A falta que o conhecimento de humanidades médicas nos faz


// José Eduardo de Siqueira*

Emmanuel Lévinas, lituano de nascimento, emigrou para a França em 1923, onde realizou seus estudos filosóficos, aprofundando-se no campo da fenomenologia com Husserl e Heidegger. Foi professor nas Universidades de Poitiers, Paris-Nanterre e finalmente na Sorbonne. Crítico do racionalismo que privilegiava a exaltação do Eu, dedicou-se a refletir sobre a importância do Outro, estimulando a criação da corrente filosófica conhecida como ‘ética da alteridade’.

No entendimento do autor, toda pessoa teria como dever ético irrevogável, responsabilizar-se pelo ofício de cuidar daqueles seres humanos que se encontrassem em condições de vulnerabilidade, assumindo a tarefa de dirigir-se para fora de si na busca de acolher o Outro. A ética do um-para-o-Outro, que no caso da medicina o um, seria o médico, que se dedicaria a acolher o Outro, no caso, o paciente fragilizado pela enfermidade. Só assim estaria garantido o exercício humanizado da medicina, condição há muito solicitada pela sociedade moderna, que pede por diálogo simétrico e respeitoso entre médico e paciente.

Na segunda metade do século XX, o clínico espanhol Pedro Lain Entralgo ensinava que “o profissional que pretendesse exercer a medicina como arte, deveria habilitar-se no saber de humanidades médicas’. Nos primeiros anos da década de 1970, André Hellegers, primeiro diretor do Instituto Kennedy de Bioética afirmou que os problemas que se apresentariam aos médicos, nos anos subsequentes seriam cada vez mais de natureza ética e menos de ordem técnica. O extraordinário crescimento da medicina tecnológica que passou a vigir foi desacompanhado de reflexão ética, o que tornou imperioso reconhecer que o uso desarrazoado dos avanços da medicina tecnológica poderia resultar em condições maleficentes para os pacientes. A esse respeito, basta observar as consequências deletérias decorrentes do uso desproporcional de procedimentos invasivos impostos a enfermos portadores de doenças terminais, condição conhecida como distanásia, atitude condenada pelo Código de Ética Médica.

Faz-se necessário, portanto, que os médicos estejam atentos ao ensinamento do sanitarista italiano Giovanni Berlinguer ao ponderar que “A velocidade com que se passa da pesquisa pura para a aplicada é, hoje, tão alta que a permanência, mesmo que por breve tempo, de erros ou fraudes pode provocar catástrofes”.  Exemplo recente, ocorrido na China, trouxe à tona pesquisa que utilizou a técnica de edição genética em humanos, conhecido como método CRISPR, descrito pelas pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna, condição que as fez merecedoras do Prêmio Nobel de Química de 2020. Trata-se de procedimento que permite a retirada de genes deletérios à saúde humana, por meio de uma espécie de ‘tesoura molecular’, o que tornaria real o sonho de eliminar a ocorrência de doenças hereditárias.

Em 2018, o geneticista chinês He Jiankui, utilizou o método, ao promover alteração do gene CCR5 de dois embriões femininos com a finalidade de torná-los imune ao vírus HIV. Ocorre que o pesquisador ignorando que a intervenção por ele promovida, poderia resultar em mudanças de funções ainda desconhecidas do CCR5, o que efetivamente ocorreu, na ocorrência de alterações irreversíveis nas funções cerebrais das meninas recém geradas. As consequências desastrosas da pesquisa levada a cabo por He, motivou a criação de um comitê internacional, formado por especialistas em genômica humana,  que em seu relatório final concluiu que ‘a ciência ainda não se encontra [dotada] de ferramentas seguras para garantir que as edições genéticas possam ser realizadas em seres humanos e que sejam isentas de consequências deletérias à espécie ’.

Por outro lado, novos métodos de semiologia armada, embora sempre bem-vindos e de extrema importância na confirmação diagnóstica, exigem necessária prudência ao serem utilizados no cotidiano do exercício da medicina, pois devem ser interpretados  como dados complementares ao raciocínio clínico. Entretanto, o que assistimos com pesar é que os egressos dos cursos médicos, confiam cegamente nesses exames, subestimando a realização de anamneses elucidativas elemento essencial para conhecer a complexa realidade do paciente como ser biográfico, e não simplesmente como portadores de uma enfermidade. Em síntese, as escolas de medicina estão formando especialistas em doenças e não em seres humanos biopsicossociais e espirituais que circunstancialmente adoecem. Dessa maneira, esmeram-se no  ensino de tecnologias ‘high tech’ desconsiderando os métodos ‘high touch’, o que resulta no afastamento dos protagonistas do ato médico, minimizando a possibilidade de efetuar uma relação intersubjetiva, o que inviabiliza a ética do um-para-o-outro. Médico e paciente tão próximos fisicamente e distantes afetivamente, o que contraria o preceito atribuído à Hipócrates de que ‘à medicina cabe curar às vezes, aliviar muito frequentemente e confortar sempre ‘. Os médicos estão sendo educados para interpretar a vida como fenômeno estritamente biológico e se valem de toda a tecnologia biomédica para perseguir a vã utopia de atingir a meta do ‘melhoramento genético’ ou até mesmo da imortalidade humana.

Esboça-se, ainda que timidamente um movimento denominado ‘slow medicine’, idealizado pelo médico italiano Marco Bobbio, que propõe com sólida argumentação científica que é possível substituir a medicina ‘high tech’ pela forma mais humanizada do ‘high touch’. Para tanto, torna-se imperioso que as faculdades de medicina do país incluam em suas grades curriculares conteúdos de humanidades médicas, tarefa essa que vem sendo cumprida pela Comissão de Humanidades Médicas do CFM ao promover palestras, congressos, encontros remotos sobre essa temática, essencial para resgatar o exercício da medicina como arte de cuidar de pessoas e suas histórias biográficas e não simplesmente a prática de acolher o paciente, como objeto de estudo científico.

 

* José Eduardo de Siqueira é membro da Comissão de Humanidades Médicas do CFM