Guerras geram deficiências


\\ Mariana Cavazzoni Lima de Carvalho*

As guerras são conflitos armados que acontecem por diferentes motivos, como desentendimentos religiosos, interesses políticos e econômicos, disputas territoriais, rivalidades étnicas, entre outras razões. E elas estão entre as principais causas geradoras de deficiência no mundo. E ver países em guerra é assustador!

Além da invasão da Ucrânia, o mundo tem sete guerras sangrentas e incapacitantes em andamento.

A guerra da Ucrânia provocou uma grande mobilização internacional como poucas vezes se viu na última década. Desde que a Rússia invadiu o país vizinho, no dia 24 de fevereiro, os ucranianos receberam apoio militar, ajuda humanitária e manifestações de aliança de várias partes do mundo. A situação no leste europeu é, realmente, muito preocupante. Há denúncias de crimes de guerra, mortes de civis e cerca de 2 milhões de refugiados.

O abandono de pessoas com deficiência e seus familiares já está acontecendo na Ucrânia, alertou a Inclusion Europe, que atua em 39 países. “As condições de vida das pessoas com deficiência intelectual, especialmente nas instituições, eram muito precárias mesmo antes da guerra, e a mera expectativa de guerra tirou os fundos da ajuda e apoio, moradores foram devolvidos para suas famílias e suspeita-se de abandono direto”, disse Risto Burman, diretor executivo da Associação Finlandesa de Apoio às Pessoas com Deficiência Intelectual (Kehitysvammaisten Tukiliitto).

Mas, esse não é o único conflito a causar mortes e sofrimento no momento.

O Iêmen vive hoje um dos períodos mais violentos desde 2014. Só em fevereiro foram mais de 700 ataques aéreos registrados por lá.  Esta guerra civil no país que coloca em embate direto duas potências do Oriente Médio. A ONU (Organização das Nações Unidas) classifica o Iêmen como a pior situação humanitária do mundo. Até o momento, a guerra já causou 233 mil mortes, incluindo 131 mil por causas indiretas, como falta de alimentos, serviços de saúde e infraestrutura. Mais de 10 mil crianças morreram como consequência direta dos combates. Milhares de pessoas perderam extremidades ficando amputadas. De fato, os relatórios estimam 6 mil pessoas passaram a ter deficiências físicas, a maioria decorrente de explosões, minas ou armas de fogo.

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) ajuda pessoas com deficiência no Iêmen apoiando quatro Centros de Reabilitação Física em Sana’a, Aden, Mukalla e Taiz. Em 2016, mais de 25,4 mil pessoas com deficiência se beneficiaram com o apoio a esses centros – aproximadamente 12,8 mil pacientes receberam tratamento de fisioterapia e foram produzidas quase 400 próteses e 6 mil órteses. Para entender o conflito; de um lado, as forças do governo de Abd-Rabbu Mansour Hadi, apoiadas por uma coalizão sunita liderada pela Arábia Saudita. Do outro, a milícia rebelde houthit, de xiitas, apoiada pelo Irã, que controla a capital, Sanaa, e partes do oeste do país. O conflito foi motivado pelo fracasso da transição política após a Primavera Árabe, que obrigou o antigo presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, a entregar o poder ao seu vice, Abdrabbuh Mansour Hadi, em 2011.

Uma outra guerra, que já foi descrita como a que ninguém vê, iniciou em novembro de 2020 e já deixou milhares de mortos na Etiópia, leste da África.

Esta é uma guerra entre etíopes e etíopes. Os rebeldes que hoje atacam Afar vêm da região vizinha, Tigré. A guerra começou bem antes de a Rússia invadir a Ucrânia, conflito que domina a atenção da comunidade internacional atualmente. Na época, o primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed enviou tropas à região de Tigré para remover do poder o partido governante da região que fica ao norte, alegando que forças locais atacaram uma base militar federal. Até hoje esta é uma parte isolada da Etiópia, há mais de um ano e meio sem acesso à internet e telefonia, por exemplo.

Este país-chave no chamado Chifre da África, convive com uma sangrenta disputa que ameaça engolir também a capital do país, Addis Abeba, e aumentar em escala. Algo que seria inimaginável dois anos atrás, quando o primeiro-ministro Abiy Ahmed recebeu o prêmio Nobel da Paz por um conflito antigo com a vizinha Eritreia.

Na Etiópia têm uma famosa frase “aqui falta pão, mas não munição”. Imagine um lugar visivelmente pobre onde praticamente todo homem carrega consigo uma arma, quase sempre uma Kalashnikov. Um rifle desses custa o equivalente a cerca de R$ 35 mil, o preço de três dromedários. E esses homens não são militares profissionais que receberam treinamento adequado para usar uma arma desse calibre. Quase todos são agricultores ou pequenos comerciantes que recentemente se tornaram soldados e participam de uma guerra civil. Muitos não aparentam ter mais de 20 anos. Outros já deveriam pensar em aposentadoria, um privilégio que parece cada vez mais distante. Eles estão na linha de frente combatendo os rebeldes que tentam tomar a região do país onde vivem. E não raras vezes falta comida no combate. Ficam dias sem se alimentar.  Este conflito está deixando milhares de mortos e mais de dois milhões de desabrigados, que seguem vagando internamente ou buscando abrigo no Sudão, país vizinho. O Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) diz que, diariamente, cerca de 300 pessoas são forçadas a deixar as áreas onde vivem por conta do conflito.

Em fevereiro de 2021, o exército de Mianmar derrubou o governo eleito do país, prendeu líderes políticos, fechou o acesso à internet e suspendeu os voos internacionais. Isso resultou em uma guerra civil que já dura mais de um ano entre militares e grupos organizados de civis armados. De acordo com o grupo de monitoramento de conflitos Acled (sigla em inglês para “Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos”), os confrontos estão espalhados por todas as regiões do país e cerca de 12 mil pessoas foram mortas desde que os militares tomaram o poder em 1º de fevereiro de 2021. Os grupos que lutam contra as forças do governo são conhecidos coletivamente como PDF (Força de Defesa do Povo, na sigla em inglês), uma rede informal de grupos de milícias civis composta em grande parte por jovens.

Já a Guerra na Síria foi deflagrada após denúncias de corrupção no governo do país. Em março de 2011, vieram os protestos ao sul de Derra em favor da democracia. A população revoltou-se contra a prisão de adolescentes que escreveram palavras revolucionárias nas paredes de uma escola. Centenas de grupos rebeldes surgiram e não demorou muito para que o conflito se tornasse mais do que apenas uma batalha entre sírios a favor ou contra Assad. Países como Rússia, Estados Unidos, Reino Unido e França também tomaram partido no conflito, enviando dinheiro, armas e combatentes. Além disso, organizações jihadistas, como o grupo extremista autodenominado Estado Islâmico (EI) e a Al-Qaeda, também se envolveram. A guerra na Síria tem diminuído sua intensidade, com Assad conseguindo dominar boa parte do país, mas ainda há resistência em diversas partes, o que deve provocar ainda mais mortes e problemas humanitários como as deficiências nos próximos anos.

O Sudão do Sul é o país mais novo do mundo. Foi reconhecido em 2011, após a separação com o Sudão. Mas a nova nação enfrenta uma guerra civil desde 2013 e está mergulhada em um quadro de violência político-étnica e instabilidade crônica. De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, das 12 milhões de pessoas que habitam o Sudão do Sul, 6 milhões estão em situação de fome e necessitam de assistência alimentar. Mais de dois milhões de sul-sudaneses fugiram do país, constituindo a “maior crise de refugiados da África”, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).

O Afeganistão já foi palco de um dos conflitos mais noticiados do mundo, após os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. O governo norte-americano invadiu o país sob a acusação de que o Talebã esteve por trás dos atentados. Foram quase duas décadas de intensos combates e milhares de mortes, até que o Talebã voltou ao poder no ano passado.

Este mesmo Talebã que em junho de 2012 no Paquistão impediu a vacinação contra pólio em 250 mil crianças em áreas tribais do norte do país, em retaliação contra-ataques de aeronaves não-tripuladas americanas. Assim, os conflitos entre nações seguem causando no mundo vítimas diretas e indiretas também pelos colapsos causados nos sistemas de saúde.

Vale recordar que a Georgia herdou um ‘estoque’ de minas do período soviético, mas não se sabe a exata localização de muitas delas. De acordo com a ONG Landmine and Cluster Munition Monitor, as principais ameaças aos civis e uma das principais causas de deficiência no país são as minas abandonadas, como a que atingiu Tvauri, nadador paralímpico das olimpíadas de Londres em 2012 que perdeu a visão e 90% da mão direita aos 16 anos, quando pegou nas mãos uma antiga mina, que encontrou perto de sua casa, no subúrbio de Tbilisi.

A Segunda Guerra dizimou 3% da população, conforme registro de 1940, e entre os soldados sobreviventes, milhares retornaram amputados, feridos por balas e seus estilhaços ou com lesões graves que os tornaram paraplégicos. O triste desfecho da guerra, quando os Estados Unidos lançaram bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, foi devastador e matou 222 mil pessoas, deixando seqüelas nos sobreviventes civis.

A guerra do Vietnã matou 3 milhões de pessoas, com o “agente Laranja” aspergido pelos EUA sobre o território vietnamita.

Mesmo sem ser palco de conflitos internos de grande escala, o Brasil vem numa crescente de violência desde a década de 1970. O auge na taxa de homicídios ocorreu no ano de 2017, quando 65.602 pessoas foram assassinadas no país. A partir de 2018, esse número começou a cair, principalmente porque nesse ano foi criado o Ministério de Segurança Pública, os dados sobre segurança foram reunidos em um sistema único de informações e houve uma política planejada e realizada em cooperação entre os entes federados (governo federal, estadual e municipal).

Em 2018 houve 57.956 homicídios no Brasil, uma taxa de 27,8 mortes violentas por 100 mil habitantes, patamar inferior ao ano de 2014. A diminuição nos índices de homicídio ocorreu em todas as regiões e houve queda de letalidade em 23 estados e no Distrito Federal. Essa tendência de queda confirmou-se em 2019.

Quanto ao perfil das vítimas, no Brasil os homicídios são a principal causa de morte de jovens do sexo masculino, isto é, da faixa etária entre 15 e 29 anos, grupo que compôs 53,3% do total de homicídios em 2018.

As regiões Norte e Nordeste nos últimos anos tornaram-se importantes rotas do tráfico de drogas produzidas nos países vizinhos, como Peru e Bolívia. Elas entram no Brasil pelos rios da Floresta Amazônica, de onde são levadas para os portos da costa nordestina, e de lá, para Europa e África.

As facções criminosas, como Primeiro Comando da Capital (PCC), Família do Norte (FDN) e Comando Vermelho (CV), em sua guerra por expansão territorial, provocam um crescimento voraz no número de assassinatos nos municípios que compõem o “corredor do tráfico”.

Os altos índices de mortes violentas, que figuram na casa das dezenas de milhares, números absolutos equivalentes ou maiores aos de países em situação de guerra, também sobrecarregam o sistema público de saúde como uma epidemia. A sociabilidade violenta é, em essência, antipolítica. Argumentações, discussões, conversas são substituídas por coação, medo, insegurança, especialmente onde ocorrem violências coletivas, marcadas pelo controle e domínio territoriais. Ao sistema de saúde, as conseqüências da violência, dentre outros aspectos, se evidenciam no aumento de gastos com emergência, assistência e reabilitação, muito mais custosos que a maioria dos procedimentos médicos convencionais. Cálculos estimam que cerca de 3,3% do PIB brasileiro são gastos com os custos diretos da violência, cifra que sobe para 10,5% quando se incluem custos indiretos e transferências de recursos.

O efeito irreversível da violência é sentido não apenas como transgressão corporal, mas como memória traumática. Em muitos casos, o impacto disruptor da violência perpetrada ou testemunhada, pode surgir muitos anos pós-guerra. Esse é o transtorno do estresse pós-traumático, nas quais as experiências vivenciadas levam a alterações e comportamentos associados que causam repercussões sintomáticas no dia a dia dos sujeitos vítimas diretas e indiretas podendo iniciar até décadas depois.

A discriminação social que as pessoas com deficiências experimentam no retorno a vida civil são inúmeras, e podem ter um impacto ainda maior dependendo da cultura e política de cada sociedade. Partindo das atitudes e concepções discriminatórias a barreiras arquitetônicas e comunicativas, apoio inadequado no acesso à educação, critérios excludentes no mercado de trabalho, salários baixos e condições de trabalho precárias.

Ao contrário do que ocorreu no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, onde a politização da deficiência tem tido um importante impacto, muitas nações prevalecem as abordagens fatalistas que individualizam as deficiências e naturalizam as suas implicações.

Guerra é sinônimo de geração de deficiência. É importante recordar que nenhuma guerra acaba com o último tiro, e a noção que a violência segue presente no mundo, e que a antiquíssima exclusão de pessoas com deficiência é um presente que não cessa. Lutamos pela inclusão social, acessibilidade, direito a tecnologias assistivas de mais de 1 bilhão de pessoas com deficiência no mundo e definitivamente não precisamos de mais deficiências geradas por violências e guerras.

Que haja consciência nas lideranças mundiais. E que a paz prevaleça!

 

* Mariana Cavazzoni Lima de Carvalho é médica fisiatra

 

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