Caminho dos Caracóis


Escrito por Maíra Dantas*

Ao final de cada dia de plantão, a jovem plantonista agradecia cansada pelo privilégio de poder servir em meio a tantos desafios enfrentados na difícil realidade do covidário**.

Cada dia vivenciado naquele confinamento correspondia a enorme aprendizado de valorização da grandeza existente nas pequenas coisas, da singeleza amistosa da natureza e do inexplicável milagre da vida.

Para cada hora de cuidado dedicado e exaustivo aspirava apenas por uma hora de caminhada filosófica ao ar livre, onde os alarmes pudessem ser temporariamente substituídos pelos sons aprazíveis da natureza cantante.

Desejava meditar na noite iluminada, vivenciando a solitude pacífica e agradável do caminho costurado no meio da mata, revigorando a energia com novas esperanças, para o enfrentamento do porvir.

E assim os sons da mata inspiravam lampejos reflexivos em resposta aos questionamentos existenciais que pululavam a mente, alimentados por um sem números de emoções vivenciadas, a partir das desafiadoras experiências assistidas.

E foi num desses dias de caminhada imersiva que desastradamente machucou um inocente caracol, que atravessava tranquilamente de um lado a outro do passeio, cuidadosamente pavimentado por pedras portuguesas.

Foi acometida por enorme sentimento de pesar. Não bastasse não poder evitar tantas mortes de pessoas vitimadas por um vírus letal, seria agora responsável por uma perda completamente evitável. Acudiu o coração transpassado por culpa alegando que deveria haver alguma forma de redenção.

Numa sentença rapidamente emitida, se comprometeu a recolher os caracóis imprudentes que decidissem se arrojar no caminho realocando-os todas as noites num lugar mais seguro e distante de perigosas pisadas humanas.

O cumprimento da tarefa trouxe consigo outros aprendizados e novas percepções.

Chegava a ser divertido observar de soslaio o olhar incrédulo dos vigilantes que apuravam a vista para ter certeza da atitude, talvez temendo por sua sanidade mental.

Ainda assim, seguiu cumprindo seu desiderato conforme prometido, com foco no propósito consciente, de resgate dos caracóis sobreviventes. Foi apenas depois, passado muito tempo de atuação socorrista, que pode perceber do que se tratava.

O salvamento dos caracóis compensava no coração o sentimento de impotência por desconhecer alguma estratégia terapêutica, que pudesse salvar vidas humanas, de um vírus letal abruptamente disseminado numa inesperada pandemia.

O salvamento dos caracóis a fez entender que não podia proteger a todos o tempo todo, mas que lhe cabia, socorrer todos aqueles que cruzassem o seu caminho.

Também entendeu que não adiantava reclamar se voltassem a ser imprudentes, se expondo inadvertidamente aos riscos sem proteção. O que lhe cabia era voltar a socorrê-los quantas vezes fossem necessárias.

Entendeu que praticar a beneficência e maleficência independia de como o caracol exercitava sua autonomia.

Aprendeu que julgar se sua atitude era prudente ou não, atrasava a caminhada e não evitava em nada o rompante dos caracóis. Afinal, uma distração de sua parte poderia resultar numa pisada fatal.

Enfim, a única e verdadeira atitude salvadora era manter a atenção na tarefa assistencial sem desperdícios julgadores.

É verdade que alguns caracóis se agarravam ao solo sem entender que se tratava de uma medida sanitária preventiva, exigindo do socorrista um pouco mais de destreza para que não fossem esmagados por algum excesso terapêutico.

E num dia particularmente difícil, em que parecia estar vencida pela exaustão, acabou por se atrasar para o nobre compromisso. Então, se percebeu assolada por questionamentos severos sobre quais limites seria capaz de suportar e sobre o verdadeiro sentido de tudo isso.

Foi quando se lembrou do juramento proferido e juntando o resíduo de forças que ainda pôde encontrar no seu âmago, se reergueu por exercício mental disciplinar como um soldado que ruma incontinente para o cumprimento da sua missão.

E qual não foi sua surpresa quando ao chegar no local de partida habitual, avistou uma cena que de tão inusitada, parecia ser miragem. Em vista do seu atraso, os vigilantes diligentes salvavam os caracóis, retirando-os do caminho com firme delicadeza.

E nessa noite, pela primeira vez na pandemia, a jovem plantonista chorou.

Entendeu que o papel do médico socorrista pode ir muito além de salvar vidas.

O papel do médico socorrista pode se perpetuar, quando ensina pela força do exemplo, o resgate da verdadeira humanidade que ainda reside vicejante e majestosa no interior de cada alma humana, no interior de cada um de nós.

(Baseado em fatos reais)

 

*Dra. Maíra Dantas é médica intensivista, especialista em Gestão em Saúde, conselheira federal pelo Estado da Bahia e membro da Câmara Técnica de Bioética e da Comissão de Humanidades do CFM.

**As Unidades de Terapia Intensiva dedicadas ao atendimento de pacientes vitimados pela SARS-CoV-02 e contaminados pelo COVID-19 foram apelidadas de Covidários durante a pandemia.

 

 

 

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