A fabulosa arte da escuta como encantamento
Escrito por Péricles Brandão*
Os distraídos nem notam como os céus, enternecidos com a coreografia de voos ágeis, voos ondulados, tingiram de azul-clarinho suas pálpebras. Não percebem sequer a nítida imagem invertida, refletida no líquido olhar tupi-guarani – a imagem do pássaro “que escapa ligeiro”, deixando como rastro o brilho do universo inteiro. Quem escuta sem total atenção e pensa ser fácil imitar o canto desse surucuá, em sua sequência lenta e aparentemente curta, não ouve as notícias que traz de um mundo longínquo e misteriosamente íntimo, não sabe dos seus ritmos ocultos, não sabe dos seus acordes mais sutis, de suas pausas enigmáticas, de seus duetos com as vastidões, não sabe da alegria de compartilhar as recordações de tempos ancestrais e os anseios do inesperado.
Exausto, ao fim da trilha, deitado na clareira da mata, escutei-o certa manhã: – Que te pesa na alma? Que te pesa na alma, homem? Quetzal, uma espécie de mestre relutante, o mágico de minha família circense, já não te ensinou o essencial? Já não te ensinou a cantar por simples travessura, por discreta comemoração, após mais uma travessia da noite? Já não te ensinou a cantar para anunciar que a imensidão é o único território em que cabem os nossos sonhos? Já não te ensinou a interromper subitamente o canto e desaparecer, por trás da cortina de luz, sem esperar aplausos que não sejam para toda a Criação?
Enquanto seu verde-cobre e seu dourado cintilante confundiam-se com os reflexos do sol nas copas das árvores, prosseguiu como se fosse a voz da Natureza o seu canto: – Já de muito o homem transmite, de geração em geração, que um deus parecido com o quetzal ensinou-o a polir o verde do jade e a buscar o poder ilimitado. Mas suas plumas não foram feitas para o cocar do imperador, nem para o manto do sumo sacerdote, para disfarçar a serpente ou homenagear o conquistador de além-mar. Foram feitas para outras cortesias, para, polidas pelo olhar, refletirem uma verdade livre das impurezas espalhadas pelo poder. As plumas do quetzal foram feitas para seus jogos nupciais, para os jogos nupciais entre o Céu e a Terra.
Depois de uma pausa inspecionando o vazio como se o silêncio fosse a sua casa, recomeçou a melodia com novas notas: – Tem séculos o homem transmite, de geração em geração, que o deus parecido com o quetzal ensinou-o a fazer mosaicos e tecer roupas, em busca de segurança e conforto para o olhar, para o corpo. Mas suas plumas não foram feitas para cobrir sua nudez diante do Criador: só quer que se leia em sua pele uma louvação às cores da Criação, nisso consistindo sua roupa sempre nova e sua elegância. E os desenhos que seu voo traça no ar, quando gravados em mosaicos no chão, não sirvam senão para o homem também sentir voar seu coração na direção do Céu enquanto os pés muito firmes caminham sobre a Terra.
Como se quisesse selar uma amizade, antes da partida, cantou mais longamente, contou ainda: – O ser divino que astecas em transe contemplaram, inspirados pela visão do quetzal, era tão modesto que varria os caminhos para que descessem do céu os deuses da chuva e fizessem chover sobre a terra cheia de grãos de milho e sobre as árvores da floresta. Sim, o quetzal traz sempre uma simplicidade iridescente, é com o mesmo humilde esplendor que executa seus balés no ar ou, imóvel num galho, observa a delicada arte do abacate da mata. Mas, quando lhe é negada, sem possibilidade de resistência, a liberdade, morre, torna-se pó multicor, para renascer emprestando novos tons às estações. Ele precisa honrar com sua insubmissa generosidade o pássaro primordial.
Conta-se que um vento forte, soprando em círculos perfeitos, agitou a árvore sagrada. E, do redemoinho de folhas verdes e brilhantes, voou como uma flecha o primeiro quetzal. Não há modo mais certo de o espírito honrar suas raízes do que ganhando asas. A essência da liberdade inaugural é a recusa de ser folha solitária que flutua e flutua para morrer, seca, no chão. Sua maior expressão é voar e cantar alto e profundo, a renascer e renascer dos redemoinhos do mundo. Se o deus feito à imagem e semelhança do quetzal ensinou o homem a medir espaço e tempo, o quetzal, dessemelhante às imagens, ensina a errar pelas sendas do Infinito e acolher os sinais do Eterno.
Se Quetzalcoatl trouxera as primeiras sementes de cacau do Céu para a Terra e os astecas agradeciam a abundância das colheitas com rituais de sacrifício, o profeta involuntário quetzal ensinara outra coisa. E completou com aguda mansidão: – Doçura se paga com doçura, celestial doçura se paga com terrenal doçura. Sem dúvida, não quer o sacrifício da vida Aquele que criou tudo no início. Não há sequer dívida quando se recebe uma dádiva divina, exceto pela urgência cósmica de ser multiplicada e dividida através de um amor sem medida.
A alma feliz, com uma leveza maior que a da retriz de um quetzal, que a do pólen no ar, ocorreu-me, por um instante, ver, no ventre resplandecente do surucuá que fugia acima de minha cabeça, o último sinal de um ser grávido de luz. Sob a Luz, desvela-se o que para os desatentos pode soar estranho: está diante da gente o espaço-templo de Tlālōcān, mas, antes, está em mim, em ti, mimetizando-se entre a noite e a manhã, está no regaço da casa, na distância, está no sonho, está na vigília, está na luta, está no descanso, está na messe, está na festa, está na carícia, está na prece, está no silêncio, está no canto – em todo local, aqui, acolá, através, além do tempo, está Tlālōcān e seu intraduzível encantamento. Serenamente inquieto, descansei ali mais um momento, depois ergui-me, e, entre sombras e réstias, pelo lado da mata que não tem trilhas, parti.
*Péricles Brandão é membro da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina