Um Olhar Para Além da Tela
Péricles Brandão*
Foi um físico, Werner Heisenberg, quem reconheceu certa vez que o grande rio da Ciência Moderna brotou de duas fontes vivas situadas na antiguidade grega. A partir de uma dessas fontes, que Platão denominou dianoia, em sua obra República, desenvolveu-se o método analítico. Oferece uma descrição objetiva, matemática do mundo – fragmentando a realidade, decompondo o Todo em suas partes. A partir da segunda fonte, a noesis, desenvolveu-se o método sintético, contemplativo. Oferece um testemunho subjetivo, simbólico do mundo – na busca de um princípio unificador da realidade capaz de interligar todas as partes num Todo e gerar sentido e valores.
Mas antes de Platão, antes de Sócrates, Heráclito proclamava: tudo flui. Como se dissesse: devem dialogar os dois métodos, devem dialogar razão e coração porque assim é o mundo, tensão harmoniosa entre opostos. Tudo é um só fluir, repetiria Hipócrates, desde a ilha de Cós, atento ao oceano em redor. A primeira referência ao Hipócrates histórico está na obra Fedro, de Platão. Ali, Sócrates argumenta ser preciso praticar a Filosofia como Hipócrates praticava a Medicina. Pois não é possível compreender a parte sem compreender o Todo. Conta-se que a primeira paciente de Hipócrates foi Avlavia. Depois de examiná-la e esgotar todos os recursos de sua arte, Hipócrates recomendou-lhe a interpretação da linguagem do oráculo dentro de si mesma. Volte para seu país, ouviu Avlavia. Voltando à sua pátria, Avlavia ficou curada.
Eu prefiro a palavra mátria. O pensador Miguel de Unamuno, em contraponto a um certo patriarcalismo totalitário, propôs o conceito de Matriotismo, baseado na inteligência do amor materno. Uma mátria é o conjunto de condições para o desenvolvimento pleno das potencialidades da natureza humana, de suas qualidades materiais e espirituais. Sem essa plenitude – disso sabia Hipócrates –, não é possível a saúde.
A verdade última não é o que se demonstra ou oferta numa formalidade de relação contratual. Como diria Saint-Exupéry, se num determinado solo, e não em outro, as laranjeiras lançam firmemente suas raízes e florescem e carregam-se de frutos, esse solo é a mátria das laranjeiras, fique ele numa rua de Sevilha ou no quintal da minha casa de infância. Esta é uma pergunta fundamental na tradição da medicina grega, cada vez mais ignorada pela sociedade tecnológica: quais os substratos indispensáveis para o solo de uma pátria que favoreça o homem no enraizamento e abertura de seu ser, que favoreça, para além de feridas e cicatrizes, a afirmação de sua inteireza, sua saúde, sua salvação? Sim, pois as etimologias de saúde e salvação são iguais em várias tradições.
Mas quais os substratos essenciais da pátria, da mátria de Hipócrates? Que lugar habitava seu espírito? Uma ilha? Cós? Ou o cosmos? Reconhece como seu lar o contínuo espetáculo em que o caos, à luz de Logos, se faz cosmos. Diante dessa ordem superior de beleza emergente, reage com o pathos, com o encantamento original, com o que Goethe, poeta e cientista, chamava de assombro sagrado. Desse assombro, eclode um pensamento inaugural. Tudo é um só confluir, um só conspirar, uma só simpatia. É como se um sentimento empático aguardasse para ser despertado em todos os seres, num tempo transparente ao Eterno. O Princípio Universal se estende até cada fio de cabelo, cada folha da relva. Através de cada detalhe se alcança o Princípio Universal. Hipócrates se sente um só com a Physis, brotação poética, incessante da vida, em incontáveis formas, incontáveis ritmos. Ter um ethos aqui não é um dever, mas um devenir. Ter um ethos significava habitar poeticamente esse mundo, participar do jogo da vida, através de uma arte da observação, da interpretação, do “bem-dizer” e do cuidado. E isso pressupõe naturalmente cuidar de todas as dimensões do humano: soma, corpo, psique, alma, nous, consciência transcendental, Pneuma, Sopro Sagrado.
Poderíamos chamar essa pátria de Hipócrates, essa mátria, de noosfera, que inclui a antroposfera e a biosfera. Aqui temos, entre as margens, o fluir de uma linguagem do viver comovido, do conviver, na direção do cuidar, foz mesma através da qual desagua o ser na profundidade e largueza de um sentimento oceânico. Totalmente diversa é a infosfera, para a qual evoluiu a tecnosfera, mapeada por Arnold Toynbee e Gunther Anders – com distintas cartografias – como um mundo no qual a tecnologia deixou de ser instrumento para se tornar um fim absoluto. A infosfera é um fluxo sem foz que não cessa de informar, quer dizer, de moldar automaticamente necessidades, e, a partir delas, dar forma a um modo artificial de sentir, de pensar, de ver, ouvir, falar, sonhar, de perceber o espaço e o tempo, os fatos. Constitui um agir passivo o navegar na infosfera, no mundo digital, um navegar em círculos, em torno do ego fabricado pelo mercado e suas instâncias de poder para produzir e consumir ilimitadamente. Uma superfluidade escandalosa não consegue ocultar seu real preço para a humanidade: deterioração ambiental, exclusão social, atomização do ser humano.
A liquidez das horas expõe a um só tempo exploração imediatista da vida e fugacidade do viver num dia a dia cada vez mais mecânico, isto é, desligado do ritmo das estações. As máquinas tornam-se cada vez mais parecidas com os homens, os homens tornam-se cada vez mais parecidos com as máquinas. Erich Fromm escreveu que o maior perigo no século XIX era tornar-se escravo e que o maior perigo do século XX era tornar-se autômato. Eu completo afirmando que o maior perigo do século XXI é tornar-se um infômato, que, na ilusão de participação livre e criativa, processa ininterruptamente dados, conforme padrões pré-estabelecidos.
O infômato é um homem doente porque não tem pátria, não tem mátria. É um estrangeiro no mundo e, sob estímulos, consome incontrolavelmente tudo para se sentir conectado, vivo. Sem ethos, habita o não-lugar, num tempo opaco. Incapaz de enraizamento, tampouco é capaz de abertura. É incapaz de encantamento, de pathos, de comunhão com a totalidade da vida, de fraternura diante da diferença. É um ser disperso, apático, incapaz de compassividade perante o outro. Está doente na medida mesma em que é incapaz de amar e cuidar. Portador de uma lógica de inteligência artificial, não medita, calcula, não celebra, acumula. Não conhece o poder do pensar original, emocionado, com arrepio, como diz Byun-Chul Han. Não escuta os silêncios, os sussurros e os gritos da Mãe Terra, de Gaia, da Pacha Mama, a eloquência da lógica paradoxal da vida. Ignora a força libertadora da inteligência matricial.
Sim, são muitos os exemplos de que a tecnologia digital pode desempenhar um importante papel como instrumento complementar de uma medicina fiel à tradição humanista. Ferramentas como a inteligência artificial, a realidade virtual, realidade aumentada podem ser valiosas para uma telemedicina que, respeitando os preceitos e limites estabelecidos pela bioética, eleve os padrões de eficiência e precisão na definição de perfis epidemiológicos, gestão da saúde, prevenção, decisão clínica, aceleração de diagnósticos e tratamentos, facilitação de acesso a orientações e serviços. Porém, assim como a paz não é apenas ausência de guerra, a saúde não é apenas ausência de doença, resultado mágico da manipulação da mente e das opiniões, como denunciou em seu 1984 Orwell, ou da manipulação do corpo e das emoções, como denunciou Huxley, em seu Admirável Mundo Novo.
Há uma centralidade que é inviolável: a da convivialidade, da relação empática, do encontro entre seres que, em sua singularidade, são essencialmente seres sociais, ecológicos, espirituais. O indivíduo saudável não é apenas um sobrevivente. Como nos lembra Ivan Illich, a expectativa ansiosa de encantações tecnológicas para a cura de patologias não pode substituir a esperança serena decorrente do pathos, encantamento com a unidiversidade da vida, que a ética da tradição humanista quer proteger da tecnicização da consciência humana e todas as suas consequências, como concentração de poder econômico, corrosão da democracia, degradação ambiental, frustração existencial generalizada.
Mecanismo de inteligência artificial e egoísmo humano têm sido espelhos um do outro, reproduzindo, através do olhar utilitário, uma realidade unidimensional, fantasmagórica, à beira do abismo. O grande desafio da educação moderna é, por meio de uma abordagem individualizada, participativa, transcender essa unidimensionalidade para revelar a face humana em todos os seus aspectos: de Homo faber e Homo ludens, de Homo sapiens e Homo spiritualis, tudo integrado em sua condição de Homo amans, espécie capaz do amor universal, cuja afirmação é condição para sua saúde máxima, condição de sobrevivência e transobrevivência da humanidade. As Humanidades são uma ferramenta indispensável para essa nova educação, especialmente a Arte.
Vejam o que, no século XVII, dizia essa tela, o que dizia Velázquez no mesmo século de Descartes, quando começou todo o processo em que o universo passou a ser visto como uma máquina, em que o ser humano passou a se sentir e a se comportar como uma máquina. Uma tela de arte ensina o que não consegue ensinar uma máquina. Ensina o silêncio, ensina a escutar. Ensina a atenção, aésthesis, palavra que está na origem de estética. Numa civilização anestesiada como a atual, a Arte pode ensinar a percepção não-utilitária da vida.
Vejam a tela. Para esta nossa era do algoritmo e das manipulações sutis, Velázquez mostra o que Ortega y Gasset chamou de logaritmo da realidade. É uma cozinha humilde da cidade de Sevilha. Tentem ouvir o que diz a anciã. Talvez seja um sussurro da vida em si mesma, da Vida, essa incansável anciã. Talvez Ela esteja dizendo algo semelhante ao que disse certa vez Heráclito em sua cabana: o Divino está aqui. Ou talvez esteja dizendo algo semelhante ao que disse Maria de Nazaré em Caná: é hora do universo como acontecimento nupcial e não pode faltar vinho, é preciso transformar a fluidez do instante em fonte de embriaguez. Sim, é necessário com urgente paciência, delicadamente socar o tempo como um tempero para que se revelem, entre antigos saberes, os sabores do Eterno. Um claro-escuro encobre tudo. Mas ele nos ajuda a compreender que são mesmo imprecisos os contornos de todos seres porque são parte do mesmo Ser. Reparem: nada é insignificante, o Autor recusou-se a simplesmente justapor objetos inanimados para decorar a casa como uma natureza-morta. E reparem ainda que há uma tela dentro da tela: ela também não é só um ornamento, como um papel de parede. Mais que janela para a transcendência, mais que espelho em que se mira a imanência, é imanência transcendente, transcendência imanente, transparência iniciática de tela dentro da tela.
Na tela, Jesus de Nazaré está em visita às duas irmãs: enquanto Maria, extasiada, contempla sua Face, Marta, diligente, prepara-lhe uma refeição. O único evangelista que descreve essa cena é Lucas, médico que pinta parábolas e escreve ícones. O médico Lucas encarnou o olhar grego e a escuta semítica, ação e meditação, a metafísica do Ser e a metafísica do Outro. Talvez seja isso o que diz na tela a anciã: são uma só, dentro de ti, Marta e Maria, Amor e Mistério, rio e mar, mar e rio. A jovem, sem deixar de socar o tempero, olha para fora da tela, para o Aberto que habitamos, em nossa direção, e parece docemente cantar ao nosso coração: o ser não é uma ilha, não está numa ilha Sevilha e não é por causa do istmo, mas por causa disto, o amor, sem o qual não reinventamos quem somos, não fazemos do caos cosmos. Eis o murmúrio, o clamor da tradição humanista da medicina de Hipócrates e Lucas para esta era virtual cheia de ilhas: sem o amor, não reinventamos o oceano para o verdadeiro descobrimento, para o descobrimento da Terra como o lugar sagrado das bodas entre o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, bodas para as quais todas as criaturas são convidadas, todas indistintamente, distintamente todas.
*Péricles Brandão: membro da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina, membro do Colégio Internacional de Terapeutas.