Sob o Olhar do Anjo Inesperado


 

// Péricles Brandão*

Como são cíclicos os momentos de obscurantismo da História, como há uma regularidade na ocorrência de eclipses da inteligência do Homem, como frequentemente cega-o a ilusão do Sol a girar em torno de uma Terra imóvel, cumpre sempre fazer uma anamnese de seu medo da iluminação do ser. Urge transcender seu receio de dar-se à luz e ver, sob a ótica da Terra, o Céu – sem exércitos – e, sob a ótica do Céu, a Terra – sem fronteiras -, numa nova Renascença – sem vertigem.

Feito um jogo complexo de réstias e sombras, aproximava-se do seu fim o Quattrocento. Era costume naqueles dias o mestre convidar um aprendiz para pintar um detalhe secundário ou fazer algum retoque numa grande obra. E Andrea del Verrocchio chamou o jovem Leonardo da Vinci – que chegara poucos anos antes à sua bottega, em Florença – para pintar uma figura desenhada no canto esquerdo inferior do novo quadro: O Batismo de Cristo.

Assim surgiu na cena o segundo anjo, como que de súbito, como se supõe que surge um anjo, vestido de todos os tons de azul do céu, ignorando qualquer esboço anterior, surpreendendo, no entanto, menos pela auréola do que pelo modo como espelha a beleza do Universo. É discretíssimo ao sussurrar para o outro anjo, entre distraído e apático: – Tudo é epifania! Nada é epifenômeno! Tudo se ilumina de dentro, na presença de Logos, sob nosso olhar.

A luz que se adensa em sua cabeleira dourada apenas explicita: a Luz de Logos se irradia pela Criação inteira. A elegância de sua vestimenta vinca a nudez de todas as criaturas no Éden que, nítido, profundo, por dentro, a fé contempla. A graça com que ergue sua cabeça girando-a na direção da manifestação do Sagrado – ao tempo que se ajoelha a segurar o resplandecente manto – sugere algo entre quietude e movimento, entre prece e dança.

Conta Giorgio Vasari que Verrocchio, ofuscado pela transparência de cores tão delicadamente intensas, tão divinamente humanas, tão humanamente divinas, abandonou para sempre pincéis e tintas. Se o mestre pintou seu anjo cheio de gravidade e solenidade tendo como modelo um menino, o aprendiz deixou o menino dentro de si pintar-se como um anjo. O mestre agora era o menino que trazia Leonardo no coração, era o inesperado anjo.

Solto no vilarejo da infância, entre as colinas, nada escapara às suas retinas. Não à toa, aisthesis, origem da palavra esteta, quer dizer percepção, sensibilidade. O lago ou a poça, o rochedo e sua fenda ou o grão de areia, o musgo ou o líquen, o tronco de árvore ou o talo de capim, a borboleta ou o escorpião, o pássaro ou o besouro, o cavalo ou o morcego, todas as formas despertavam-lhe encantamento e interesse como parte do espetáculo do cosmo.

Ao ser desafiado a imaginar um novo paraíso para o homem redimido, ainda sentia nas narinas o cheiro das centáureas, das papoulas, dos campos repletos de azeitonas, cachos de uvas, de espigas. Quando retocou na paisagem da Terra Santa o rio Jordão, ainda tinha nos ouvidos as mais doces turbulências do riacho cujo fluir nada ocultava da coreografia do andar, na travessia de uma margem à outra, onde ansiavam repousar corpo e alma.

E se a raiz indo-europeia da palavra ciência remete ao verbo separar, o pequeno Leonardo analisava a singularidade de cada forma viva apenas para melhor compreender a ordem subjacente que tudo unia e entrelaçava através de sutis relações e processos de organização e crescimento. O chiaroscuro faria vibrar mais harmoniosamente o verde da Árvore da Vida e suas verdades. Névoa ou véu, o sfumato ocultaria menos que revelaria: é uma só nossa pátria.

O jovem Leonardo da Vinci foi reconhecido como mestre pintor na Compagnia di San Luca, guilda de pintores que, no entanto, pertencia a uma guilda de boticários e médicos. Com esses, aperfeiçoaria seu olhar de cientista, através dos estudos de anatomia. Em troca, ofereceria seu olhar de artista, próximo do olhar que os antigos terapeutas de Alexandria chamavam de olhar querubínico, olhar alado que vence todas as fronteiras, todas as distâncias.

Era, afinal, Hipócrates de Cós quem advertia: tudo é um só confluir, uma só simpatia, realização do pathos universal, sem a qual não é possível a empatia, nem a saúde.  Que nossa anamnese essencial vá além de pathos como radical de patologia, que alcance o sentido de sentimento, espanto diante da Physis, a Totalidade originária, nossa casa. Como arte e ciência do cuidado integral, terá então realizado a Medicina o que sonhou Hipócrates: terá chegado às coisas invisíveis através das visíveis.

 

* Péricles Brandão, membro da Comissão de Humanidades Médicas do CFM