Retratos da convivência


Escrito por Giovanna Ribeiro do Valle, artista, estudante de medicina e futura psiquiatra*

Em 2022, no 9° período da faculdade de medicina, fiz estágio de saúde mental em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) III. Um serviço de atendimento diário e noturno de transtornos mentais graves e persistentes.

Ao chegar no CAPS, a Convivência é o primeiro espaço visualizado, trata-se de uma grande sala onde os usuários esperam consultas/oficinas/prescrições, procuram o serviço pela primeira vez, ficam acolhidos, interagem, vêem televisão ou escolhem estar ali sem um objetivo específico. Esse espaço é fundamental, pois não é construído a partir de normas rígidas, mas sim, por meio do ato da própria convivência diária com o outro.

No início do estágio, escolhi ficar na Convivência, porque queria entender o movimento do serviço e interagir com os usuários acolhidos. Me imaginei conversando com as pessoas, ajudando no que fosse possível, encaminhando questionamentos para equipe e quem sabe construindo os famosos vínculos. Seria uma tarefa simples e prazerosa, afinal, quem não curte conviver?

Ao longo das primeiras semanas percebi que não era bem assim, a convivência desafia e incomoda. É difícil saber reconhecer o momento de se aproximar de alguém e respeitar se seu desejo for continuar só, o momento de oferecer ajuda, o momento de esperar e não interferir. Ao iniciar uma conversa, me sentia invasiva, inconveniente; a primeira abordagem era sempre minha: “Oi, qual o seu nome? Como você está? O que veio fazer aqui? Quer ajuda? (…) ” Um interrogatório chato, que acabava prejudicando qualquer tipo de contato.

Após experienciar essas dificuldades, manifestei o meu incômodo para equipe e recebi um conselho : “Deixe que os usuários cheguem até você”. Resolvi, de forma instintiva, usar minhas  habilidades enquanto artista/ilustradora para colocar em prática o que escutei. Sem entender direito como funcionaria, sentei na mesa localizada no centro da Convivência para desenhar com o material disponível (lápis de cor, giz de cera e papel). Essa atitude por si só atraia aqueles que transitavam pela sala e alguns se juntavam para desenhar, o que proporcionava uma troca artística.

Estar ali fazendo arte era ótimo, mas ainda não era o que eu estava procurando. Em uma dessas trocas houve a construção de um retrato, sugestão de um usuário que me desafiou a desenhá-lo, foi quando descobri essa ferramenta potente, que proporcionou uma conexão inovadora e profunda. Desenhista e retratado, ambos fomos vistos, na infinitude do rosto do outro, na humanidade, nos gestos e no discurso que a minha relação com aquela pessoa proporcionou.

Pensando nisso, resolvi criar uma metodologia que chamei de Retratos da Convivência. Inicialmente, convidava aqueles que se aproximavam a participarem da experiência. Depois de um tempo, a demanda pelo retrato aumentou e as pessoas começaram a me procurar diretamente, o que não excluiu a curiosidade espontânea ao se deparar com a atividade. Na confecção dos retratos utilizava técnicas de desenho para traçar o rosto e as emoções observadas durante o encontro. A arte, concluída em aproximadamente 40 minutos, era entregue ao retratado e uma cópia feita para pendurar na parede do CAPS com sua autorização. Foram 24 usuários retratados na atividade iniciada no mês de Maio e concluída em Dezembro. No decorrer do fazer artístico, surgiram várias  manifestações verbais e não verbais, inclusive informações importantes para o direcionamento do caso, as quais memorizava e, após a atividade, anotava para comunicar na reunião de final de turno.

Recebi apoio da equipe e o incentivo do meu orientador, foi um prazer trabalhar com pessoas que acolhem e fomentam a inventividade.

Grafite sobre papel. Autora: Giovanna Valle. Fonte: Acervo pessoal. 2022

Aos poucos fui entendendo o impacto dessa ferramenta, o retrato não é reflexo da aparência do ser, nem de sua representação imediata, nem um raio-X : mais do que isso, funciona como matriz de reflexões, questionamentos e possibilidades, um antídoto poderoso contra a banalização da vida humana e seu estado de alteridade. Interessante perceber as reações frente a construção dos retratos: olhares inquietos, gestos envergonhados, arruma o cabelo daqui, uma espiadinha dali, espanto ao se reconhecer nos traços inacabados, sorriso no canto da boca, o brilho de quem está

sendo visto.

Nos encontros, o diálogo fluía de forma natural à medida que pertencíamos a uma mesma paisagem, nos conectávamos com algo em comum.

Relatei essas trocas através de anotações e separei alguns trechos:

“Você é o meu muso de hoje, minha inspiração pra desenhar!”

“Eu desenho pra me acalmar, e você o que faz pra se acalmar?” “Eu gosto de escutar música..”

“ Doutora, meu nariz é igual ao da minha mãe.” “Ahh é? Me conta, como é a sua mãe? Vocês têm o jeito parecido também?”

“ Poxa, não sabia que eu era tão bonito!”

” Você vai ser médica mesmo? Nunca vi médica fazendo isso..”

” Olha só, você desenhou até a minha cicatriz! Eu era muito levado quando criança, essa foi brincando com o meu irmão..”

Esses questionamentos e constatações davam início a uma conversa descontraída, carregada de lembranças afetuosas, trocas de interesses, desconfortos, frustrações. Algumas vezes discursos delirantes, que recebiam a mesma atenção e escuta.

Qualquer encontro pode suscitar desencontros, ou seja, opiniões, vontades, valores divergentes. Esses momentos também foram relatados e aqui estão fragmentos:

“Eu quero o cabelo vermelho.”

“ Cadê a minha pele clara?”

” Os seus traços contam uma história. Você é carregada de traços dos seus antepassados, olha que bonito se olhar e ver tudo isso.”

“Não me vejo dessa forma.”

“ Não sou careca! Trouxe o retrato pra você botar mais cabelo.”

Espelho criado pela oficina de Artesanato.
Acervo pessoal. 2022

Esses relatos me fizeram pensar até que ponto a forma que eu enxergo exprime a verdadeira imagem, pois não se trata apenas da figura que meus olhos vêem, mas sim da percepção que o outro traz de si mesmo. Era preciso escutar a verdade do usuário e conduzir o retrato de forma que ela fosse executada. Foi quando adotei um novo elemento: O espelho, acompanhado da palavra “escuta”. Antes de iniciar o retrato, pedia pro usuário se olhar no espelho e me dizer como se via.

A resposta geralmente era um sorrisinho sem graça e voltávamos pra mesa. Mas também escutei:

“ Eu nem tenho espelho, doutora “

“ Nossa, tô precisando cortar o cabelo”

“ Cruz credo”

“ O meu olho é mel da cor do leão.”

“Minha pele é branca”, meu nome é Britany!”

“Pode me pintar de vermelho.”

 

 

Entendi a importância disso para a construção de um diálogo respeitoso que permitisse uma abertura livre de julgamentos. Cuidei para não fazer discursos de

empoderamento pra quem tem dismorfia corporal, para não desenhar traços incompatíveis com alguém que sofre disforia de gênero.. ou simplesmente entendi que o olho mel da cor do Leão simboliza a força interior “ Sou feroz que nem um Leão.” Que querer o cabelo vermelho é uma vontade de pintá-lo “ Fiquei bonita, vou no salão”.

A arte abraça elementos da subjetividade, permite criar novas imagens, impregnadas com outros significados, sentimentos e reflexões.

Grafite, caneta esferográfica e giz pastel sobre papel. Autora: Giovanna Valle. Fonte: Acervo pessoal. 2022

Na entrega dos retratos as reações foram as mais variadas; felicidade, empolgação, abraços, apertos de mão, olhos brilhando, passeios com o retrato pelo CAPS para mostrá-lo.

“Pode colocar ali na parede junto com os outros!”

“Olha eu! Parece comigo?”

” Vou comprar uma moldura pra colocar na parede da minha casa.”

“Quero aprender a desenhar também.”

“A minha aranha parou de gritar!”

“Grrrrrr! Forte igual um leão.”

” Ai, muito obrigada! Fez meu dia.”

” Foi um prazer Giovanna, te vejo na próxima quarta.”

Que impactante foi escutar isso da primeira vez, aquela pessoa se conectou comigo de alguma forma. E para isso, precisei ser eu mesma, com esse meu hábito de desenhar em qualquer lugar a qualquer hora. Deixei pra trás aquele esforço de chegar até o outro perguntando milhões de coisas na tentativa de me fazer presente. A troca de afetos é feita a partir de um convite e não de uma urgência para entrar.

Houve um momento que estava desenhando um retrato sentada na convivência e fui pega de surpresa. Entretida com o gestual e a fala do usuário, não reparei na afobação de uma outra usuária que também queria ser retratada. Foi quando, em uma crise, ela me agrediu. Foi bem impactante, fiquei nervosa e fui acolhida primeiro pelo usuário, que me pegou pela mão dizendo: “Para de me desenhar, vem aqui que eu vou pegar uma água pra você”. Me levou até o seu quarto, me entregou a água e me abraçou.

Depois fui acolhida pela equipe e conversando com o meu orientador entendi a importância de estar sempre atenta e ter alguém por perto nessas atividades. Ele também sugeriu a criação de uma oficina, para qual os usuários seriam encaminhados, evitando situações como essa. Propus a Oficina de Desenho para coordenação, que foi aceita e aconteceu de Setembro à Dezembro, todas as quartas feiras de 14h às 16h. Conduzida por mim, com auxílio de um oficineiro da equipe.

Me senti tocada por todos os usuários que participaram dessa atividade, só de estarmos sentados nos olhando. Recebi um pouco deles e eles levaram um pouco de mim. Houve muitos atravessamentos no decorrer das sessões de retrato, mas trouxe esse do usuário que me pegou pela mão, porque ali me despi do meu papel e não precisei comunicar, meu olhar pedia por ajuda, e ele captou. Assim como eu percebi em diversos olhares o vazio, a tristeza, a alegria, a esperança, a dor, a resiliência, o cansaço, a exaustão (…)

Escrevi um poema sobre essa percepção:

No olhar,

Carrega angústia

Esconde tristeza

Acolhe dor

Cria expectativa

Acomoda cansaço

Vira exaustão

Persiste.

Grita atenção!

Expulsa desânimo

Desvia apatia

Quer compaixão

Busca resiliência

É vitalidade

Guarda paixões

Traz brilho

Leva alegrias

Recebe sabedoria

Encontra esperança

Traduz admiração

Demonstra gratidão

Mira propósito!

Grafite sobre papel. Autora: Giovanna Valle. Fonte: Acervo pessoal. 2022

Um dos retratos não foi entregue, o paciente não voltou para buscá-lo. Saiu do acolhimento por uma questão clínica e foi internado no hospital, onde veio a falecer. História triste de descaso por parte dos profissionais de saúde daquele hospital, um ato irresponsável!

A responsabilidade nos faz pensar o outro a partir do momento que o outro está nu, desprotegido, despido de seus direitos, do sentido da vida em razão do sofrimento, da miséria, e de não ser considerado pessoa, ser visto apenas como um contingente negado ao longo da história. “Sofrer pelo outro é ser responsável por ele, estar em seu lugar, consumir-se por ele” (Lévinas). Precisamos exercer com unhas e dentes essa responsabilidade!

O retrato desse usuário foi entregue para sua mãe em uma visita domiciliar. Expliquei ter feito o desenho quando o filho estava no CAPS em um momento feliz. A mãe se emocionou muito ao ver a imagem.

” Que coisa linda! Meu filho adorava desenhar, deve ter gostado muito do retrato. Vou colocar aqui na sala perto da identidade dele.”

Uma cópia do retrato foi colocada no CAPS para homenagear esse usuário muito querido por todos da equipe.

Nessa mesma visita, conheci seu irmão mais novo, que ficou um tempão olhando pro retrato. Cheguei pra ele e disse ” Vê se aparece lá no caps, tá rolando uma oficina de desenho todas as quartas. Acho que você vai gostar “. Ele não faltou a uma oficina, ficava me esperando na porta do CAPS. ” Professora, vim te ver”.

Frente a convivência e seus desafios, encontrei uma forma de vencer resistências e temores: Não estava confortável na forma de me relacionar, precisei me dispor a isso. Criei em mim um espaço para o outro, na medida em que me deixei ser afetada por ele em sua alteridade. E para isso a arte do retrato foi um importante mediador, trouxe a descontração e leveza necessárias para estabelecer um diálogo e permitir a convivência.

Percebi que a aproximação e o cuidado não podem ser padronizados, se constroem a partir da sensibilidade para analisar a necessidade de cada um, sem imposições. “A relação com o outro é uma relação com o mistério” (Lévinas). O mistério não deve ser desvendado por nós, profissionais de saúde, na tentativa de entender o ser. Somos convocados a ocupar outros papéis e mudar as relações de poder: ir contra a relação autoritária entre profissional de saúde e paciente mediada por normas que impedem a existência de trocas autênticas, um problema no cotidiano da minha

formação médica.

E se o médico que clinica também é aquele que organiza a festa, pinta, canta, dança; e o paciente, que antes era mero espectador, agora opina, organiza, reivindica, diverge, pinta, canta, dança.

Como efeito, teríamos a criação de um espaço afetivo e artístico, marcado pela tentativa de horizontalizar as relações. Um lugar onde arte é capaz de estabelecer pontes que conectam o singular com o compartilhado, amplificando a sensação de união e pertencimento.

 

* Giovanna Ribeiro do Valle é fundadora da Liga Acadêmica de Humanidades da Fundação Técnico Educacional Souza Marques – FTESM.

O artigo é o resumo de trabalho apresentado no VIII Congresso de Humanidades Médicas.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

RAMOS, José Artur. Retrato: o desenho da presença. 2007. Tese (Doutorado em Desenho) – Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-artes, Lisboa, 2007.

ZANON, Andrei. O princípio da alteridade de Lévinas como fundamento para a responsabilidade ética. Perseitas, Colombia, v. 8, p. 75-103, 2020.

RESENDE, Tania Inessa. Eis-me aqui: a convivência como dispositivo de cuidado no campo da saúde mental. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

TENÓRIO, Fernando. Psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

 

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