Epifania na Vida de Dostoiévski


// Péricles Brandão*

Anna, diversas vezes, aproximando-se com passos leves da porta do estúdio, em São Petersburgo, flagrou Dostoiévski, no último ano de vida, como num êxtase místico, diante da cópia da Madona Sistina, de Rafael Sanzio – e retirava-se, cheia de carinho, em completo silêncio.

Ano após ano, o marido saíra com alma peregrina até a obra-prima, em Dresden. Anna lembra amorosamente do exílio voluntário, do mágico minuto em que ele apresentou a tela como a mais alta revelação do espírito humano, lembra do momento em que escutou o dueto do chão com o firmamento.

Desde que ele entendeu trazer dentro de si Dresden, suas noites densas, seus nítidos dias, não há mais degredo, não há mais medo, não há mais saudade do Éden, tudo é sagrado, nada mais, nenhum sinal de vida, observa com desdém. E o fluir de seu ser é mais sereno que o do rio Elba – rumo a oceano mais profundo.

Não repara distraído nem mesmo a moldura de escuro carvalho da fotografia no quarto de trabalho. Ali, como numa clareira, mesmo em preto e branco, está o detalhe que mudou tudo: o olhar do Menino. São, a rigor, dois olhares alcançando as vastidões do cosmos: um para fora, outro para dentro, um justiça, outro misericórdia.

O infinito é íntimo, é infinito o íntimo – é o que diz calado o Menino, tão humano quanto divino. Não está num trono Theotokos: é um estar a caminho, sutil movimento, a Vida que a todos nos doa, dádiva inacabada, pronta para nos salvar, pronta para ser salva.

Assim diz Dostoiévski de si para Si, como numa prece, toda vez que vê um rosto, cuja essência a Madona Sistina desvela, em algum canto da tela, em alguma curva da estrada, alguma esquina: – Estou aqui, absoluto, não tenho duplo, eis-me aqui, Mistério, a ti minha alma se destina!

Já não padece da ilusão de tentar com teorias abolir o acaso, já não aposta, já não penhora a calma que anseia sua alma. Já não aceita uma vida vivida como amortização de uma dívida: seu amor, sua arte, sua fé, maiores que a morte, cicatrizarão na hora própria, sem pressa ou demora, todas as feridas.

Chegou a perder-se de si mesmo, em becos, em avenidas, em parques imensos, andando a esmo, em Dresden, como estrangeiro. Houve circunstâncias em que as telas nas paredes das galerias pareceram janelas num labirinto sem saída. Até achar a sala da Madona Sistina, até achá-la, a Mãe, em si, em sua memória, ainda grávida de uma História sem misérias.

Lembranças do subsolo, recordações da casa dos mortos, tudo a luz da Madona clareia e transpassa. Diante de sua marcha, sua dança, percebe-se que a Vida é travessia, bem-aventurança. Dresden não depende de mais nada – nem de duendes, nem de fadas – para ser encantada.

Aprende-se que não há espada ardente na entrada do Éden. Travessos querubins apenas encenam brincando o absurdo de se deter, disperso, debruçado num muro entre mundos. Entre abertas cortinas verdes, a Vida como passagem é o espetáculo de verdade.

Mesmo os santos ajoelhados em adoração são exortados à plena atenção, a avançar sem sequer o peso de auréola, de pés descalços. São chamados a caminhar no Céu, entre as nuvens, com leveza jamais imaginada, e, provando igual beatitude, a caminhar com terna firmeza, entre as criaturas, na intimidade da Terra.

Ao longo da existência, experimentara ele certa iluminação antes das crises de epilepsia. Mas era rápida como um relâmpago e, em seguida, abriam-se abismos dentro de si mesmo, como lá fora, nos abalos sísmicos. Agora, não: ilumina-se a existência inteira, numa epifania, que não prenuncia agonia alguma.

Anna, insubmissa e linda estenógrafa cujo nome quer dizer graça, sabe que ali, num instante eterno, o mundo não se assemelha – para o amado – às noites de sua infância rasgadas pelos uivos dos lobos à distância. Sara-o do desassossego o silêncio do Ser no lar do Agora. Está livre para o que é novo e urgente ao espírito.

Com inocência de menino, ele compreende, afinal, o segredo da filocalia e da oração do coração: cada passo, cada caminho, tudo é divino. Ocupa-se em ser e estar plenamente, a mente não guarda certezas, exceto uma, bem fundo: mais cedo ou mais tarde, a Beleza salvará o mundo!

 

*Péricles Brandão: membro da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina

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