Saúde é o que interessa
Faz dois anos que o prestigioso Instituto Sabin de Vacinas, fundado após a morte do célebre cientista, está sob o comando do brasileiro Ciro de Quadros. A gestão do médico gaúcho tem sido marcada por iniciativas que buscam levar às populações mais pobres os benefícios da ciência. De seu escritório, em Washington, nos Estados Unidos, ele conversou por telefone com Desafios e contou quais são as dificuldades e as vitórias de sua missão.
Desafios – Quais os maiores desaf ios que o mundo enfrenta em termos de vacina?
Quadros – A questão mais imediata é levar as vacinas até quem precisa. A cada ano morrem mais de 10 milhões de crianças com menos de 5 anos de idade e a maioria dessas mortes poderia ser evitada com as vacinas. Meio milhão morrem por sarampo, 1 milhão por pneumonia, 600 mil por rotavírus, ou seja, são todas doenças podem ser perfeitamente prevenidas. Portanto, o desafio fundamental, neste momento, é como aplicar as vacinas o mais rápido possível. Tanto as vacinas mais antigas como as mais novas. Isso é muito importante, porque em geral levam-se muitos anos entre o desenvolvimento da tecnologia e o benefício que ela pode trazer para a humanidade. Com o advento de novas e mais caras tecnologias, está ocorrendo uma grande ineqüidade: os que não têm continuam não tendo e tendo menos, e os que têm continuam tendo e tendo mais.
Desafios – O senhor se referiu a novas vacinas. Quais são elas?
Quadros – Uma é contra o rotavírus, que provoca uma diarréia grave. Praticamente metade das diarréias graves infantis são produzidas por esse vírus, que causa muita mortalidade. Também há a vacina contra a pneumonia, isto é, contra o Streptococcus pneumoniae, que, entre as doenças respiratórias agudas, é a bactéria que mata mais crianças. Na América Latina, por exemplo, a cada hora duas crianças morrem em decorrência do Streptococcus pneumoniae. E a terceira vacina, recém-licenciada aqui nos Estados Unidos, é contra um vírus do papiloma humano que provoca câncer no colo uterino da mulher. Também pode ocorrer no homem, no pênis, mas é mais comum na mulher.
Desafios – Essa vacina contra câncer também precisa ser aplicada em toda a população?
Quadros – Idealmente, sim. Se você conseguir vacinar todas as mulheres antes do começo da atividade sexual porque o vírus do papiloma humano é transmitido sexualmente -, então evitará no futuro o maior problema produzido por esse vírus. Não todo, porque existem vários serotipos, mas a vacina protege contra os serotipos mais relacionados com o câncer de colo uterino. Porém o vírus vai continuar circulando na população masculina, então, se ocorrer qualquer baixa de cobertura da população feminina, a doença voltará novamente. Portanto, o ideal é vacinar toda a população masculina e feminina. É como a rubéola, que é uma doença eruptiva do tipo do sarampo, mas menos grave. Ela é perigosa apenas para a mulher que está grávida, pois o feto é atingido e nasce com afecções congênitas. No homem, não causa nada além de erupção e febre. Você pode adotar uma estratégia de vacinar só as mulheres em idade fértil. Porém, se você não conseguir manter uma alta cobertura da população feminina, o vírus da rubéola continuará circulando na população masculina e eventualmente causará surto nas mulheres.
Desafios – Existem países que já erradicaram esse tipo de doença?
Quadros – Há um programa que foi lançado quando eu era diretor do Programa de Vacinas da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) para erradicar a rubéola no hemisfério ocidental. Esse programa está indo muito bem. A doença já foi erradicada em diversos países e espera-se que antes do ano 2010 ela seja erradicada nas Américas por meio da vacinação da mulher em idade fértil e do homem.
Desafios – E não se pode fazer isso globalmente?
Quadros – Nós iniciamos uma série de atividades aqui nas Américas porque há melhores condições de serviços de saúde em comparação com os países mais pobres da África e da Ásia. Para a erradicação global de uma doença, é preciso uma série de précondições. É um esforço que tem de exser extremamente coordenado, além de exigir uma quantia significativa de recursos. Não é algo que se faça de forma fácil. Neste momento e já há alguns anos, o mundo está erradicando a poliomielite, que já foi erradicada nas Américas. Portanto, agora não se poderia propor à Assembléia Mundial de Saúde a erradicação de outras doenças ao mesmo tempo. Se a poliomielite for erradicada, e a gente espera que seja nos próximos dois ou três anos, aí pensaremos em erradicar outras doenças. Qual seria a próxima? Na minha opinião, deveria ser o sarampo e depois a rubéola. Uma coisa deve vir depois da outra.
Desafios – Por que não é possível levar um kit contendo as vacinas contra pólio, sarampo e rubéola para erradicar as três simultaneamente?
Quadros – Dá para fazer, eu não quis eliminar essa possibilidade. Inclusive fui defensor da proposta de aproveitar as campanhas contra a pólio na África para aplicar a vacina contra o sarampo. Como a vacina contra o sarampo é combinada com as vacinas contra rubéola e caxumba, na mesma injeção você protegeria contra as três doenças. O lógico seria agir assim, mas as políticas de saúde às vezes não são as ideais. Tem muita gente que se opõe por achar que vai ser mais complicado e poderá prejudicar o esforço na erradicação da pólio. Existe uma série de debates que, às vezes, atrasam o progresso das coisas. Muita gente, por exemplo, acha que não se deve usar a vacina contra a rubéola até que não se saiba exatamente se a doença é um problema na África. Muitos acham que na África a rubéola não é uma questão grave, e serão necessários dados e estudos epidemiológicos para demonstrar que ela realmente é um problema. Infelizmente, nós temos de lidar com essas variáveis.
Desafios – Quando o senhor fala dos custos de uma campanha mundial, a que quantias se refere?
Quadros – Até o momento, o programa de erradicação da pólio custou, em termos de dinheiro extranacional, ou seja, verbas fornecidas por países doadores, de 3 milhões a 5 bilhões de dólares. Se a gente considerar o que se gasta em um dia na Guerra do Iraque, deve ser mais do que precisamos para essas campanhas. Mas, do ponto de vista dos políticos que decidem a alocação de verbas, o que pedimos é muito. Eu estou totalmente em desacordo.
Desafios – As Metas de Desenvolvimento do Milênio, da Organização das Nações Unidas, têm colaborado para avanços na área de vacinação?
Quadros – A meta 4 (reduzir a mortalidade infantil) refere-se a doenças infecciosas e materno-infantis, para as quais os programas de imunização contribuem diretamente. E, nesse sentido, temos algo muito bom, pelo menos nos últimos cinco anos, que foi a formação de um grupo chamado Gavi, The Global Alliance for Vaccines and Immunization, uma aliança global para vacinas de imunização composta pela Organização Mundial de Saúde, pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) pelo Banco Mundial, por fundações, pelos países em desenvolvimento, os países ricos, e por vários organismos privados, como a indústria de vacinas. Por sinal, neste momento o representante dos produtores de vacinas dos países emergentes é brasileiro, o doutor Akira Homma, presidente da Bio-Manguinhos. Essa aliança recebeu uma doação inicial de 750 milhões de dólares da Fundação Bill e Melinda Gates e outros 750 milhões de países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico).
“Se a gente considerar o que se gasta em um dia na Guerra do Iraque, deve ser mais do que precisamos para essas campanhas de vacinação. Mas, do ponto de vista dos políticos que decidem a alocação de verbas, o que pedimos é muito”
Desafios – O que faz essa aliança?
Quadros – O dinheiro está sendo usado para ajudar os países a introduzir algumas vacinas, como a que combate a hepatite B e a contra o Haemophilus influenza tipo B, que produz um tipo de meningite. Nos últimos cinco anos, foram essas as vacinas introduzidas em países pobres da África e da Ásia. Agora essa aliança está entrando na segunda fase, na qual vai fazer investimentos maiores. Ao perceber que para ampliar a atuação seriam necessários mais de 50 bilhões de dólares, o ministro das Finanças da Inglaterra, Gordon Brown, lançou a idéia de levantar fundos por meio da venda de bônus do governo no mercado de capitais. Pretende-se arrecadar cerca de 5 bilhões de dólares nos próximos cinco anos. A proposta foi aceita e já está sendo colocada em prática, inclusive por outros países. Isso vai adiantar a introdução de pelo menos duas novas vacinas: contra o rotavírus e contra a pneumonia.
Desafios – Que outros países aderiram à iniciativa?
Quadros – França, Itália, Espanha, Suécia e Noruega já estão vendendo os bônus. E há também a idéia de que países que não são doadores tradicionais participem. Três países já anunciaram a colaboração: Índia, África do Sul e Brasil. Durante a visita à Inglaterra, no ano passado, o presidente Lula anunciou que o Brasil vai participar com a doação de 20 milhões de dólares durante vinte anos. Seria 1 milhão de dólares por ano. Esse é um exemplo muito importante para os países emergentes, principalmente porque o Brasil é um dos países que têm um programa de imunização exsercelente, com introdução de novas vacinas rapidamente. E o Brasil tem também um parque industrial de vacinas importante, a Fiocruz-Bio-Manguinhos, no Rio de Janeiro, e o Instituto Butantan, em São Paulo.
Desafios – Existem novas vacinas que estão para surgir?
Quadros – O desenvolvimento de vacinas é um processo longo e caro. E quem investir na pesquisa dessas vacinas não tem certeza de que conseguirá recuperar o dinheiro. Para superar esse problema, a Gavi tomou outra iniciativa, que se chama Advanced Market Commitment. Esse mecanismo tem o seguinte funcionamento. O poder público de um país pobre informa que precisa de determinada vacina, com certas características. Então o Advanced Market Commitment, bancado por países ricos, garante a compra de uma quantidade de doses, o suficiente para ressarcir o fabricante pelos custos da pesquisa. Assim que o fabricante recupera o dinheiro, o preço unitário da dose cai. Por exemplo, inicialmente a dose pode ser vendida a 50 dólares. O Advanced Market Commitment financia 49 dólares e o país pobre paga 1 dólar. Depois de comprar o número estabelecido para a recuperação dos custos de desenvolvimento, a dose da vacina passará a ser vendida por 1 dólar.
Desafios – E quais são as novas vacinas que estão sendo desenvolvidas?
Quadros – Bem, há três vacinas que são de alta importância, de alto interesse: a contra a malária, a nova vacina contra a tuberculose e a vacina contra a Aids. Essas são as vacinas que estão recebendo os maiores investimentos. Também temos pesquisas de vacinas contra a dengue, a encefalite japonesa e algumas meningites, para as quais ainda não se tem vacina, como a meningite B. Estamos trabalhando também para criar combinações de vacinas, o que é muito importante, pois, quanto mais vacinas, mais injeções precisam ser aplicadas nas crianças. Para evitar isso, temos de conseguir combinar as vacinas. Nós já temos algumas, como a vacina contra sarampo, caxumba e rubéola numa só injeção e a vacina contra difteria, tétano e coqueluche, além de outras.
Desafios – Por que é preciso uma nova vacina contra a tuberculose?
Quadros – A vacina que temos, a BCG, não funciona como se esperava. Ela é bastante eficaz para proteger da meningite tuberculosa, mas não tem nenhum efeito na tuberculose biliar do adulto jovem e por isso precisamos de uma nova.
“Não quero diminuir a importância da Aids, porque é um problema seriíssimo. A questão é que a Aids tem tanta visibilidade porque tem um grupo interessado nisso. E não há nenhum grupo interessado em divulgar as ameaças da pneumonia ou da meningite”
Desafios – Talvez por ser uma doença que atinja todos em todos os países, haja uma grande preocupação a respeito da vacina contra a Aids.
Quadros – Em primeiro lugar, não é só a Aids que é democrática. Existe outra doença muito mais democrática, o rotavírus. É um vírus que causa um grande problema em países industrializados porque a melhora do saneamento ambiental não resolve a questão. Por isso é chamado popularmente de “vírus democrático”. O sarampo também é democrático. A pólio é democrática. O HIV talvez seja menos democrático porque tem grandes grupos que não são atingidos pela Aids, isto é, todas as pessoas que se protegem quando têm relações sexuais. A prevenção da Aids é muito mais fácil que a prevenção da diarréia e do sarampo nas populações pobres.
Desafios – Mas por alguma razão temos a impressão de que a Aids é uma grande ameaça.
Quadros – Não quero diminuir a importância da Aids, porque é um problema mundial seriíssimo. A questão é que a Aids tem tanta visibilidade porque tem um grupo interessado nisso. E não há nenhum grupo interessado em divulgar as ameaças da pneumonia, da meningite ou do sarampo. Eu não quero que não exista um grupo lutando contra a Aids. Eu acho que deve existir. O problema é que as outras também deveriam ter seus grupos defensores. Se tivessem, teriam a mesma magnitude, pois, do ponto de vista da mortalidade, elas matam muito mais do que a Aids.
Desafios – E o que o senhor tem a dizer sobre a gripe aviária?
Quadros – Os países em que essa doença existe já tomaram as providências necessárias e estão sendo feitos investimentos para obter a vacina. Mas é um problema muito complexo. Para que a gripe se transforme numa pandemia, ou epidemia urbana, será necessário uma mutação do vírus. E até agora não se sabe qual mutação seria essa. Portanto, não dá para produzir, neste momento, uma vacina. Mas esse caso teve um lado positivo, que foi as autoridades mundiais acordarem e perceberem que nos últimos trinta ou cinqüenta anos não houve nenhum grande investimento para melhorar a tecnologia de produção da vacina contra a influenza. A tecnologia que temos hoje é um absurdo: para cada dose de vacina, é preciso um ovo. Imagina quantos milhões de ovos de galinha são necessários! Pelo menos as autoridades mundiais agora investem no desenvolvimento de uma vacina contra a influenza com outras metodologias que não exijam um ovo para cada dose.
“Acho que no Brasil o desafio maior é manter os progressos que foram alcançados nos últimos vinte, 25 anos. Foi algo sensacional!”
Desafios – E no Brasil, quais são os desaf ios que enfrentamos atualmente em termos de vacinação?
Quadros – Acho que no Brasil o desafio maior é manter os progressos que foram alcançados nos últimos vinte, 25 anos. Foi algo sensacional. O Brasil erradicou a pólio, o sarampo, e introduziu novas vacinas. Precisamos manter isso, porque entra governo, sai governo, mudam as prioridades, e o programa pode cair. Isso não deve acontecer. O segundo desafio no Brasil é a introdução das novas vacinas. O Brasil trouxe a vacina contra o rotavírus março ou abril do ano passado. Excelente! Foi o primeiro país da América Latina a fazer isso. Agora existe a vacina contra o pneumococos e contra o HPV (câncer de colo de útero), que precisam ser aplicadas.
Desafios – Está sendo feito algo para trazer essas vacinas para cá?
Quadros – Na última vez que estive no Brasil, em dezembro passado, as autoridades mencionaram que estão fazendo estudos epidemiológicos para identificar a magnitude do problema. A situação é a seguinte: essas vacinas são caríssimas e é preciso fazer uma avaliação da incidência e do custo da doença nos países. Eu sei que soa estranho falar assim. Quando uma criança adoece de pneumonia, ela pode morrer. Se for o minha filha, não tem preço essa morte, mas em geral o ministro das Finanças provavelmente não está pensando assim. Porém, se morre uma vaca, imediatamente todo o governo fica preocupado. Faz grandes investimentos para evitar a morte da vaca. Deviam dar o mesmo valor para a vida humana. Aliás, não. A vida humana tem de vir em primeiro lugar. Mas vamos deixar isso de lado. O que as autoridades avaliam é se prevenir a doença não é mais barato do que vacinar a população. E para isso são feitos os estudos.
Desafios – Esses estudos demoram muito?
Quadros – Não. Nós fizemos um estudo sobre o impacto da doença pneumocócica para a América Latina que levou dez meses, que é um tempo bom para a região. O resultado demonstrou que realmente é recomendável introduzir a tal vacina. Agora, é claro que cada país tem de usar seus dados para ver a própria realidade.
Desafios – E em termos de pesquisa e desenvolvimento de vacinas? Como estamos no Brasil?
Quadros – Bem, outro desafio brasileiro é continuar o esforço que vem sendo feito pelo Instituto Butantan e pelo Bio-Manguinhos para se tornarem auto-suficientes na produção de vacinas. Além disso, seria muito bom que houvesse investimento na área de desenvolvimento de vacinas, para que o Brasil não fique somente absorvendo tecnologia estrangeira, como, em geral, é o caso.
Desafios – Em comparação com outros centros de pesquisa no mundo, como são considerados o Butantan e o Bio-Manguinhos?
Quadros – São centros de excelência, mas é claro que não estão no mesmo nível de instituições de países como os Estados Unidos, que fazem investimentos de magnitude muito maior. Não que o Brasil não tenha cérebros para isso, ao contrário, tem cérebros iguais aos daqui, o problema é o investimento que o governo faz. O governo brasileiro nunca fez os investimentos necessários para que o país saia da condição de somente absorver as tecnologias estrangeiras e passe a desenvolver tecnologias. É importante que isso seja feito.
Desafios – O governo acha que é mais barato esperar que a vacina seja desenvolvida lá fora e depois absorver a tecnologia?
Quadros – Não posso responder a essa pergunta porque não estou a par da política do governo nessa área. Minha opinião é pela observação que fiz nos anos em que trabalhei na Organização Pan-Americana da Saúde. Constatei que os investimentos feitos nunca foram suficientes para que realmente o país deslanchasse no desenvolvimento de vacinas. Mas isso pode ter mudado nos últimos dois ou três anos. Acho que o Butantan e a Bio-Manguinhos têm feito investimentos muito importantes. Como eu disse, o parque industrial de vacinas é de qualidade, os cientistas são de primeira magnitude, só falta o investimento. E isso é factível. A Índia, por exemplo, transformou- se num dos principais fornecedores de vacinas para o Unicef.
Fonte: IPEA