O Menino Pierre Visita a Catedral


O Menino Pierre Visita a Catedral

// Péricles Brandão*

O relógio astronômico da Catedral de Estrasburgo      Foto: Lola Vázquez

 

Hoje manhãzinha, pouco depois de meu momento diário de meditação criativa, sucedeu-me imaginar a criança que Pierre Weil fora um dia, a criança que foi a vida inteira, em sua primeira visita à catedral do lugar onde nasceu, para conhecer o famoso relógio.

Fundada pelos romanos na atual fronteira entre a França e a Alemanha, na região da Alsácia, sua cidade natal trouxera no nome antigo, Argantorati, a ideia de local fortificado. Agora tinha um nome que sugere cruzamento de caminhos, encontro de estradas, Estrasburgo.

A catedral está situada no centro histórico, na Grande Île, ligada ao resto da cidade por uma série de pontes. Seu formato rendeu-lhe a referência de “ellipse insulaire”. Rodeada de ruelas e becos, ali está a bela catedral numa ilha que é também um labirinto.

Depois de atravessar o portal, finalmente diante do imenso relógio astronômico, o menino Pierre de início sentiu-se confuso reparando tantos detalhes – esculturas, pinturas, personagens, inscrições, sons, mecanismos, mostradores de vários modelos, ponteiros e mais ponteiros, globos terrestres, mapas celestes.

Tudo em sua mente girava, girava, girava, como os ponteiros, como aquelas estranhas engrenagens. Até que, tonto, quase em transe, numa espécie de epifania, todos os elementos começaram a lhe fazer sentido como fragmentos de uma sagrada escritura.

Não, não era nada parecido com encaixe, conexão mecânica de peças, era o desvelamento de uma harmonia que desde sempre, oculta, existia, de uma ordem complexa que do caos, do que nós somos, do que é o mundo, incessantemente, como cosmos, emergia.

Ponteiros e mostradores serviriam apenas para indicar as posições e os movimentos relativos dos planetas, da lua, do sol, das estrelas, das constelações. Os dois anjos não estavam ali para demarcar o paraíso, mas para relembrar que tudo é uno e que pulsa no Eterno Agora o coração da Criação.

Os três cantos do galo de escuro metal forjado no Mundo Imaginal, empoleirado fora do seu alcance, trespassam a sua alma. Recordam o outro Pierre, recordam que, também pedra, pode fazer-se alicerce para edificar solidamente uma morada transparente ao Mistério.

Escutara que houve um tempo em que ali inclinavam-se os três Reis Magos diante da Virgem e do Menino, a cada hora, entre angelicais melodias, depositando presentes cuja preciosidade consiste em não poder ser possuída, apenas compartilhada. Mas – sente dentro de si – não se perdeu o Menino.

E é com o olhar do Menino que observa, acima de tudo, como desfilam, lembrando uma lenta dança circular, hora após hora, os doze apóstolos recebendo a bênção do Cristo. Num ciclo mais longo, suas emoções de criança confirmam as estações: os doze meses também desfilam, elegantemente vestidos, um a um, diante da Presença.

Definitivamente compreende que mitologia alguma é abstração. O dia e a noite – como Apolo e Diana, ali coreografando uma ronda que acompanha os ponteiros – são também irmãos gêmeos, são também como deuses proibidos de nascer em terra firme, nascidos numa ilha flutuante.

O ressoar do sino, que num nível abaixo marca para o coração desatento a apresentação diante da morte, virada fatal da ampulheta, pode ser a rigor a celebração de uma triunfante passagem. O sacro ofício cruza o vazio para experimentar outro nascimento, inaugurar outro Renascimento.

Renascido para a plenitude de cada momento, nada mais temeria: não teria mais medo do tempo que mostra sua potência através das imagens de desolação e decadência, que devora seus próprios filhos, que devora civilizações, que devora a si mesmo por dentro, entre a memória do Éden e a espera do Juízo Final.

Quando Pierre atravessou novamente as portas da catedral para ir embora na direção de casa, seus olhos brilhavam como o céu azul da Alsácia, que não é só o céu azul da Alsácia e que ignora fronteiras e envolve ilhas, arquipélagos, continentes – como partes de uma única pátria, a Terra.

Muitos detalhes haviam escapado à sua observação, à sua capacidade de definir cada coisa, mas sentira despertar em seu coração a vontade de buscar sobretudo o que há de imensidão em cada detalhe, em cada ser, o que não se pode senão infinir, em sua teia de incontáveis processos e relações.

Deixando para trás o labirinto de becos e ruelas medievais, o menino saboreava a delícia de novas descobertas e dimensões.  “Ellipse insulaire?”, murmurou sorrindo. Ora, não aprendera que é elíptica a órbita que nosso planeta traça em torno do sol? Sim, e quantas elipses não haveria para decifrar na linguagem do universo?

Retornando da ilha por uma das muitas pontes, sentia-se, ele próprio, ponte que liga esferas da existência, Terra e Céu, e quer unir semelhantes e dessemelhantes – sem bloquear o que da Nascente flui. Sentia-se pronto para denunciar a ilusão de tudo que separa. Sentia-se pronto para, vida adentro, mundo afora, eternamente ser mutante, humilde artesão da paz.

 

*Péricles Brandão – membro da Comissão Nacional de Humanidades Médicas do CFM

 

 

Nota do autor: crônica filosófica livremente inspirada na figura de Pierre Weil (1924-2008), expressando metaforicamente alguns princípios essenciais de sua vida e obra. Educador e terapeuta francês radicado no Brasil a partir de 1948, Pierre destacou-se por teorias e práticas pedagógicas marcadas pela transdisciplinaridade. Reconhecido como um verdadeiro samurai da não-violência e defensor de uma metodologia do cuidado integral, que considera o ser humano em todas as suas dimensões, foi laureado com a Menção Honrosa do Prêmio UNESCO de Educação para a Paz, em 2000.

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