro material em vez de uma explicação derivada da metafísica (cf. monducci, 2010). Pode-se observar esse modo de pensar em Locke, contrário aos dogmatismos, em seus escritos sobre a formação moral da criança, nos quais enaltece a utilidade do conhecimento para a vida prática e critica o modelo pedagógico que formasse apenas pessoas eruditas de saber pedante (cf. nascimento, 2020). Na mesma época em que se distanciou das ideias de Willis, Locke começou a participar dos trabalhos com Thomas Sydenhan, o qual tinha muito pouco em comum com um homem bem letrado como Willis. Sydenham publicou o livro, já referido, Methodus Curandi Febres, propriis observationibus superstructa, em que apresenta a classificação das doenças febris de modo destoante da concepção de Willis na qual a cura da enfermidade dependia da ação das drogas sobre os quatro humores do corpo humano (sangue, bílis amarela, bílis negra e pituíta). Para Sydenham, cada febre era uma ocorrência particularizada, segundo a predisposição física de cada paciente. Sydenham, assim como Locke, questionava o valor do estudo da anatomia, especialmente a cadavérica, acima do método da observação das queixas do doente e da experiência do médico. Apesar de Locke desvalorizar a explicação anatômica das doenças nos seus escritos iniciais, Payne (2019, p. 248) comenta que anos depois ele reviu essa posição radical; existem cartas de Locke para Hans Slone no British Museum em que ele reconhece a importância dos achados da anatomia. Nesse período, Locke participou estreitamente dos trabalhos de Sydenham, acompanhando-o em seus estudos e no atendimento de seus doentes e, em especial, aprovando seu método que revisitava o modelo clínico hipocrático.
Locke sempre teve o maior apreço por Sydenham por ter introduzido uma verdadeira reforma na medicina com o pioneirismo do seu método de grande valor prático; tornando-se seu amigo e colaborador, frequentemente lhe solicitava opinião sobre o atendimento de seus pacientes, como também o consultava sobre seu problema de saúde. Ambos criticavam tanto os charlatães que apregoavam remédios milagrosos como os devaneios metafísicos dos antigos médicos. Convém lembrar que Sydenham é um médico do século xvii, do início da chamada medicina moderna, assim como Locke, e que apesar da inovação do seu método, seu arsenal terapêutico ainda estava impregnado de práticas antigas e de medicamentos empíricos. De fato, Sydenham não abandonou de todo na sua prática os tratamentos convencionais da época, como se pode constatar na publicação dos seus trabalhos (Latham, 1848). No entanto, Locke, homem de formação acadêmica e de maior envergadura intelectual que Sydenham, era mais cético que ele quanto aos dogmas médicos. Em carta ao seu amigo William Molyneux (1666-1698) (Crignon, 2016, p. 473), ele procurava expressar seu ceticismo a todos os dogmas médicos, questionando a doutrina dos humores:
Você não pode imaginar como uma simples observação feita cuidadosamente por um homem não vinculado aos quatro humores, ou sal, sulfúrico e mercúrio, ou ácido alcalino, que ultimamente tem prevalecido, levará o homem a curar as doenças, por mais perigosas e resistentes que sejam, com poucas coisas comuns e quase nenhum remédio (Payne, 1900, p. 247).
É evidente que os quatros humores se referem à doutrina de Hipócrates e Galeno; o sal, sulfúrico e mercúrio se referem aos ensinamentos de Paracelso e Van Helmont; o ácido e o álcalis, ao sistema proposto por Sylvius e, por extensão, a Willis (payne, 2019, p. 247). Assim, podemos perceber que Locke não considerava essas doutrinas como importantes para o avanço da medicina. O fato que comprova seu saber médico, já nesta época, foi sua contratação, em 1667, pelo Lorde Anthony Ashley Cooper (1621/1683), mais tarde Primeiro Conde de Shaftesburry, como seu secretário para assuntos políticos, econômicos, e como seu médico particular. Locke foi apresentado ao Lorde Ashley pelo Dr. David Thomas. Este havia sido procurado pelo nobre que buscava tratamento com águas medicinais. O médico, não se encontrando em Oxford, solicitou a Locke que o atendesse. Em junho de 1668, ocorreu o seu caso mais famoso, a operação abdominal de Lorde Ashley, que merece destaque não somente pela gravidade da doença e pela grande repercussão social, mas também pelo reconhecimento de Locke como médico. O Conde escreveria depois nos Papers Shaftesburry que devia sua vida a Locke por ter conduzido com sucesso a intervenção para drenagem de cisto hidático supurativo do fígado, liderando os prestigiados médicos Francis Glisson, George Ent e Thomas Sydenham. A descrição do procedimento cirúrgico feita por Locke é considerado o primeiro relatório clínico detalhado de equinococose do fígado complicada com empiema (dewhurst, 1966).15 A esse respeito, Damaris Cudworth Masham, em carta de janeiro de 1675 para Jean Le Clerc, escreve que Locke, em razão de sua saúde frágil (mauvaise santé), e dispor de confortável situação material, não praticou a medicina como meio de renda, se bem que seu julgamento como médico era grandemente estimado entre os mais prestigiados médicos:
Algum tempo depois que o Sr. Locke começou a estudar seriamente, ele se dedicou principalmente à medicina. Uma ciência que nunca foi seu ganha-pão, por causa da sua fadiga que lhe faria sofrer e não tendo necessidade dela para viver. Mas, mesmo assim, suas declarações sempre foram de grande valor entre os médicos mais capazes do seu tempo (crignon, 2016, p. 24).
Osler (1913, p. 159) comenta que Locke ocupa lugar de destaque na medicina, ao lado de Sydenham, por validar novos medicamentos como a quinina (casca de jesuíta)16 no tratamento das febres e por ter assumido o método da observação dos pacientes. De grande valor para a reputação de Locke, conforme relatado por Crignon (2016, p. 23) em texto de Cousin, foi a afirmação de Sydenham, em 1675, de que seu método tinha a aprovação de Locke, médico de reconhecido saber:
Você também sabe o quanto meu método foi aprovado por um homem que o conhecia profundamente e que é nosso amigo co- mum; refiro-me ao Sr. Locke, tanto no que diz respeito ao espírito de julgamento penetrante e exato, quanto aos costumes sábios e regrados que entre os vivos, talvez, ninguém o ultrapassa e poucos possam igualá-lo.
Locke obteve reconhecimento pela sua relevância na ciência médica. Ele chegou a ser indicado pelo Dr. John Mapletoft para substituí-lo na cadeira de Professor de Medicina do Grisham College, mas não assumiu o cargo porque na oportunidade ele já estava em Londres como assessor de Lorde Ashley.
Assim, diante da sua comprovada atividade como médico, Crignon (2018, p. 1, tradução nossa) considera inesperada sua declaração em carta datada de 1693 ao médico Thomas Molyneux (1661-1733), membro do Colégio Real de Medicina Irlandês, de que não queria se envolver com a medicina:
Se meu zelo de salvar a vida dos homens e de preservar sua saúde (infinitamente preferida a toda especulação médica por mais refi- nada que seja) me levou muito longe, por favor, desculpe alguém que deseja que a prática médica seja bem-sucedida, embora não se intrometa nela.
Essa declaração pode favorecer a tese de que a medicina constituía área da qual ele teria preferido se afastar. Se alguém pode interpretar dessa maneira, deve-se ter cuidado para não ler ao pé da letra. Deve-se observar que, quando Locke escreve, filosofia e medicina não se constituíam como disciplinas autônomas e independentes, correspondendo a profissões distintas, como são hoje, mas, como sabemos, faziam parte da Filosofia Natural, conforme apresentamos na introdução deste texto. Podemos questionar: a que tipo de medicina especulativa ele se refere? Desejar que a prática médica seja bem-sucedida enquanto se recusa a associá-la a especulações refinadas sobre as causas das doenças, certamente, é recusar esta determinada concepção de medicina voltada para discussões em nível epistemológico e ontológico; mas também, sem dúvida, apontar para o tipo da medicina que ele advogava e praticava: medicina do método proposto por Sydenham, baseado na observação dos sintomas, no raciocínio e na experiência do médico, na evolução do processo da doença e no emprego experimental de medicamentos como a quinina, a ipeca, o antimônio e o láudano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A proeminência de Locke como filósofo, sem dúvida, tornou-o menos conhecido como médico. Como pensador, os interesses de Locke extrapolavam os estudos médicos, abordando várias áreas da filosofia, desde a teoria do conhecimento aos temas da moralidade, da religião, da educação, da política e das finanças. Todavia, ele escreveu importantes manuscritos sobre temas de medicina, que no seu tempo fazia parte da Filosofia Natural. Esses ensaios nos anos de sua formação em Oxford nos convencem de que a medicina foi campo de seu real interesse. Locke não praticou a Filosofia Natural, afastando-se, dentre outros, de Thomas Willis, o qual se propunha a localizar anatomicamente o lugar da alma humana. Sua insatisfação com o lado especulativo da medicina lhe proporcionou descortinar um método que possibilitasse articular os achados da observação e da experiência, como ponto de inflexão epistemológica da Filosofia Natural, cogente com a doutrina hipocrática. Locke, como médico, ao se subtrair dos dogmas da Filosofia Natural, alinhou-se aos pensadores da Filosofia Experimental que propunham buscar o conhecimento respaldado em dados empíricos e no emprego de novos instrumentos de pesquisa. Deste modo, Locke não exerceu a profissão baseada no humorismo galênico, nem a praticou nos moldes convencionais dos médicos da sua época. Sua saúde frágil, bem como seus compromissos como secretário de Lorde Ashley, além de dispor de razoável patrimônio, afastaram-nos da atividade médica tradicional. Ele exerceu a medicina no modelo proposto por Sydenham, baseado na catalogação dos sintomas dos doentes, na evolução da doença e na experiência do médico.
Os relatos biográficos sobre suas principais declarações, a de recusar o título de médico e de não querer se envolver com a medicina, poderiam conjecturar a inapetência pela profissão. Ao contrário de desinteresse, sua conduta mostra empenho em prosseguir seus estudos médicos pela obtenção da bolsa de estudo sem a qual seria inviável seu projeto. Quanto à declaração de que não devia se misturar à medicina, torna-se necessário interpretá-la à luz do seu ceticismo quanto à medicina acadêmica e dogmática. Acreditamos que, quando Locke declara o sucesso da prática médica, mas não quer se intrometer na medicina, isso não significa que ele descartasse qualquer necessidade de reflexão moral sobre as condutas e os objetivos buscados pelos médicos; muito menos indica uma incompatibilidade entre as duas disciplinas de seu interesse intelectual, a filosofia, que é por definição teórica e especulativa, e a medicina, que é exercida na prática. Antes, sublinha a necessidade de o médico se afastar de especulações metafísicas e elucubrações fantasiosas que dificultam o desenvolvimento da profissão médica naquele período.
Deste modo, Locke, por se mostrar cético quanto à medicina especulativa, muito contribuiu para vislumbrar uma nova perspectiva de exercer a prática médica, consoante o espírito científico seiscentista. Para ele, o médico não é filósofo, embora este se ocupe de reflexões que questionam os limites e os conflitos da medicina, e também esteja interessado no papel que a saúde desempenha na obtenção de uma vida feliz. Trazendo a concepção da medicina de Locke para os tempos contemporâneos, podemos dispor que seu pensamento ilumina a prática médica atual, na medida em que, como fiel herdeiro da Filosofia Experimental, ele foi capaz de divisar o surgimento da medicina embasada em preceitos científicos com o objetivo precípuo de melhorar a saúde e o bem-estar humano.
* Antônio Carlos dos Santos é professor da Universidade Federal de Sergipe
** Henrique Batista e Silva é membros da Comissão de Humanidades Médicas do CFM e professor da Universidade Federal de Sergipe
Artigo publicado nos Cadernos Espinosanos, estudos sobre o século XVII, n. 45 jul-dez 2021.