Mateus: O Que é Mais Teu Que Meu?


Agélio Novaes, Mateus e o passarinho, 2022.

 

Péricles Brandão*

Vê, em minha folia, não há mais herdade, não há mais capitanias nas vastidões da Verdade, não há mais compromisso que não seja com o Paraíso, não há mais sangria que não seja das tintas da minha disfarçada alegria.

Não há mais ouros como havia na rocha fria, são outros brilhos, quentes, que rondam as gentes e a minha cantoria. Não há mais tesouros ocultos, nem teus, nem meus, este é o mistério do sério Mateus.

Mas se não há mais em tua pátria do que pode mostrar um mapa, há muito mais do que se contempla num atlas e suas linhas para revelar da Terra, nossa mátria: ela se veste de estampas floridas para brincar comigo inspirando minha fantasia.

Não haverá mais país que seja teu sem que seja meu, descobrimentos teus que sejam a negação dos meus, desbravamentos teus que sejam o saque dos encantamentos meus, é o que canta o Mateus, é o que diz, quase feliz.

Os reinos passarão como as horas sob o olhar do Menino Eterno, todos os reinos, passará todo saber que é surdo ao pulsar em nosso peito, passará a euforia da luta em prol de causa que separa, mas essa prosaica poesia não passará.

Não passará o passarinho em meu ombro, que para teu assombro também sangra ao cantar, irrigando com suas líquidas melodias, seus úmidos gritos desde o sertão até o mar.

É em ti e em mim – numa viva presença, não acima das nuvens ou no mar alto, na tardança sem fim do amanhã – a Yvy Marã E’ỹ, a Terra Sem Males, que faz, pela mais natural das leis, todas as almas irmãs.

A Yvy Marã E’y é ali onde a mina d’água que rega a maniva não é a mina de lágrimas amargas da mãe da menina linda Mandi ou da mãe de sua mãe ou da Grande Mãe esquecida, ainda que viva.

É bem ali onde sob a casca a raiz da mandioca é de uma brancura que nunca engana, nunca envenena as minhas ou as tuas entranhas, nunca deixa a tua e a minha alma loucas e estranhas.

A Terra Sem Males é bem aqui, mais íntima que os meus ossos, onde sinto meu sonho salvo e são: esse sonho tão intenso de com o som de um pandeiro, arremedando o batuque do coração, acordar o mundo inteiro.

*Péricles Brandão: membro da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina