Parreiras Horta: o ideário da medicina iluminista em terras de Sergipe d’El Rei


// Henrique Batista e Silva *

 

Parreiras Horta (1884-1961) - Base ArchEu pretendo, neste texto, contribuir para a reflexão da medicina sergipana, numa perspectiva do ideário iluminista em solo sergipano, tendo como foco o médico Parreiras Horta, criador do instituto que leva seu nome.

Para se ter uma ideia sobre a relevância deste médico, quero destacar a citação do dr. Augusto Leite, nome de prestígio entre seus contemporâneos, reconhecido hoje como patrono da medicina. Diz ele:

“Parreiras Horta trabalhou pelo esplendor da classe médica e pelo bom nome e felicidade de Sergipe”. O outro foi diretor da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Sergipe, Dr. Jessé Fontes:

“Veio, sacrificando talvez os seus interesses profissionais, instalar o nosso primeiro instituto científico, que virá abrir novos e luminosos horizontes à medicina em Sergipe”.

É nesse propósito que buscaremos destacar fatos e feitos dessa figura médica – discípulo estimado de Oswaldo Cruz, diplomado pelo Instituto Pasteur e renomado cientista –, que fizeram dois prestigiados médicos identificarem sua importância para a medicina quando esteve em Aracaju.

Paulo de Figueiredo Parreiras Horta nasceu na transição do século XIX para o XX, em 24 de janeiro de 1884, no Rio de Janeiro. Quando ele veio ao mundo, a cidade era a Corte do Brasil, sendo Imperador Dom Pedro II, no período denominado de Segundo Império (1840/1899). Faleceu em 29 de julho de 1961, aos 77 anos de idade.

Com o falecimento de sua mãe, Parreiras Horta, então com 8 anos, foi criado por seu avô materno, o visconde de Ouro Preto, que exerceu influência vertical em sua personalidade até obter o título de médico. Nesse sentido, a vida de seu avô materno foi seu modelo de moralidade e de dedicação à causa pública. Além do visconde, sua trajetória profissional gravitou em torno de dois notáveis da medicina, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, líderes de um movimento renovador na política de saúde, o sanitarismo brasileiro.

Formou-se em medicina em 1905 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; antes, em 1903, recebeu o título de farmacêutico, que veria a ser fundamental em sua vida de pesquisador. Decidido a seguir a carreira médica, ainda estudante, juntou-se à equipe do Instituto Manguinhos, sob a liderança de Oswaldo Cruz. Este foi o mais importante modelador de sua personalidade profissional, influenciando-o de modo horizontal; seu tutor nos estudos e nas suas pesquisas, por quem Parreiras tinha admiração especial. Tornou-se também amigo e colega de trabalho de outro médico que muito contribuiu para sua formação médica, dr. Carlos Chagas.

O Brasil, no início do século XX, de par com os primeiros anos da implantação do regime republicano, iniciava um processo de modernização, sustentado pelas ideias de construção de um novo homem em nova sociedade, fruto do Iluminismo. Este ideário implicava na introdução de métodos científicos e de tecnologias correspondentes às necessidades sociais. Na Europa, crescia o número de textos e documentos científicos referentes à medicina, cujos avanços, vinculados à pesquisa, passaram a ser cada vez mais incorporados na prática médica brasileira, como a medicina experimental de Claude Bernard e os estudos da bacteriologia da equipe liderada por Louis Pasteur. A ciência se entronava no lugar das conjecturas metafísicas e dogmáticas, ao lado de um processo intervencionista, resultado da aproximação do segmento político com as classes sociais, com a finalidade de renovação do pensamento político e do espaço urbanístico das cidades.

A partir das últimas décadas do século XIX, em Sergipe, começava um processo de renovação das suas instituições sociais, notadamente econômicas, educacionais e sanitárias, culminando no governo de Graccho Cardoso (1922-1926).

Nos idos de 1923, ocorreu um fato que marcaria a história da medicina sergipana. Foi o convite feito ao dr. Parreiras Horta pelo presidente da província de Sergipe, dr. Graccho Cardoso, para criar uma instituição científica em Aracaju. Parreiras Horta, médico, professor, pesquisador, professor acadêmico, possuía um currículo respeitável. Homem engenhoso, com ampla capacidade administrativa, e vocacionado para a coisa pública, aceitou o convite do presidente da província para se transferir, com sua família (esposa e 6 filhos), do Rio de Janeiro para Aracaju, sendo hóspede oficial do governo. Pisou em solo sergipano em 20 de junho de 1923, finalizando sua missão exitosa em 8 de dezembro de 1925.

Parreiras Horta e Graccho Cardoso conheceram-se desde os tempos que o futuro governador visitava o Instituto Oswaldo Cruz, do qual Parreira Horta fazia parte do grupo de pesquisadores da instituição. A amizade se intensificou como colegas de docência da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, tendo inclusive publicado, em 1919, dividindo a autoria, o artigo: “Bases para o Código da Polícia Sanitária Animal e Regulamento das Diretorias de Indústria Pastoril e de Polícia Sanitária”. Partilhavam das mesmas ideias de modernização da sociedade, de forma gradual, formuladas pelos pensadores europeus do século XVII e XVIII, substituindo as estruturas e o modo de pensar conservador. Esta concepção, que estava em marcha em várias cidades brasileiras, implicaria numa reforma dos métodos e práticas da política sergipana.  Graccho Cardoso, em tese membro da elite oligárquica conservadora, pertencia ao grupo dos políticos inovadores e, assim, construiu seu plano de governo. Teve aprovado seu plano de trabalho pela Assembleia Legislativa, em 27 de outubro de 1922, ao tomar posse como presidente da Província de Sergipe.

Deste modo, Graccho Cardoso, ao iniciar seu governo (1922/1926), havia elaborado um plano estratégico de desenvolvimento do estado com base em sua experiência adquirida na província de Ceará como secretário de governo de Nogueira Acioly. Cardoso, homem de visão progressista, ainda que algumas iniciativas de reformas no estado haviam sido ensaiadas por seu engenho, houve de ser ele o mais destacado reformador das estruturas sociais do estado.

É neste contexto que o presidente da província sergipana incumbiu Parreiras Horta para criar um complexo laboratorial, um centro de saber, iniciando sua construção em 23 de julho de 1923. Parreiras Horta foi o responsável por toda construção da instituição, desde concepção arquitetônica da entidade (destaca-se o belo portal mourisco), a organização funcional da nova entidade e a contrataçã

Ao chegar em Sergipe, Aracaju naqueles tempos era pouco desenvolvida, trazendo ainda traços coloniais, uma cidade insalubre, onde a medicina era praticada em condições precárias. Não obstante o exercício devotado dos médicos, seja nos precários hospitais ou em seus desaparelhados consultórios, exerciam a medicina sem o apoio laboratorial e carente de recursos diagnósticos e terapêuticos. Os poucos médicos disponham somente dos seus conhecimentos e de poucos exames complementares. Exemplo dessa situação de precariedade era o Hospital Santa Izabel, o maior do estado, considerado anacrônico e desatualizado, no qual somente os sexos não misturavam nas enfermarias, que acolhiam todos os tipos doentes, desde as síndromes febris aos operados de todas as intervenções cirúrgicas.

Ao criar um centro de saber, contribuiu para o aprimoramento da medicina fundamentada na pesquisa científica e, em consequência, para o melhoramento das condições de saúde da população sergipana. Pioneiro na implantação do novo modelo de medicina, referenciada pelas pesquisas como componente indispensável para a prática moderna da profissão.

Foi Parreiras Horta que trouxe os seguintes avanços:

1) Quem esclareceu em definitivo a etiologia das chamadas “Febres de Aracaju”.

2) A fabricação e uso das vacinas orais contra a febre tifoide, paratifoide A e paratifoide B (aplicadas pela primeira vez no Brasil).

3) Auxílio laboratorial no diagnóstico das enfermidades infecciosas e parasitárias.

4) Esclarecimento diagnóstico pela primeira vez de casos de difteria pelo isolamento em culturas do bacilo de Loeffler.

7)  Uso da insulina (em primeira mão) no tratamento dos diabéticos.

8) O instituto atendia, além dos exames citados, também o campo dos insumos, produzindo também medicamentos como o óleo canforado, cafeína, sparteína, iodeto de sódio a 10%, tártaro emético, água bidestilada, cianeto de mercúrio, soro fisiológico e soro glicosado.

9) No mesmo caminho foi o primeiro a fabricar e aplicar soros (soro antitetânico e antiofídico), e vacinas antivariólicas.

A Sociedade de Medicina e Cirurgia de Sergipe, nas palavras do seu representante, dr. Jessé de Andrade Fontes (1881-1961) reconheceu PH como o criador da primeira instituição científica de Sergipe. “Ao criar o Instituto Parreiras, Horta inaugurou para Sergipe uma nova fase da medicina”.

Deste modo, Parreiras Horta plantou o germe das pesquisas médicas em terras sergipanas, iniciando a chamada medicina experimental, auxiliando os médicos a diagnosticar as causas das doenças, inclusive esclarecendo definitivamente a misteriosa Febre de Aracaju, como febre tifoide.

Parreiras Horta viveu marcado pelo processo da secularização da sociedade, posto em marcha pela Ilustração.

A tópica central da retórica iluminista comparece com força na luta entre as luzes da razão e as trevas da estagnação e da ignorância. É nesse sentido que a expressão “homem arquiteto do próprio futuro”, da Enciclopédia, que Diderot e D’Alembert deram a esse conceito uma dimensão pedagógica: a obra não é somente teórica, mas também prática, na qual o homem aprende a construir seu habitat e, principalmente, um sistema de ideias no qual ele é o responsável pelo desenvolvimento da sociedade.

Parreiras Horta pode ser identificado como verdadeiro herdeiro do Iluminismo à medida que exercitava o conceito de que o progresso deve ser fundamentado na razão, de caráter eminentemente reformista, não de forma radical, mas de modo gradual. Acreditava que somente a aplicação dos avanços econômicos e sociais – impulsionados pela ciência e tecnologia – são imprescindíveis para a melhoria da condição humana.

Parreiras Horta acreditava na importância da precisão: somente a pesquisa da natureza, centralizada na ciência, pode retirar o homem da ignorância. E exercitava o outro fundamento do Iluminismo que possibilita a racionalidade crítica: aplicar o conhecimento científico instrumentalizado na construção de uma nova sociedade.

É nesse contexto histórico que considero Parreiras Horta como pioneiro da medicina “cientifica” e como herdeiro do ideário iluminista para as terras de Sergipe d’El Rei.

 

* Henrique Batista e Silva é mestre em Cardiologia, professor aposentado do Curso de Medicina da UFS e membro da Comissão de Humanidades Médicas do CFM.

 

 

 

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