Giotto, o dom de um camponês: Ambrogiotto di Bondone (1267-1337)


 // Armando José d’Acampora*

 

A Itália sempre foi um celeiro de grandes pintores e escultores, além de outros talentos. Dentre eles, destaca-se um gênio da pintura que despontou no século XIII e se consagrou no século XIV. Esse homem tinha um dom, uma virtude inata, uma habilidade como a de nenhum outro: a pintura. Seu nome era Ambrogiotto di Bondone, conhecido por Giotto.

Menino pobre, originário da Campânia, logo foi ajudar a família no cuidado de ovelhas e na agricultura na Toscana. Mas em lugar de olhar o rebanho, vivia desenhando ovelhas nas pedras por onde os animais pastavam, utilizando pedaços de carvão como pincel, até que alguém reconheceu nele um potencial artista. Mas este alguém não sabia o quão grande era a arte que nele estava embutida, que já surgia na infância e se faria intensa e imensa na idade adulta.

Giotto é considerado pioneiro da arte renascentista, diferenciando-se da pintura bizantina, com estilo próprio, e utilizando cores e caracteres com base nos homens e na natureza da Toscana, com a qual tinha grande intimidade. Isso caracterizou o grande artista que foi, fato atestado pela obra que deixou como fruto de seu talento para a posteridade. Giotto foi de extrema importância para a arte do Renascimento, época em que alcançou fama e fortuna, mas sua vida foi guiada pelo acaso, que o levou a seu mestre Cimabue e ao Papa Bonifácio VIII.

A história de sua fama como pintor parece começar quando Bonifácio VIII demonstrou a intenção de decorar a sacristia da Igreja de São Pedro, em Roma. Para isso, designou emissários para que procurassem, em toda a Itália, aqueles homens conhecidos como os maiores pintores, e estes deveriam ir a Roma para encontrar Sua Santidade1.

Um dos homens citados era Giotto, um artista “camponês, rústico, alegre e extravagante da Toscana, que dividia seu tempo entre o arado, as ovelhas e o pincel”1, pintando aquilo que observava. Ao chegar na humilde cabana do camponês, o emissário repete a fala já decorada: “Sua Santidade, o Papa, deseja examinar seu trabalho, mestre Giotto. Deixe-me ver alguns dos seus quadros; assim decidiremos se podemos aproveitá-lo”1.

Giotto riu, espirituoso e inteligente2 que era, displicentemente mergulhou um pincel, sem que se desse ao trabalho de achar o que fosse mais adequado, num pote de tinta vermelha e, com um só traço, fez um enorme círculo perfeito em um pedaço de papel qualquer, que encontrou à toa sobre sua mesa. Então o entregou ao emissário de Sua Santidade1,2, que não ficou nem um pouco feliz com tamanha desfaçatez, considerando o ato de Giotto um verdadeiro absurdo, que seria encarado como um imenso desrespeito a Sua Santidade. Como levaria ao Papa um grande círculo vermelho em um pedaço qualquer de papel? Era muita pretensão de um camponês ignorante e leviano.

No entanto, ao receber o trabalho, o Papa logo se mostrou muito interessado pelo círculo desenhado por Giotto e imediatamente perguntou como o pintor o tinha feito: “de uma só vez ou havia utilizado o compasso?”1. “Não, Santidade, foi de um só traço”1,2, respondeu o emissário. Sem nenhum outro artifício, pois somente havia observado um pincel na mão do displicente e pretencioso pintor, que, usando um pedaço de papel comum, com uma só pincelada fez o círculo como se estivesse chupando uvas.

O Papa insistiu em saber mais sobre Giotto, e o emissário lhe disse que era um “camponês vulgar, pastor de rebanhos e muito feio, mas que diziam pintar muito bem. Dizem que pinta um carneiro ou um cachorrinho numa parede, até num pedaço de cerca quebrada, com uma habilidade que, como por milagre, a mancha que pinta imediatamente parede ter vida”.1

O Papa respondeu resoluto: “traga o homem, feio ou não, vulgar ou não, há de servir para nos distrair”.

Nascido no ano de 1267 em Colle di Vespignano, próximo à Florença, na Toscana,1,2,3 desde cedo foi inserido na criação de ovelhas. Começou desenhando ovelhas nas rochas, com carvão, aparentemente aos nove anos de idade.

Certa vez, enquanto o menino desenhava uma dessas ovelhas,2,7 um homem parou atrás de seus e ficou a observar o que esboçava, como figura, na rocha.1,4 O homem era o pintor florentino Cinni di Pepo, ou Cimabue, considerado à época o pintor de maior fama da Itália.1-4,6,7

Cimabue foi até o pai do menino solicitar permissão para levá-lo com ele à sua oficina de pintura em Florença, comprometendo-se a ensiná-lo a pintar. O ferreiro, pai de Giotto, que era muito pobre, concordou depois de muita resistência, e Giotto foi para a oficina de Cimabue em Florença, onde permaneceu por dez anos.2,6

Giotto acompanhou Cimabue até Roma e Assis em 1280. Aqui a conta não fecha. Se nasceu em 1267 e tinha nove anos quando Cimabue o encontrou, não pode ter estado em Roma e Assis com 13 anos, pois já era ajudante de pintura, e em Assis, deixou uma obra que até atualmente é reconhecida como de Giotto pelo estilo. Portanto é mais plausível que a ida para Assis tenha sido aproximadamente em 1285, quando teria a idade de 18 anos.

Conta-se que ali, na oficina de Cimabue, Giotto aprontou uma das suas travessuras, certamente ainda um garoto. Quando o mestre não estava, mas havia deixado seus quadros expostos, Giotto pintou uma mosca em um dos quadros do mestre. Quando Cimabue chegou, tentou por várias vezes afastar, com a mão, a mosca do quadro, até perceber que era pintada. Esse é somente um exemplo da pintura viva e quase real de Giotto.

Cimabue foi o pintor introdutor da perspectiva na pintura, e foi essa técnica aprendida com o mestre que marcou a obra de Giotto, além das cores e figuras humanas que utilizava, fazendo uma ponte entre a pintura bizantina e a renascentista.

Giotto era religioso e prestava homenagem a São Francisco de Assis, que considerava ser o santo que sempre priorizou o homem, construindo um reinado na Terra, e não no céu, como os outros pregadores.1

Giovanni Boccaccio, de quem era amigo e que até o citou no seu clássico Decamerão, considerava Giotto o precursor da cultura renascentista.4

Uma mudança na pintura de Giotto era a presença de figuras humanas comuns em seus quadros. Representava os santos com ousada semelhança em relação aos homens comuns, aproximando-os dos fiéis. A partir da observação dos quadros de Giotto, os santos eram vistos em igualdade com os humanos, que os viam retratados nas telas com muito realismo e parecidos com figuras naturais. Assim, como eram semelhantes a eles, sentiam uma proximidade imensa.

Em Roma, Giotto conheceu artistas como Pietro Cavallini e Arnolfo di Cambio, que produziam afrescos nesta cidade e lhe serviram de inspiração.4 Há registros de Giotto em Assis, Roma, Rimini, Verona, Ferrara, Ravena, Nápoles e Milão.3

Cimabue foi para a cidade de Assis pintar afrescos na Basílica de São Francisco, e Giotto o acompanhou, pintando 28 afrescos cujo tema era a vida desse santo. As pinturas na basílica tiveram tal repercussão à época que esses afrescos mudaram a pintura e a vida do artista, pouco conhecido até então.

A pintura adquiriu uma nova visão, pois Giotto introduziu homens, mulheres, paisagens e o céu da Toscana em suas pinturas, o que até então não havia sido realizado em território sacro por nenhum outro artista, pois costumavam exagerar nos prateados e dourados característicos da arte bizantina.

Mas o que mais impressionava no trabalho de Giotto era que tudo parecia ter movimento. Tudo tinha uma realidade tão concreta que parecia estar vivo, com vigor e dando a impressão de que poderia ser tocado, como se fosse real. Também se afirma que o teto da basílica foi coberto pelos afrescos de Giotto, o que é deduzido pelo aspecto realista das figuras, característico do pintor. Foi após seu trabalho em Assis que se tornou famoso.

Giotto casou-se e em 1287, aos 20 anos, e mudou-se para Roma.6 Sua esposa, Ricevuta di Lapo del Pele, era uma camponesa cujas origens eram a mesma que a dele. Com ela teve oito filhos,4 mas não se tem notícia que algum deles tenha herdado o dom do pai.

Giotto chegou a Roma a convite do Papa Bonifácio VIII, em 1296, quando realizou os afrescos solicitados por ele. Deixou sua pequena obra na Basílica de São João de Latrão, atendendo ao pedido de Sua Santidade.3

Quando ainda estava trabalhando nos afrescos na Basílica de São João, foi visitado pelo Papa que, ao ver o que Giotto estava pintando, teceu seu primeiro comentário, dizendo que não havia nada em dourado. E essa foi só a primeira inovação de Giotto, ao deixar de lado o fundo dourado. Passou a utilizar cores diferentes conforme a situação. Suas cenas não se passavam em cenários antigos: ele transportou as cenas bíblicas para locais conhecidos por ele e originários da Toscana do século XII.

Pintou também passagens da vida de Cristo. Ficou famoso com o resultado do seu estilo inovador e realista, e foi sendo chamado para outros trabalhos em Pádua e em Rimini, onde ornamentou um crucifixo no Templo Malatestiano (1212-1213).12 O trabalho de Giotto nesta cidade foi o ponto de partida para a Escola de Rimini, de Giovanni e Pietro da Rimini.

Para dar a ilusão de profundidade, aumentou o realismo das figuras e incorporou elementos do dia a dia em suas obras, além de dar caráter aos santos, que não eram mais figuras paralisadas, e sim pessoas que possuíam vida e demonstravam seus sentimentos.9

Giotto já havia desenvolvido trabalhos na Basílica de São Francisco de Assis por muitos anos, entre 1285-90, junto com Cimabue e outros artistas considerados menores, produzindo afrescos na mesma nave, na zona superior, cujos motivos eram o Antigo e o Novo Testamento.12

Em 1295, é consagrado mestre e filia-se à Confraria dos Pintores. No decorrer de 1296, é chamado pela Ordem Geral di Muro para realizar uma série de afrescos para decorar a nave da igreja superior da Basílica de São Francisco de Assis. O pintor dividiu a parede da igreja em 38 quadros, mostrando em cada um deles um episódio da vida do santo. Entre a série de afrescos pintados na Basílica de Assis estão: “O êxtase de São Francisco”, “A regra franciscana”, “O presépio em Greccio”, “A morte de São Francisco” e “Sermão aos pássaros”.6

Posteriormente, em 1298, já afamado pelos afrescos de Assis, Giotto foi levado a Roma pelo cardeal Jacopo Stefaneschi, cônego de São Pedro, para pintar um mosaico grandioso, “La Navicella”, na antiga Basílica de São Pedro. Hoje, fragmentos restaurados da obra se encontram no átrio dessa basílica. Participou também da pintura do mural comemorativo do Jubileu de 1300,1,2,3 nas paredes da Igreja de São João de Latrão. Hoje restam fragmentos da obra, como o de “Bonifácio VIII proclamando o Jubileu”.

Em 1301, Giotto abre um estúdio em Florença. Em 1304, vai a Pádua para executar a decoração da Cappella degli Scrovegni.4,12 Enrico Scrovegni mandou construir a capela em 1300 para a expiação dos pecados de seu pai Reginaldo, figurado por Dante como usuário da sétima fossa do inferno.7

Na parede de entrada, o pintor criou uma grande representação do Juízo Final, em cuja parte inferior surge a figura de Enrico Scrovegni doando a capela dedicada à virgem. Nas paredes laterais, Giotto alinhou 38 figuras representando cenas da vida da Virgem Maria e de Jesus Cristo.3,6

 

 

Figura 1: Cappella degli Srovegni6

 

Giotto também foi amigo de Dante Alighieri, pintou seu retrato e foi citado por ele na Divina Comédia.3 Quando Dante, pobre e exilado, solicitou abrigo a Giotto em 1306, perguntou-lhe de forma inocente: “como é possível que um homem com família tão simples encontre inspiração para pintar tão lindos quadros?”.1

Mas é em Pádua, na Capela Degli Strovegni,3 que permanece aquele pode ser considerado o maior trabalho de Giotto, com cenas da vida da Virgem Maria e da Paixão de Cristo, dos vícios e das virtudes – obras realizadas entre 1303 e 1310.

Um documento de 1313 mostra a presença de Giotto em Roma, onde ele executou um mosaico para a antiga Basílica de São Pedro, encomendado pelo cardeal Jacopo Stefaneschi.

Pouco depois, em 1317, idealizou e colocou cores em seis quadros da vida de São Francisco de Assis na Capela Bardi, Igreja de Santa Croce, em Florença.3

Giotto prosperou com sua arte, tanto como artista quanto economicamente, e viajou por toda a Itália. Em 1334 foi nomeado chefe da construção da Catedral de Florença.

Em 1336 realizou, provavelmente, sua maior proeza. Construiu em Florença o Campanário de Giotto, ou Torre de Giotto, ou ainda Campanile de Firenze, junto à Catedral Santa Maria del Fiore,3,6 torre de quatro andares em que não há janelas nos dois primeiros pisos.6,7

 

Figura 2: Campanário de Giotto.6 O pintor não conseguiu ver sua obra terminada, pois faleceu antes de sua finalização.

 

Em 8 de janeiro de 1337, depois de uma breve viagem a Milão, o artista morreu na mesma Florença. Foi enterrado às expensas da Comuna, uma honra sem precedentes para um pintor. Sua reputação se manteve viva por mais de um século depois de sua morte, quando um decreto público determinou a construção de uma grande sepultura memorial para o artista.8 O epitáfio proclamava orgulhosamente: “Sou o homem que deu vida à pintura… Tudo o que possa ser encontrado na natureza poderá ser visto em minha arte”.9

Provavelmente o trabalho mais notável de Giotto tenha sido “A Magestade”.3,13

 

Figura 3: A composição “Madona e o menino em majestade” – também conhecida como “Madona entronizada com os santos” e ainda “Madonna di Ognissanti” – é uma obra de Giotto. Este retábulo foi feito para ornamentar a Igreja de Ognissanti em Florença, na Itália.13

 

 

Conclusões do autor

Giotto era um camponês, uma gênio da pintura, totalmente espontâneo e de talento inato. Possuía aquilo que se chama de dom. Nasceu para pintar. Independente politicamente e de seus patrocinadores, recusando o que era realizado anteriormente, pintava o que via e não o que os seus financiadores queriam. Por fim agradava, pois mudou o conceito de pintura medieval e bizantina. Foi realmente o primeiro pintor renascentista. Por ser autêntico, conseguia passar para a tela aquilo que sentia, expressando dor, sofrimento e alegria com uma vitalidade impressionante. Foi o primeiro pintor humanista da história, pintando a humanidade na vida de São Francisco de Assis. Conheceu e se tornou amigo de Boccaccio, Dante e Petrarca – talvez daí a influência do Humanismo em suas obras. Como refere Carrà,8 “a vida entra na arte de Giotto”.

Giotto foi um iluminado ao pintar o cotidiano da época em obras sacras, algo que se tornou de aceitação universal e atemporal. Colocava na tela uma religiosidade toda sua, sem interferências de quem quer que seja e sem perder o vínculo com sua origem.

Enfim, ele foi daqueles gênios que aparecem fora de uma lâmpada apenas de tempos em tempos (infelizmente) e cuja característica foi a coragem de introduzir movimento em suas telas, que, segundo alguns, pareciam vivas. Isso era realizado com o jogo de luz e sombra.

Giotto, no século XIII, pintava figuras de santos com a aparência de seres humanos comuns, colocando humanidade na tela.10 Observava o mundo através do homem, sendo provavelmente parte da horda de humanistas que surgiu nesta mesma época.

 

Figura 4: Aqui é nítida a diferença entre a “Crucificação de Cristo” na visão bizantina e no novo estilo criado por Giotto.9

 

Figura 5: As pregas das roupas não servem mais apenas para esconder os corpos, e sim para realçar a figura humana.11

 

 

Referências

  1. THOMAS, H.; THOMAS, D. L. Vidas de grandes pintores. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1960. 236 p.
  2. Disponível em: https://www.historiadasartes.com/prazer-em-conhecer/giotto-di-bondone/.
  3. Folha de São Paulo, Turismo, 6 out. 1997.
  4. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Giotto_di_Bondone.
  5. Disponível em: https://www.suapesquisa.com/biografias/giotto.htm.
  6. Disponível em: https://www.ebiografia.com/giotto/.
  7. Disponível em: https://www.historiadasartes.com/prazer-em-conhecer/giotto-di-bondone/.
  8. CARRÀ, C.; EUVALDO, C. Giotto. ARS, São Paulo, v. 7, n. 13, p. 180-189, 2009.
  9. Disponível em: http://turomaquia.com/giotto-voce-conhece-o-pai-do-renascimento/.
  10. Disponível em: http://franciscanos.org.br/?p=6295.
  11. Disponível em: http://turomaquia.com/giotto-voce-conhece-o-pai-do-renascimento/.
  12. VOLPE, C. Galeria Delta da Pintura Universal. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1972. p. 103-110.
  13. Disponível em: http://virusdaarte.net/giotto-madona-e-o-menino-em-majestade/.

 

*Médico, cirurgião geral e proctologista do Imperial Hospital de Caridade e do Hospital Baia Sul; professor de Técnica Operatória e Humanidades Médicas da Unisul Pedra Branca, acadêmico da Academia de Medicina de Santa Catarina e da Academia Desterrense de Letras; conselheiro do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC); e membro das Comissões de Humanidades e Bioética do Conselho Federal de Medicina (CFM).

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