A desfiguração da Medicina
// Luiz Roberto Londres
Raciocínio clínico > Exames Complementares > Protocolos
O ensino médico clássico tinha no estímulo ao raciocínio clínico do médico o seu ponto principal e para isto era importante termos sempre em mente os diversos momentos da anamnese – a conversa entre o paciente e o seu médico: queixa principal, história da doença atual, história patológica pregressa, história familiar, história psicológica e história social. Aprendíamos que não devíamos passar para o tempo seguinte da consulta – o exame físico – sem termos pelo menos uma hipótese diagnóstica. Aprendíamos ainda a chamada “História Natural da Doença”, ou seja, a sua cara. Com isso tínhamos as armas necessárias para estabelecer hipóteses diagnósticas.
Costumo contar uma história que se passou comigo. Um amigo me chamou para apresentar sua irmã e, lá chegando, ouvi “- O senhor acertou o diagnóstico dela”. De nada me lembrava quando ele então arrematou: “- Ela tem feocromocitoma”. Lembrei-me de uma conversa telefônica que havíamos tido recentemente e retruquei: “- Eu não acertei diagnóstico algum; o que eu fiz foi um gol de placa”. Ao que ela disse: “- Estou indo a médicos há quatro anos e hoje, em uma ressonância, foi feita essa descoberta. Como o senhor em uma simples e rápida conversa telefônica pode chegar ao diagnóstico”. Então eu lhe disse: “-Vou lhe contar uma história e me diga rapidamente qual ela é: vinha uma menina pela floresta e lá estava um lobo mau…” e ela imediatamente “-Chapeuzinho Vermelho!” Um simples exame de urina poderia ter levado ao diagnóstico. Em minha vida acadêmica e de recém-formado eu havia visto dois casos apenas. Mas éramos preparados para estudar profundamente as patologias que se apresentavam. Hoje isso está esquecido. Mas eu, que havia aprendido Medicina e não clinicava há quase quarenta anos, me lembrava.
Mais do que esquecido, o diálogo médico-paciente foi relegado a um plano inferior pelos chamados protocolos, normas que direcionam o médico para ações que levem a um diagnóstico (e também tratamento) de maneira esquemática. Esses protocolos feitos ao largo da consulta costumam privilegiar apenas o lado prático deixando de lado fatos imponderáveis que podem ter originado a “doença” que só um médico competente e que insira seu paciente em sua vida psicossocial pode descobrir. E pior, por vezes criando verdadeiros absurdos como criar o “quinto sinal vital – a dor”, desconsiderando um conhecimento e definições bem claras. Dor não é um sinal! É um sintoma! O médico só tem acesso a ela por informação ativa ou passiva do paciente.
Outro caso vivido por mim que bem mostra o risco corrido se eu aplicasse um dos protocolos vigentes. Um jovem veio à consulta com quatro sintomas que eu não conseguia integrar em uma síndrome, em uma doença. Insisti na anamnese, pois sem hipóteses diagnósticas não deveria passar ao exame físico. Súbito percebi uma lógica: era o modo com que ele relatava o início de cada sintoma: “–Eu havia ido à Copa do Mundo na Inglaterra e, dois meses depois, apareceu o sintoma A. Eu ia passar o Natal em Salvador e três meses antes apareceu o sintoma B. Eu estava em Ouro Preto no sete de setembro quando apareceu o sintoma C (não me lembro como era o início do sintoma D)”. Em suma, todos os sintomas apareceram em setembro. Deixei de lado a pesquisa de patologias e fui para a vida pessoal. Depois de algum tempo a solução: havia ficado noivo em setembro. Eu falava sobre o noivado e ela nada percebia, até que perguntei: “-Isso não está atrapalhando o seu noivado?” Ah! Doutor, acho que o meu noivado é que está me deixando assim”. Motivo: família da noiva muito rica e ele mudara de emprego para ganhar bem mais e marcara a data do casamento. Mas… e se não durasse nesse emprego? Como ele relatara que se dava muitíssimo bem com o futuro sogro, sugeri que repartisse com ele as suas angústias e voltasse à consulta em três semanas. Saiu sem um exame, sem um medicamento sequer. Voltou aliviadíssimo (o sogro o acolheu integralmente) e totalmente curado.
Para devolvermos a Medicina aos seus princípios, basta lembrarmos que nós, médicos, devemos em todos os momentos de nossa atividade estar voltados para o paciente e não para gestores, acionistas ou mesmo para repercussões que possam se abater sobre nós como na esfera do direito ou do jornalismo. E muito menos para nossos ganhos quando eles se dão à custa do bom atendimento aos nossos pacientes.
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* Luiz Roberto Londres é membro da Comissão de Humanidades Médicas do CFM