O encarceramento da Medicina
// Luiz Roberto Londres*
Finanças > Gestão > Judicialização
Um dos mais importantes ensinamentos que recebi foi que “Medicina são normas gerais aplicadas a casos particulares”. Isso significa que, em Medicina, não podemos nos prender a fatos objetivos ou a pensamentos estereotipados. Não podemos nos prender no simples relato do paciente, não podemos reduzir nosso raciocínio a estereótipos e nem mesmo à nossa experiência passada. Um diálogo amplo não se restringindo à área médica, mas englobando o paciente em sua vida psíquica e social dará ao médico uma enorme possibilidade de hipóteses diagnósticas corretas. Essa possibilidade chega a 90% dos casos.
Tendo as suas hipóteses diagnósticas o médico partirá para o exame físico alargando seus conhecimentos do caso e só então deverá solicitar exames complementares para comprovar ou não o diagnóstico e quantificar alguns dados. Para todos esses passos deve o médico estar livre para suas ações. E é óbvio que ele deverá ser portador de conhecimentos médicos e gerais e seguidor de um caminho ético não só em relação ao paciente como também a todas as pessoas e instituições que cercam sua ação.
O que vemos, nos dias de hoje, é a interferência no ato médico por pessoas ou determinações que ficam à margem da atividade clínica restringindo ou direcionando as decisões médicas. O Código de Ética Médica recém elaborado é claro em condenar essas interferências. Podemos ver em diversos artigos o que é vedado ao médico:
Art. 20. Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade.
Art. 52. Desrespeitar a prescrição ou o tratamento de paciente, determinados por outro médico, mesmo quando em função de chefia ou de auditoria,
Art. 94. Intervir, quando em função de auditor, assistente técnico ou perito, nos atos profissionais de outro médico,
Art. 97. Autorizar, vetar, bem como modificar, quando na função de auditor ou de perito, procedimentos propedêuticos ou terapêuticos instituídos
Além das intervenções diretas temos interferências indiretas que de algum modo interferem na conduta médica. É a chamada judicialização da saúde. Há alguns anos vi um outdoor em uma estrada da Flórida que dizia: “Você pode ter sido vítima de um erro e não sabe. Procure-nos.” Era seguido pelo nome, endereço, telefone e site e e-mail de um escritório de advocacia.
Vemos hoje duas preocupantes vertentes: por um lado temos médicos mal preparados, seja por falta de conhecimentos científicos e técnicos, seja por falta de comportamento ético. Por outro lado a justiça questionando falhas médicas e defendendo direitos de pacientes sem que seja levada em conta a essência da atividade médica. E é essa mesma justiça que permite agressões à legislação que trata da estrutura da saúde e da própria Constituição Federal em seus artigos 196 (A saúde é direito de todos e dever do Estado) e 199 em seus quatro parágrafos em que trata da saúde suplementar, ou seja, da saúde privada.
Uma das mais ilustrativas palestras que assisti, foi do mais recente membro do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux que versava sobre “As Leis Imorais”. E bem se aplica à judicialização da saúde onde podemos constatar o que já foi afirmado: na contemporaneidade o direito está ofuscando a lei e a lei está ofuscando a justiça. Na busca da defesa de direitos particulares nossa justiça se omite em relação à defesa dos direitos sociais que, por si, estariam corrigindo grande parte dos casos que hoje chegam aos tribunais.
E a judicialização da saúde que hoje se ocupa dos conflitos entre pacientes com seus médicos, seus hospitais e seus planos de saúde não se ocupa com o que acontece com os médicos, usados e explorados pelos intermediários financeiros, com remunerações inferiores a quase todas as demais profissões, das mais diversas áreas.
O olhar da Justiça em relação à Medicina deveria sempre ser permeado pelas diferenças que existem nas estruturas das duas atividades: enquanto a Justiça é igual para todos na Medicina são normas gerais aplicadas a casos particulares, como dissemos no início desse artigo.
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* Luiz Roberto Londres é membro da Comissão de Humanidades Médicas do CFM