A medicina e as artes


“É por meio das Artes e das Humanidades que se pode chegar a um conhecimento mais abrangente e preciso da realidade humana, da vida pessoal e individual. As Artes e as Humanidades – Literatura, Filosofia e História – são como janelas ou bisturis que possibilitam adentrar no íntimo da alma humana, no âmago da vida pessoal, que afinal, é o principal para o saber médico.”

Gregório Marañon – Médico e filósofo espanhol

 

// Roberto Luiz d’Avila*

 

Desde que entramos na Faculdade de Medicina aprendemos, desde os primeiros dias, que “A Medicina é Ciência e Arte”.

A Ciência trabalha com os fatos e os dados, verificáveis, comparáveis e repetidos, resultantes da observação cuidadosa e responsável. A Ciência Médica teve como origem a identificação rigorosa de sinais e observação de sintomas, frutos da disciplina e da comprovação de padrões repetitivos. A experiência do observador era primordial no estabelecimento desses padrões e a Medicina caminhou somente em base empírica. A partir de meados do Século XIX, com Claude Bernard (1813-1878), passamos a mensurar e a quantificar esses padrões, quando ele afirmou que a experiência prova a consequência verificável da hipótese (1).

Durante muito tempo, a Medicina sobreviveu, fruto da interação entre a observação rigorosa dos fatos e a subjetividade encontrada nas relações humana. O Médico, portador de conhecimentos científicos, e o Paciente que, além dos sinais e sintomas provocados pela doença, expressava sua subjetividade pelo sofrimento e, às vezes, simbolicamente. Marañon (1887-1960) dizia que a personalidade era causa de doenças (2).

Até o final do Século XIX, a Medicina viveu seus momentos de fragilidade terapêutica medicamentosa e a forte presença tranquilizadora do médico, por meio de seus Princípios Universais e, também, embasada em valores educacionais e pessoais de médicos e pacientes. Neste contexto, durante a Renascença, desenvolveu-se um movimento iniciado por Petrarca (1304-1374), chamado de Humanismo (3).

As palavras Humano, Humanismo e Humanidade(s) derivam da tradução, feita pelo grande orador e tribuno romano Marco Tulio Cícero (106-43 a.C.) do termo grego Paidéia, que significa a educação integral do homem grego. Cícero chamou paidéia de humanitas, em latim (4). Segundo Werner Jaeger (1888-1961), Paidéia era o “processo de educação em sua forma verdadeira, a forma natural e genuinamente humana” na antiga Grécia. Este era o ideal que os gregos cultivavam do mundo, voltado para si e para a sua juventude (5).

Desde Aristóteles (385-322 a.C.), os gregos consideravam que a arte era uma criação humana, onde o Belo não podia ser desligado do homem, já que ele está em nós, sendo uma fabricação humana. As artes poderiam imitar a natureza, mas também poderiam abordar o impossível e o incompreensível. Uma educação estética, em que não apenas se aprende conteúdos éticos, mas aprende-se, também, uma atividade contemplativa ou que não vise uma utilidade específica. Para Aristóteles, as artes deviam educar-nos para os valores do homem e suas consequentes ações nobres. Assim, o belo faz parte da realização das belas artes, podendo estar presente tanto na atividade contemplativa do espectador ou nas habilidades artísticas de cada autor (6).

Cícero, também, dividiu a formação do homem romano em Artes Liberais e Artes Servis (mecânicas). Estas últimas englobaram os ofícios e profissões, como a Medicina. As artes liberais seriam o fruto do pensamento, da subjetividade humana e complementarmente, das obras produzidas pelo Homem, tais como: Literatura, Música, Filosofia, Artes Plásticas e Artes Cênicas.

A partir do século V d.C., estabeleceu-se a necessidade de ensinar as sete Artes Liberais, por meio do Trivium (aprendizagem da Língua e da Literatura): Gramática, Retórica e Dialética ou Lógica; e o Quadrivium (estudo da Realidade e do Universo): Aritmética, Geometria, Astronomia e Música. Nos Séculos VIII e IX da era corrente, Carlos Magno (742-814) criou a base das Universidades, reformando o ensino e estabelecendo a obrigatoriedade do Trivium e do Quadrivium, para todos os cursos superiores (7).

Para o curso de Medicina, Frederico II (1194-1250), Imperador Romano-Germânico e Patrono das Ciências e das Artes, no Século XIII, para formar um médico, tornou obrigatório o ensino de Artes Liberais por 3 anos, mais 5 anos de Medicina e 1 ano de prática. Além disso, fundou a Universidade de Nápoles, e decretou que ninguém poderia praticar a medicina sem a aprovação pública dos mestres da Escola de Salerno e a obrigatoriedade do ensino de anatomia (8).

Até o Século XVI viveu-se a divisão entre as Letras Divinas (religiosa e teológica) e as Letras Humanas (Humanidades), tendo sido Petrarca (1304-1374) o responsável, ao redescobrir os clássicos gregos, pelo movimento conhecido como Humanismo renascentista italiano.

Tolstói (1828-1910), em seu princípio básico, sustenta que “a arte é a atividade humana que consiste em um homem comunicar conscientemente a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que vivenciou, e os outros serem contaminados por esses sentimentos e também os experimentar” (9).

Mas, e a Arte Médica? Seria somente aplicável à uma adequada Relação Médico-Paciente, prenhe de princípios e valores éticos tais como honestidade, lealdade, honradez, respeito à dignidade e à autonomia da vontade do paciente, prudência, entre tantos outros? Como tornar estes valores integrantes de uma educação médica plena? Seriam habilidades a serem ensinadas ou estimuladas, paralelamente à formação técnico-científica dos praticantes da Medicina? Como ensinar que não existem doenças isoladas, mas pessoas que estão doentes e que vivem, singularmente, o seu adoecer? Como despertar no jovem médico o necessário conhecimento global de quem adoece?

Segundo Luiz Roberto Londres, médico, poeta e escritor, a ciência médica lida com biologia e a arte médica lida com a biografia. E o homem, muito mais que um ser biológico, é um ser biográfico instalado em sua biologia. O propósito da Medicina é agir para evitar a doença e o sofrimento; e para isto, nem sempre pode contar com o auxílio da ciência, mas sempre poderá contar com o auxílio do médico (10). Isto justifica a necessidade de conhecer a forma de expressão de como o paciente vivenciou ou vivencia sua doença.

Existem muitas obras de arte e muitos livros e filmes que retratam a dor, o sofrimento, o morrer, muitos atos médicos, em pinturas e murais. Diego Rivera (1886-1957), marido de Frida Kahlo e o maior muralista do México do século passado, pintou vários murais em hospitais do México e Estados Unidos da América.

Tivemos artistas que homenagearam seus próprios médicos, como por exemplo, os famosos pintores Van Gogh, Frida Kahlo e Goya (11).

Van Gogh (1853-1890) pintou seu médico, Dr. Paul-Ferdinand Gachet, que o acompanhou em Auvers-sur-Oise, na França, nos últimos 72 dias de vida que antecederam seu suicídio aos 37 anos. O Dr. Gachet era pintor amador e apreciador das artes e aceitava as pinturas de Van Gogh como pagamento das consultas. O médico é retratado segurando a planta Digitalis purpúrea, de onde era produzida a digitalina (cardiotônico) e usada, à época, no tratamento psiquiátrico, explicando a provável xantopsia de Van Gogh (figura 1).

 

Fig. 1 – Retrato do Dr. Gachet (1890). Vincent

Van Gogh (1853-1890). Óleo sobre tela, 66 x 57

Coleção particular de Ryoei Saito (Tóquio)

 

Frida Kahlo (1907-1954), pintora mexicana, teve poliomielite na infância, sofreu sério acidente de trânsito aos 18 anos e sua coluna vertebral foi operada sete vezes pelo médico Dr. Juan Farill. Foi encontrada morta aos 47 anos de idade. Em seu diário, deixou registrado seu agradecimento, pintando o quadro “Autorretrato com o retrato do Dr. Farill” (Figura 2).

 

 

Fig. 2 – Autorretrato com o retrato do Dr. Farill (1951).

Frida Kahlo (1907-1954). Óleo sobre fibra dura, 41,5 x 50

Coleção particular (México).

 

Francisco José de Goya y Lucientes (174-1828) teve o primeiro acidente vascular encefálico aos 46 anos, ficando hemiplégico à direita. Aos 73 anos apresentou novo acidente vascular e sobreviveu por mais 9 anos. Nesse período pintou um autorretrato junto ao seu médico Dr. Eugênio Arrieta, um ano após, demonstrando sua gratidão pelo atendimento (figura 3).

 

Fig. 3 – Autorretrato com o Dr. Arrieta (1820). Francisco

de Goya (1746-1828). Óleo sobre tela, 117 x 79 cm.

Instituto de Artes (Minneapolis)

 

Existem, também, muitos médicos artistas, envolvidos com a literatura, com as artes plásticas, com a música e com outros tipos de arte. De certa forma, os artistas possuem uma sensibilidade maior para compreenderem a dor e o sofrimento.

Richard Lippin, médico e artista, fundador da International Arts-Medicine Association, em carta dirigida ao Journal of the American Medical Association (JAMA) assim se pronunciou: “Cada vez que um médico escreve um poema, pega um pincel para pintar um quadro, faz uma escultura, produz uma fotografia artística, toca um instrumento musical, canta uma peça de coral ou escreve um texto literário, este médico, ao se engajar num ato criativo, reafirma, sustenta e embeleza alguns dos princípios básicos da Medicina” (12).

Atualmente, no Brasil, vivemos um redescobrimento, especialmente no ensino médico, das Humanidades que compõem o conjunto de disciplinas que contribuem para a formação integral do Ser Humano, independentemente de qualquer finalidade utilitária imediata. As Humanidades Médicas compõem o estudo das artes liberais, incluindo os clássicos gregos e latinos, filosofia, antropologia, sociologia, ética e bioética, história, literatura, cinema, música, teatro, dança, pintura, escultura e outras.

Devemos garantir aos estudantes de Medicina, aos médicos residentes e a todos os médicos o acesso ao conhecimento das Humanidades (incluindo as Belas Artes) para tornarem-se melhores pessoas e melhores médicos.

Muitas Escolas Médicas no mundo têm desenvolvido cursos de Arte, no início ou  durante todo o curso, usando variadas metodologias: laboratório de leitura com indicações de livros e discussão posterior; uso de filmes de curta e longa metragem, também com discussão posterior; filosofia, psicologia, sociologia e antropologia médicas; história da medicina; comunicação; visitas guiadas à museus; análise de músicas (melodia e letra); formação de conjuntos musicais  e de corais, compostos pelos próprios profissionais de saúde, com apresentação nos hospitais e muitas outras abordagens, tais como teatro, dança, etc.

O ensino das Humanidades e o desenvolvimento de habilidades culturais, por meio das artes, aperfeiçoa a sensibilidade do jovem médico, ao conhecer não somente a biologia, mas também, a biografia e o simbolismo que todo paciente carrega dentro de si.

 

* Roberto Luiz d’Avila é Cardiologista, Especialista em Bioética, Mestre em Neurociências e Comportamento, Professor de Humanidades Médicas da Unisul (Universidade do Sul de Santa Catarina) e Ex-Presidente do Conselho Federal de Medicina

 

Referências Bibliográficas:

  1. Bernard, Claude. An introduction to the study of Experimental Medicine. Editora Guimarães. Porto, 1978
  2. Marañon, Gregório. La medicina y nuestro tempo. Espasa Calpe. Madrid, 1954
  3. Nepomuceno, Luis André. Petrarca e o Humanismo. EDUSC. Bauru, 2008
  4. Cícero, Marco Túlio. El Orador. Alianza Editorial. Madrid, 2004
  5. Jaeger, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1989
  6. Aristóteles. Política. Editora Vega. Lisboa, 1998
  7. Joseph, Miriam. O Trivium – As artes liberais da Lógica, Gramática e Retórica. Editora É Realizações. São Paulo, 2014
  8. Escola, Equipe Brasil. Frederico Roger de Hohenstaufen. Disponível em https://brasilescola.uol.com.br/biografia/frederico-roger-hohenstaufen.htm (acesso em 24.10.2020)
  9. Tolstói, Leon. O que é Arte? Editora Nova Fronteira, 2° Edição. Rio de Janeiro, 2016
  10. Londres, Luiz Roberto. Iátrica, a Arte Clínica. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1997
  11. Bezerra, Armando J. C. Admirável mundo médico: arte na história da medicina. CRM-DF. Brasília, 2002
  12. Lippin, Richard. JAMA Newsletter, vol 3, n° 3, 1988

 

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