Discurso de Recepção – Afrânio Peixoto


Afrânio Peixoto*

DONS DE SENSIBILIDADE E DE CARÁTER

Quis a Academia Brasileira fazer esta justiça desde já. Por isso, tão solícita, vos acolheu.
Sucedeis a um poeta: até nisso ela marcou o propósito de firmar que se abrem aqui sucessões à inteligência e não à herança de colaterais ou de descendentes, na semelhança do espírito, como na ordem civil. Aliás, não seria difícil justificar uma contradição, tão da índole humana, como um sábio é o parente próximo de um poeta. No amor da natureza, e nas ânsias por seduzi-la ou por compreendê-la, há entre os dois apenas a diversidade dos meios. E não raro eles se encontram: Goethe não será exemplo singular. O vosso discurso é agora revelação nova. Vós sois, porém, como os grandes poetas que não fazem versos: nem sempre estes têm poesia e ela sobeja na vossa vida e na vossa obra.

Sois sentimental: basta ver-vos, para sentir que tendes coração terno e sentidos delicados.
Tendes a piedade religiosa que já fugiu do comum dos homens; chegais até ao fetichismo, e às vezes à superstição, que as mesmas mulheres do nosso tempo vão esquecendo. Enquanto resolveis difícil problema sanitário, na paz do vosso gabinete de trabalho, guarnecido de móveis de gosto e de quadros escolhidos, de um incensório oriental escapam-se meadas de fumo, que descrevem volutas azuis e arabescos caprichosos, e seduzem pelos sentidos a um deliqüescente bem-estar, e pela imaginação levam para a distância comprida do sonho; só vos prendeis à realidade se vos dão esse ambiente de poesia.

Por isso, do vosso instituto, perdido numa restinga de mangue, fizestes palácio encantado, como a fantasia dos califas nunca realizou algum no Oriente; na maravilha da construção arquitetônica não faltam entretanto os mínimos requintes de comodidade e de técnica: ele é o vosso grande retrato, objetivo e espiritual, traçado com a sinceridade dos que pensam realizar apenas uma idéia e refletem nas coisas a própria natureza. É nesse cenário, que preparastes para a vossa família intelectual, os discípulos, que passais os vossos mil e um dias, embevecidos e extáticos, na pesquisa da verdade e na contemplação da ciência.

Todo vós, na aparência externa e manifesta, esquiva e desprendida; bem trajado, mas sem propositado apuro no vestir; o precioso chapéu de palha desabado; os olhos tímidos e profundos, que olham de longe em cintilações; a palavra rara e sugestiva, mandando sem apelo, como quem aconselha e suplica; o perfil nítido e voluntário; a cabeleira basta, empoada precocemente pelo tempo… vos dão aspecto romântico e aventuroso, que contrasta com as certezas positivas de vossa vida de sábio, provocante como paradoxo vivo. É que sois um poeta desgarrado na ação, provando a plasticidade maravilhosa desse plasma do entendimento que nos faz o que queremos e dos outros o que soubermos querer.

É uma das vossas idéias favoritas, e pelas quais tendes triunfado na vida, que a vontade eficaz basta para suprir a todas as insuficiências das coisas e dos homens. Não escolheis os vossos comandados pelo favor enganoso do sentimento ou pelo concurso de provas falíveis; quaisquer que eles sejam, e os acasos da vida vo-los deparem, vós os fazeis bons, dedicados, inteligentes e capazes.

Não que o não fossem, ou não o sejam de antes, mas o faríeis, se até não fossem. É o método seguro das grandes vontades. Jesus elegeu em quaisquer os seus apóstolos. Improvisou Bonaparte os seus marechais. Tendes um seminário de sábios, que o não eram, não o seriam provavelmente, mas os fizestes, como vos fizestes, mudando talvez as vossas primeiras inclinações, denunciadas ainda nas aparências da vossa obra e até no aspecto de vossa pessoa.

Este poder absoluto da vontade, em que acreditais e que exerceis, é a vossa força e dela vos veio a glória. Falta-nos competência para discuti-la, no que tem de técnico; os nossos sapientes vizinhos da Academia de Medicina vos conferiram certamente essa honra, com os seus aplausos. Retemos apenas o traço forte de vontade, com que libertastes a nossa pátria do flagelo que mais de uma centena de milhar de vidas lhe consumira e por mais de meio século a injuriava diante do mundo civilizado; retenho o epíteto que vos conferiu nesse momento histórico o assombro e a admiração de alguém que vos compreendeu.

 

A CAMPANHA DO SANEAMENTO

Depois de guerrilhas intermináveis, de doestos e represálias, em que nos vimos sempre humilhados, as suas conveniências econômicas moveram os nossos vizinhos do Prata a procurar conciliação sanitária, de onde viriam outras, já que os novos processos de saneamento pareciam restituir a salubridade do Rio de Janeiro. Veio então enviada uma missão científica, para negociar. Os nossos representantes, e fostes um deles, asseguravam pela eficácia da profilaxia recente e recusavam as práticas antigas de desinfecção, nesse caso incômodas, onerosas e ineficazes. Os estrangeiros não achavam, numa campanha ainda em prova, elementos para tanta opinião. Como nos julgaram incapazes de tanta leviandade ou má-fé, devíamos ter razões cabais; e pois que não as declarávamos, cumpria obtê-las a todo o transe. A sós, convosco, um deles, em momento azado, vos interpelou sisudamente, sobre o mistério da vossa fé. Vós lhe destes então o vosso segredo. Ele é terrível, e está guardado até hoje. Pois que é a verdade, e ela vos honra, só conhecendo a grandeza do sacrifício que fizestes por nós, é que poderemos vos louvar, como mereceis, pelo benefício prestado.

Pretendia um sábio cubano que eram os mosquitos os agentes propagadores da febre amarela. Quando foi da ocupação militar da grande Antilha pelos americanos, tendo de um lado as antigas doutrinas, batidas e debatidas, que se revezavam, sem dar solução útil ao problema, e do outro pista nova e esperançada, seguiram por ela e lhe confirmaram a excelência. Devia a defesa sanitária ser feita, combatendo os mosquitos e privando-os de se infeccionarem nos doentes, para depois aos sãos não transmitirem a doença. Os ensaios realizados surtiram resultado surpreendente.

Para nós, apossados pelo mal havia tanto tempo, o caso parecia bem árduo e mais difícil. Governos passavam e desesperavam de resolvê-lo. Foi nesse momento que uma atilada perspicácia vos chamou à direção da saúde pública. Trazia o Presidente Rodrigues Alves nas suas promessas de administração a de sanear a capital do país, que dava internamente o exemplo da corrupção, e ao estrangeiro fazia justamente suspeitar de todo o Brasil. Antes de pretendermos lugar no mundo, cumpria prepararmo-nos para ele, com decência e confiança de civilizados. Qualquer sacrifício seria pequeno para tamanha aspiração. Pôs em vós o governo sua inabalável confiança e não mediu esforços nem provações para o êxito. Compreendestes logo que tais interesses em jogo e tão profunda fé em vosso critério exigiam experiência e observação que não possuíeis.

Não seria de sábio cega obstinação: só a dúvida que investiga e ensaia, para não duvidar mais, traz certezas úteis, embora às vezes relativas. Foi então que vos quisestes convencer, para convencerdes os outros, para salvardes o país da afronta e do luto. Foi então que permitistes a uma comissão de sábios europeus, que aqui viera estudar o mal, e trabalhava sob a vossa guarda, que ensaiasse, como outros já haviam feito nas Antilhas, in anima nobili. Aparecem sempre destemidos ou aventureiros que se expõem ao perigo vendo o proveito: foram informados dos riscos possíveis e prováveis, aquinhoados com um seguro material pelos azares da experiência, que seria grave e podia vir a ser funesta. Mosquitos infeccionados, que haviam picado doentes de febre amarela, foram postos à prova, nesses nobres animais de experiência. E a febre amarela, verdadeira, natural, autêntica, se declarou neles… Mais de um morreu…

 

“UM HOMEM…”

Até aí víeis surgir diante dos olhos pasmados uma verificação científica que vos infundia certeza prática e maior, de que seríeis capaz de redimir, por esse modo, a vossa pátria de flagelo assassino e degradante. Mas, quando se ultimou o sacrifício das vítimas imo¬ladas em holocausto a esse novo ídolo, feroz e canibal, por vezes, como os outros, a Ciência, para pesquisar ainda no cadáver as alterações estruturais que comprovam a doença e dão ao diagnóstico segurança incontrastável, esquecido que andáveis num delírio altruísta pela humanidade, tornastes à condição misérrima de homem, que sente e que sofre. Dos olhos vos escorriam lágrimas que empanavam a vista, e na mão vos tremia o bisturi de dissecção, recusando-se a prosseguir. Os vossos companheiros, sábios também, choravam e tremiam como vós… Nenhuma homenagem melhor poderíeis, homens fortes de ciência, prestar a essa humanidade, que às vezes esqueceis para servi-la melhor, do que no momento mesmo da posse da verdade salvadora de milhares de vidas, tontos de orgulho e de esperança, serdes obrigados à fraqueza do coração e ao temor da consciência, até curvar a fronte, e chorar, e tremer, pelas criaturas que sacrificastes ao bem comum.

Todos os dias reis e estadistas, industriais e aventureiros imprudentes e desastrados, causam a morte a milhares de homens na chacina bárbara das guerras, na ganância criminosa das empresas, na imprevidência tonta dos acidentes, sem responsabilidade, sem remorso. Mas vós, sacerdotes de uma religião, porque o deve ser a vossa medicina de desprendimento e de altruísmo, pelo bem de todos, pelo bem de cada um, a vós deve ter pesado muito e feito muito sofrer vos encontrardes diante da dolorosa necessidade. Estou que alguns dos vossos precoces cabelos brancos alvejaram nesse dia… A vossa consciência justa vos deve ter consolado de que éreis apenas sacrificador eleito pelo destino: fostes forçado a cumprir, uma vez mais, a velha lei da história, que exige, para a menor das conquistas na felicidade do homem, um pouco de sangue derramado. A remissão do pecado, a liberdade, a honra, a glória, a justiça, e até a mesma verdade, custam sangue… Resgate pago a uma sina violenta que nos persegue…

Mas porque sofrestes, tivestes o prêmio que não falta a toda sincera piedade. Do sangue das vítimas colhestes prova, que talvez faltasse de outra sorte, para conseguirdes o benefício imenso de uma redenção sanitária. Ganhastes a confiança, a tenacidade, a pertinácia, com que redimistes o Rio de Janeiro e ides redimindo todo o Brasil.

O sábio estrangeiro que, muitos anos antes destes dias felizes de hoje, vos ouvia em confissão para se convencer, quando ainda em meio da campanha já possuíeis a certeza do triunfo, só pôde traduzir o seu assombro e a sua admiração por esta palavra, que lhe ouvimos: – “Osvaldo Cruz… é um homem!”
É o epíteto mais belo, e o mais nobre, que o homem costuma dar ao seu semelhante. Talvez porque raríssimos deles o merecem.

Tem a ciência, pois, a sua poesia, áspera e forte, poesia violenta de ação, feita também às vezes de sofrimento, mas de vontade dominadora, outras muitas, diante da qual a da imaginação é frágil e efêmera, como sonho de criança.

Reunis, por conseguinte, todos os méritos que fazem grande o homem, orgulho da sua espécie: a sensibilidade com que no trato íntimo, na família, entre os amigos e os discípulos, colegas e subordinados, sois querido e venerado; a inteligência com que ides abrindo caminhos novos ao conhecimento, educando urna geração de sábios que já honram ao mestre, e serão ufania desta terra; a vontade, finalmente, com que em todos os dias de vossa vida ajuntais serviço novo e relevante aos que já nos prestastes e beneméritos, de salvação pública, por toda a parte, do Rio de Janeiro aos confins da Amazônia. Não receareis contraste.

A Academia Brasileira, que pretende ser o índice abreviado da cultura nacional, faltaria à sua nobre ambição, se não vos cobiçasse. E se vos tem hoje, não lhe deveis por isso gratidão; não o estranhará a ninguém; é porque tínheis aqui, desde muito, um lugar obrigado.

 

(Fonte de pesquisa: acervo da Academia Brasileira de Letras)

*Trecho do discurso de recepção pronunciado pelo médico e escritor baiano Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947), por ocasião da posse, na Academia Brasileira de Letras, do médico sanitarista, epidemiologista e bacteriologista paulista Oswaldo Gonçalves Cruz (1872-1917), pioneiro na defesa da vacinação em massa da população, chamado por Rui Barbosa de “Pasteur dos Trópicos”.

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