Meu Pai – Carlos Chagas Filho


Carlos Chagas Filho*

Conversando, há dias, com um amigo, disse-me ele que distinguia, no seu relacionamento com seu pai, três fases distintas: a primeira, a da admiração sem limites; a segunda, a de contestação, quase sempre injusta, e a terceira, a de uma compreensão que reviveu a afeição inicial. Provavelmente, os psicólogos de hoje, tão bem afeitos à interpretação dos sentimentos humanos, saberão explicar os motivos de cada uma destas fases e, até mesmo, dos mecanismos que fizeram com que estas fases e, até mesmo, dos mecanismos que fizeram com que estas fases se sucedessem.

Revivendo minha vida, não encontro nenhuma descontinuidade e tempo de fricção no meu relacionamento com meu pai. Foi ele sempre linear, pleno de amizade, carinho e admiração. Esta só poderia crescer e o fez ainda mais, à medida que fui evoluindo como universitário e cientista. Creio que esta afeição íntima foi o resultado, também, da ação de minha mãe, que nos educou, a mim e a Evandro, meu irmão, na constância de uma admiração incomparável por nosso pai.

Não posso encontrar, na emoção em que eu o evoco, cada dia, senão o personagem simples, atento, fino nos gestos e elegante no trajar, que a todos encantava, exatamente porque nele não se encontravam a arrogância e a autossuficiência que caracteriza, em geral, infelizmente, tantos daqueles que na sua vida realizam feito de importância. Ao contrário, meu pai tratava a todos por igual e nunca o vi, nem nos momentos em que o sentimento seria justificado, praticar com alguém que não fosse em termos se não polidos, pelo menos, corteses. Direi que, muitas vezes, terá tido razão para proceder assim.

Ao iniciar esta oração, ainda que breve, quero dizer da primeira lembrança que tenho de meu pai. Vejo-o, numa vaga imagem – como a que aparece nos écrans dos televisores quando misteriosos conchavos estão sendo tramados e, por isso, as imagens mostram-se enfumaçadas – chegar-se a mim, para me beijar, ainda no berço, muito cedo. Era ele madrugador, já que tinha que apanhar a lancha para Manguinhos às 7 horas da manhã, impreteríveis, no Cais Pharoux. Até hoje, esta imagem retorna cada vez que entro num ambiente fortemente impregnado pelo cheiro do tabaco. Meu pai foi sempre um fumador inveterado e é provável terem sido estas visitas matutinas a razão da minha hipersensibilidade olfativa.

Mais tarde, eu o encontro, grande trabalhador, na luta contra a pandemia de gripe espanhola que invadira a cidade do Rio de Janeiro. Venceslau Brás mandara Elmano Cardim, seu Chefe de Gabinete, convidar Chagas para dirigir o combate contra a atroz invasora da cidade. Chagas relutou em aceitar o convite por temer magoar o então Diretor do Departamento de Saúde Pública, que julgava ser um homem competente. A pressão de Cardim e de seu cunhado Hélio Lobo foi de tal ordem que não pôde resistir à mesma e durante mais de 40 dias, ainda que atingido pela febre, conteve a cidade, de canto a canto, mobilizou a classe médica que só tinha para combater o mal a quinina, o repouso dos pacientes e a canja de galinha, esta de difícil encontro. Ao lado da classe médica, Chagas mobilizou uma grande parte de seus amigos e dos amigos de seus amigos e, em apenas uma semana, abriu 52 postos de emergência, sejam hospitais improvisados, com os quais aliviou a atmosfera de catástrofe que Pedro Nava tão bem descreve em um de seus livros. Mas com que esforço! Em casa, meu irmão, gravemente doente; eu do mesmo modo; mas, mais grave do que nós dois minha mãe, cujo estado de saúde se agravou de tal modo que, certa vez, buscaram-me na minha cama para vê-la antes que desaparecesse. Como me recordo desta cena. Ao lado de meu pai, Miguel Couto que, a seu pedido, ia nos ver duas vezes por dia. Este quadro gravou-se no mais profundo da minha memória, nunca tendo vindo à superfície até que um dia, em visita à Catedral de San Michelle, em Lucca, deparei-me com a estátua de Ilaria del Carretto, admirável mármore de Giacobo della Quarcia, e tudo o que vira no grande quarto de dormir da Rua Paissandu voltou de súbito e para sempre à minha memória.

Não sei como meu pai pôde sobreviver a estes momentos em que deu de si muito mais do que poderia dar. Soube fazê-lo como se nada de grave estivesse a exigi-lo.

Em outra época, vejo-o, ao mesmo tempo, glorioso e atristado. Chegava de Buenos Aires, onde fora participar do Congresso Sul-americano de Medicina, instado sobretudo por Aluísio de Castro, seu grande amigo, que sabia que o cientista tedesco Krause iria contestar a grande descoberta da Doença de Chagas. Houve o debate e, com a força de suas realizações, Chagas anulou, totalmente, a falsa argumentação de Krause. Sua natural capacidade de abstração, estimulada pelo sucesso alcançado, fez com que Chagas, ao sair na noite friorenta, na capital platina, vestisse o sobretudo de Krause, certamente um gigante, em comparação a meu pai, que mal chegava a 1,70 m. O atristamento a que me referi diz respeito à sua sensibilidade, na qual a lealdade e a fidelidade o acompanharam toda a sua vida. Meu pai não podia se conformar com o fato de ter encontrado caixas de lâmina de seu laboratório sub-repticiamente presentes na mesa de trabalho do referido Krause. Foi, certamente, nesse momento, que Chagas pressentiu que algumas tormentas iriam ao seu encontro no caminho de sua vida. Para elas estava preparado porque, dentro da simplicidade do personagem, havia o varão indomável que sabia, como poucos poderiam fazê-lo, responder com valentia e educação às provocações as mais diversas. Estas viriam de duas fontes: uma delas sairia de dentro desta nossa querida Academia de Medicina. Em 1922, detona-se aqui uma campanha que, visando à obra científica de Chagas, nada mais fez do que desprestigiar a medicina brasileira, criando, sobre o que é a sua maior realização, um véu de dúvidas que só soube atrasar a pesquisa desta importante endemia. Vitorioso, não exerceu nenhuma perseguição àqueles que o quiseram destruir. É justo assinalar, neste momento, dentro os que, enfrentando as iras de parte do estabelecimento médico, vieram defendê-lo, seja diretamente, nesta tribuna, como Nascimento Silva e Clementino Fraga, seja indiretamente, com cartas, depoimentos e artigos, como Olímpio da Fonseca, Magarinos Torres e Bento Osvaldo Cruz. Fora da Academia, a luta foi mais intensa, particularmente pelo nível de certas acusações em artigos publicados na imprensa carioca de cunho antibernardista, nos quais até mesmo a vida privada de meu pai foi atacada. E, ainda, naqueles que apareceram no Diário de Medicina, jornal criado especialmente para atacar o reformador da saúde pública, o inovador de métodos sanitários, o partícipe dos trabalhos do Comitê de Higiene da Liga das Nações, o mais ilustre dos cientistas brasileiros e, sobretudo, um homem da confiança do Presidente Artur Bernardes.

Estamos nos anos 20 – e desejo apontar algo que marca a vida de meu pai depois destes anos. É que a sua personalidade como que fenece um pouco. Sua vibração, tão forte nas discussões científicas e políticas, perde um pouco de sua força. Lembro-me de que, no período em que iniciou a reforma da saúde pública, aos domingos reuniam-se em nossa casa, para o almoço, vários dos seus colaboradores. Alguns deles perdiam a voz, de tão alto que a alçavam. Outros utilizavam termos muito ousados e que não eram habituais nas tertúlias da Rua Paissandu. Meu pai também alçava a voz, mas não podia superar, por exemplo, a de Belisário Pena, já que a sua tonalidade mais se aproximava de Alberto Cunha. Nunca utilizou, nesses debates, termos que eu não pudesse ouvir em casa, ainda que os escutasse, com frequência, no colégio, e nunca perdia a linha lúcida do seu raciocínio lógico. Não havia nestes ágapes exageros alimentares e nem nas bebidas, mesmo porque, na ocasião, era desconhecida nas mesas de maior nível a aguardente, hoje tão usada sob a forma de “caipirinha”. E os vinhos, sempre franceses – bons tempos aqueles! – eram bebidos com moderação. A discussão, esta não tinha fim e prolongava-se até a tarde. Eu já era relativamente grande e meu pai não precisava mais me levar aos estádios de futebol. Foi, aliás, na sua companhia, que assisti ao famoso gol de Friedenreich, com o qual o Brasil sagrou-se o primeiro campeão sul-americano de futebol.

Nestas discussões, parecia-me que meu pai teria perdido um pouco da vivacidade de sua argumentação. Deste momento em diante vejo, na sua personalidade, o desaparecimento do resto de juventude, ainda que a verdadeira velhice, caracterizada, a meu ver, pela perda da capacidade de admirar, nunca lhe tenha chegado, nem mesmo o desaparecimento de certos traços infantis que todos nós guardamos e, com cuidado, escondemos dos outros.

Qual terá sido o motivo desta mudança? O desapontamento de ter sido combatido por colegas que, na verdade, muito mais do que movidos pela inveja, eram empurrados pela ignorância? Vale dizer, foi o fato do combate da existência da moléstia de Chagas que o levou a menor entusiasmo? Terá sido, talvez, a atitude arrogante dos jovens sanitaristas, cuja profissão fora por ele codificada e aos quais deu toda a ajuda que pôde? Não creio que estas tenham sido as razões das diferenças que encontro na sua maneira de ser. Penso, antes, que foi o fato de se sentir doente. Pequenos edemas nas pernas, dispnéia de esforço, provavelmente dores precordiais, prenunciaram-lhe que, talvez, estivesse próximo do fim. Tanto assim é que nos últimos anos de vida, ao chegar a Manguinhos, mandava-me chamar no laboratório de Carneiro Felipe, onde eu trabalhava. Durante uma ou duas horas, começava a me contar a sua vida e a referir os vários passos pelos quais caminhara: o Colégio de Itu, o Colégio de São João del Rei, Ouro Preto, a Escola de Medicina da Praia de Santa Luzia, a Santa Casa e outras etapas mais. Na sua conversa, com frequência, surgiram as figuras de sua mãe, de Íris, de Miguel Couto e de Osvaldo Cruz. Depois vinham as etapas da descoberta da Doença de Chagas. Parecia que queria me deixar como testemunha de sua vida, de suas alegrias e decepções. Nestas longas conversas, entretanto, nunca se referiu à luta na Academia de Medicina e nem mesmo ao Diário de Medicina.

Não tinha rancores e nem queixas, mesmo porque as dificuldades havidas em Manguinhos se haviam dissipado e, mais ainda, conseguira o que mais havia desejado ser durante a vida: professor na Faculdade de Medicina, onde se formara. A cátedra de Medicina Tropical foi, para ele, uma grande benesse. Ali, pelas manhãs, reunia um grupo dos mais seletos discípulos que um professor brasileiro jamais teve. Gostava de ensinar. Embora as suas aulas parecessem inteiramente improvisadas, pelo menos uma grande parte das mesmas era cuidadosamente preparada. Assim, encontra-se, entre os seus papéis, uma folha onde estão escritas, com a sua letra, difícil talvez, mas bem traçada, sucessivas definições da infecção malárica, das quais escolheria uma no momento da prelação. Eram aulas magistrais, mas não no sentido irônico que, muitas vezes, se dá ao adjetivo, mas eram magistrais no sentido semântico da palavra. Em cada aula, conceitos vários, bem enunciados e muitas vezes repetidos, para que fossem bem gravados. Além do mais, a sua prosódia mineira, que nunca lhe faltou, dava às mesmas o encanto das terras onde nascera. Seu curso tinha a característica fundamental de associar a pesquisa ao ensino e, por isso mesmo, pelo novo sabor que continha, já que muitas vezes a pesquisa era original ou recente, o auditório, onde os alunos se misturavam a mestres consagrados, este sempre superlotado. Mantinha, nas aulas, a elegância refinada que nunca quis abandonar. Hoje, os alunos talvez não a compreendessem, mas fazia, a mesma, parte de estrutura complexa que dava ao homem simples a aparência sem dandismo do homem finalmente educado,

Disse mais de sua vida do que de sua personalidade. Já falei na sua lealdade e fidelidade, cujo melhor exemplo foi a sua devoção a Miguel Couto e a Osvaldo Cruz, mas quero ressaltá-la.

Sua maneira de viver era simples. De manhã, quando já não tinha mais a obrigação matinal do Cais Pharoux, gostava de brincar com crianças. Primeiro Evandro, depois eu. Depois, os filhos de Astrogildo Machado, seu cunhado, entre os quais talvez tenha sido de sua preferência o Marcelo. Algumas vezes, Tatiana, a única neta que conheceu. Antes de sair, apareciam em casa, na Rua Paissandu, as crianças que moravam na rua ao lado, entre eles a filha de uma simpática portuguesa, costureira de mão cheia. Não se esquecia, ao voltar à casa, à noite, antes ou depois de passar pela tabacaria do Largo da Carioca, de comprar balas e bombons, ou pequenos brinquedos, para dar às crianças na manhã seguinte.

Sua afeição se estendia, de maneira intensa, aos que com ele trabalhavam e, bom ouvinte, sei dizê-lo com precisão, ao fim da vida passava horas escutando as queixas de companheiros e discípulos de trabalho, numa espécie de consultório sentimental, para o qual tinha decidida vocação, tal era a sua capacidade de compreender os sentimentos e as emoções dos outros. Malgrado a extensão da sua obra científica, que persiste hoje como monumento da ciência médica, e da sua ação de administrador e de criador de escola, sempre teve tempo para procurar servir aos outros, sem distinção de classe ou de raça. Não é esta a característica que define um homem autêntico? Assim era meu pai.

 

(Fonte de pesquisa: Revista da Academia Brasileira de Letras, vol. 157, 1989.)

*Depoimento do médico e cientista Carlos Chagas Filho (1910-2000) sobre seu pai, o médico sanitarista, infectologista e bacteriologista mineiro Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas (1879-1934), responsável pela descoberta e descrição completa da doença de Chagas e um dos heróis da luta contra a pandemia de gripe espanhola.

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