A desumanização da Medicina


// Luiz Roberto Londres

Visita do médico. Jan Steen
1662

Indivíduo > Grupos > Empresas e Máquinas

Quando os cuidados médicos e a cura tornam-se monopólios de organizações
ou de máquinas, a terapêutica transforma-se inevitavelmente em ritual
macabro. Ivan Illich (A Expropriação da Saúde)

 

A Expropriação da Saúde: um livro escrito em 1976 já dava sinais dos caminhos tortuosos que trilhava a Medicina. É um livro de uma atualidade impressionante. O que Ivan Illich antevia era o advento do uso puramente comercial da atividade médica.

A Medicina não está sozinha. Vemos o mesmo descaminho em outras atividades de um profundo cunho social como a educação e o jornalismo. E, não mais como mero descaminho, mas como uma distorção criminal, o mesmo acontece na política e até mesmo na justiça. É um sinal dos tempos onde os meios se tornam fins fazendo com que os princípios desapareçam. Dos tempos em que a valorização das aparências se sobrepõe à valorização das essências.

O trabalho individual do médico, atendendo uma pessoa que estava ou se sentia doente, vem se tornando cada vez mais raro. Permeando esses dois personagens estão duas pessoas jurídicas, duas empresas comerciais, cujo objetivo está centrado no resultado financeiro. O indivíduo desaparece tragado por uma coletividade, seja ela da empresa em que trabalha, seja ela do intermediário financeiro da saúde que atende a sua empresa.

As próprias instituições de saúde, como hospitais, laboratórios de exames complementares e postos de atendimento, vêm se transformando, sem o menor pudor, em empresas cuja principal meta em curto prazo é o lucro e, em longo prazo, a multiplicação horizontal e, por vezes as associações e alianças verticais. Tudo o que se fala é que a consolidação do “mercado” (ou seja, formação de oligopólio) permite a racionalização dos gastos. Mas mal são considerados os jamais divulgados resultados clínicos ou como estão os seus índices diversos que avaliam de fato a qualidade do atendimento.

Um grande pensador da nossa Medicina, Genival Velloso de França, diz que “O espírito hipocrático está morrendo. Surge uma nova terminologia médica: faturamento”. Como se vê, a linguagem comercial, dos números, do negócio, do lucro, está contaminando a classe que mais deveria zelar para que os princípios da Medicina permanecessem intocados.

O afastamento do médico do centro da sua própria atividade traz outra distorção importante e maléfica. E quando digo afastamento do médico quero dizer o apagamento do seu raciocínio clínico, que requer intensas reflexões sobre os achados tanto da anamnese quanto do exame físico. Elas são substituídas por atos automáticos ou reflexos que se traduzem em receitas de medicamentos, solicitação de exames complementares, ou mesmo cirurgias.

É nesse ponto que entram as máquinas às quais Illich se refere. O médico de nossos dias, espremido entre as operadoras que lhe pagam por consulta menos do que se gasta em um corte de cabelo e as exigências de gestões e protocolos, abrevia o tempo de consulta e torna o diálogo médico-paciente uma mera coleta de dados. E passa a se fiar em interpretações dadas por colegas que não
conhece, dos quais ignora o conhecimento e a competência.

A complexidade da atividade médica passa então por um reducionismo perigoso e descompromissado. O paciente passa a ser esquartejado, não se levando em conta que o todo é muito mais do  que a simples soma das partes. E nesse cenário de momentos de reflexos e não mais de reflexões, em breve o médico se tornará um elemento descartável, substituído por máquinas diversas,  simples leitoras de protocolos feitos à distância do quadro clínico do paciente.

Vamos nos lembrar de uma bela lição de um fantástico publicitário, Roberto Menna Barreto: “É dito que o computador Deep Blue venceu uma partida de xadrez contra o campeão mundial Garry Kasparov. Deem o computador para eu programar e vamos ver se isso volta a acontecer”. O aviso abaixo deveria ser colocado em todas as máquinas cujos exames são solicitados pelos médicos.

 

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* Luiz Roberto Londres é membro da Comissão de Humanidades Médicas do CFM

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