A arte como instrumento de educação médica
Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas
// José Eduardo de Siqueira*
Os extraordinários avanços de novas metodologias diagnósticas em medicina, ao tempo em que permitiram melhor conhecer as características anátomo-funcionais das enfermidades, induziram os profissionais de saúde a subestimar as variáveis biográficas dos pacientes. A consagração das subespecialidades médicas e o fascínio pelos hodiernos métodos de semiologia armada transformaram a relação médico-paciente numa busca direcionada preferencialmente para o diagnóstico e tratamento da doença, desconsiderando o fato de que as pessoas adoecem simultaneamente nas esferas biológica, psicológica, social e espiritual. Ao subestimar a complexidade do adoecer, os médicos apequenaram a figura dos pacientes como se fossem tão somente portadores de enfermidades, passando a perseguir como único objetivo a cura destas e olvidando-se da regra de ouro que deve reger o exercício da medicina, contida no antigo aforismo: “à medicina cabe curar as vezes, aliviar muito frequentemente e confortar sempre”.
Essa visão distorcida da realidade assumiu maior importância na contemporaneidade quando passamos a observar a prevalência de doenças crônico-degenerativas incuráveis, tornando-se imperativas iniciativas terapêuticas de alívio e conforto para o sofrimento dos pacientes. Nesse sentido, basta considerar o progressivo envelhecimento populacional e os cuidados adequados a serem prestados a pessoas idosas portadoras de enfermidades malignas metastáticas ou de diferentes formas de demência senil. Parece óbvio, portanto, que estamos diante de uma realidade que nos obriga a considerar substituir o atual paradigma do curar para o de cuidar. Mais ainda, sendo as doenças prevalentemente crônicas e incuráveis, devemos promover mudanças nas grades curriculares dos cursos de medicina, robustecendo-os com conteúdos de humanidades e respeito aos valores pessoais dos pacientes, privilegiando medidas de aumento na qualidade de vida dos enfermos. O novo modelo pedagógico a ser implantado deverá acolher o paciente como sujeito, e não como objeto; o ser biográfico, e não o corpo enfermo; o sentimento, e não somente a razão; os valores e crenças pessoais, e não unicamente as informações advindas da racionalidade científica. É precisamente o que está disposto na Declaração de São Paulo, de 26 de julho de 2019, emitida por ocasião do VII Congresso Brasileiro de Humanidades Médicas e referendada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que no parágrafo único do artigo 2 estabelece que “o cuidado integral, que pressupõe a percepção do ser humano em sua inteireza e suas múltiplas expressões e formas de relação com o mundo – do amor à espiritualidade –, é uma necessidade epistemológica com decisivas implicações terapêuticas”.
A carência de conteúdos de humanidades na grade curricular dos cursos de medicina do Brasil motivou a criação da Comissão de Humanidades Médicas do CFM, que em 2021 promoverá a oitava versão de seu congresso nacional. Os eventos anteriores indicaram que os médicos brasileiros tradicionalmente se mostram sensíveis ao cultivo da literatura, das artes plásticas, do cinema, entre outras formas de manifestações artísticas. Na introdução deste artigo reproduzimos um pequeno trecho da obra Grande sertão: veredas, do médico João Guimarães Rosa – indiscutivelmente uma das mais elevadas expressões da literatura brasileira. Nele, o autor exalta que somente o amor pode promover uma relação interpessoal saudável.
Ao final deste breve ensaio, desejamos prestar um modesto testemunho pessoal sobre a realização de oficinas com estudantes de medicina considerando a relação entre medicina e artes plásticas. Entre as telas que utilizamos para debater a relação médico-paciente, destacamos a discussão sobre A volta do filho pródigo, de Rembrandt, motivo de uma contribuição que fizemos ao blog Humanos, do CFM, em 2019. Mais recentemente realizamos uma oficina sobre a obra O terapeuta (anexa), de René Magritte, criada em 1937. Adepto do surrealismo, o pintor nos apresenta um homem sem rosto, com um chapéu sobre um manto vermelho, tendo seu corpo representado por uma gaiola com dois pássaros brancos, um livre e outro prisioneiro. Na mão esquerda segura o que pode ser considerado uma maleta de médico, condição que justifica o título da tela (O terapeuta). O personagem abre generosamente sua capa para que o “terapeuta” possa olhar dentro de sua alma (gaiola). Por meio de participação ativa, os próprios estudantes concluíram que o “terapeuta” (médico) seria o pássaro livre, empenhado em prestar ajuda (terapêutica) ao outro pássaro (paciente), prisioneiro de sua própria enfermidade.
* José Eduardo de Siqueira é membro da Comissão de Humanidades do CFM