No Jardim Aberto ao Infinito


// Por Péricles Brandão*

Ixora coccinea – ilustração do botânico espanhol Francisco Manuel Blanco (1779-1845)

 

Faltava pouco para o sol se pôr a espalhar suas últimas lavas quando minha amiga muito querida Lauristela me convidou para dizer algumas palavras. Comecei minha fala, naquele sábado de primavera do encontro de nossa turma de escola, a lembrar que a palavra paraíso vem do persa antigo que quer dizer “jardim murado”, pairidaeza. O paraíso do império persa, desaparecido do mapa, era um espaço fechado que serviria de proteção contra o espaço selvagem, inculto, lá fora, supostamente uma ameaça à sua tranquilidade.

Esse modelo serve de alerta para os nossos tempos, ao evidenciar metaforicamente o grande desafio da humanidade: construir jardins de convivialidade sem os muros do egoísmo, do nacionalismo, do sectarismo, do fundamentalismo religioso ou de mercado, que isolam pessoas, grupos, sociedades com o pretexto de defesa contra a barbárie “do outro lado” e perpetuam os conflitos. São exatamente esses muros que impedem a visão da Terra como nossa morada comum.

Atitude completamente diferente, presente na tradição espiritual budista, é a do ser – Avalokiteshvara – que se recusava a entrar no Paraíso enquanto não estivessem prontas todas as outras criaturas. É o iluminado que integra generosamente a seu olhar todas as regiões de sombra do existir. Poderíamos traduzir livremente seu nome como “aquele que através da compaixão realiza a vontade da Consciência Pura, Fonte Criadora”.

Ishvara, parte do nome, é, numa coincidência significativa, o correspondente em sânscrito de ixora, a flor oriental de oferendas da qual é feito o muro do jardim da sempre gentil Jaqueline, onde aconteceu nossa festa. Ocorre que aquele muro é a rigor uma cerca viva com surpreendentes passagens, como se estivesse ali apenas para ornamentar os ritos de chegada e partida, na essencial comunicação e infindável movimentação entre o interior da casa e o mundo ao redor.

Os raios de sol entrando pelas frestas entre as ixoras escarlates pareciam reforçar o brilho e a beleza do espírito de hospitalidade. Era o tempo do Advento – e que forma de celebrar a expectativa da Encarnação do Logos existiria mais autêntica do que o exercício da suprema hospitalidade, a preparação de cada casa e de cada coração para receber a Criança Divina? Sim, porque também nossos corações eram todos como a casa com muro de ixora transposto por visitas e réstias.

Sob o olhar do Sagrado Menino, sob a perspectiva do Amor, do Ágape, o Novo Paraíso, transcendendo a ilusão cruel das fronteiras, é ilimitado, não exclui nada, ninguém, nem mesmo o estrangeiro ou o inimigo. É tão vasto que não há para onde expulsar criatura alguma. Reúne tanta luz que ser vivente algum, por menor que seja, deixa de resplandecer em sua participação legitimada pela procedência divina. Uma quase inaudível melodia angelical permeia Céu e Terra reconciliados.

Num universo transfigurado pela Encarnação do Verbo, tudo secretamente canta. Envolve sutilmente todas as dimensões uma harmonia em que fazem coro o reino mineral, o reino vegetal, o reino animal, a alma humana, ainda que ela não perceba completamente a complexidade de variações, de ritmos, de compassos. E era ao certo uma profunda melodia silenciosa que, no meio de tantas vozes felizes, tantas gargalhadas gostosas, tantos entusiasmados brindes ao som de velhas canções, nos atravessava e unia e inspirava em nossa festa.

Quando eu e Deinha, confortavelmente sentados no chão como dois colegiais, conversamos sobre As Cidades Invisíveis, sentíamos intimamente que a magia labiríntica da obra-prima de Italo Calvino podia ser menos fascinante do que a poesia dos incontáveis entrelaçamentos das nossas vidas todas. Sabíamos: as notícias que os tons de verde da grama, a nossos pés, traziam da primavera revelavam mais do verdadeiro poder que as notícias trazidas por mensageiros de todo o império até Kublai Khan, em seu solitário jardim de magnólias.

E se, por exemplo, a cidade de Zora permanecera imóvel e imutável para ser bem fixada pela memória, nós sabíamos todos: o segredo diante do tempo é a autotranformação permanente e o que mais tem o condão de nos manter próximos é paradoxalmente o fato de estar cada um ainda em busca, a caminho. Se, na cidade imaginária, a vida se apresentava como uma partitura musical em que não se pode alterar ou deslocar nota alguma, nossa realidade concreta se mostrava ali como uma partitura incompleta.

Cada um com sua presença – seus sorrisos, seus gestos, suas lembranças, suas brincadeiras, seus sonhos – ia acrescentando uma nota e outra nota a uma misteriosa composição em que até o acorde dissonante tem seu lugar e sentido. Porque a Criação é uma obra-prima inacabada. Cada um – com suas vocações, seus talentos, seus desejos, seus princípios, suas paixões, sua fé, suas esperanças, sua utopia – vai acrescentando uma nota aqui, outra ali, à partitura da grande sinfonia inconclusa.

Que a Criança Sagrada em cada um de nós escute sem cessar a estranha melodia entranhada em todo o universo, subjacente à História, imanente a todas formas de vida. Se há uma falha em tudo, como diz a canção de Leonard Cohen, poeta nascido em família judaica, se há uma ferida viva em cada coração, como diz o poema do místico persa Rumi, é assim que a melodia do Novo Paraíso, do Jardim Aberto ao Infinito, nos invade, é assim que podemos oferecê-la ao mundo para redimi-lo de seu tédio, suas ambições, suas injustiças, suas misérias, suas intolerâncias, suas violências, seu desespero, sua dor. Com amor! Amém!

*Péricles Brandão é membro da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina