A medicina como profissão, arte e ciência
// Cyro Martins**
Ainda me lembro do manual de Roger – Introduction à l’étude de la médecine – com o qual travei conhecimento no terceiro ano da faculdade, em 1930. O mestre francês abre seu livro com a definição clássica: a medicina é uma ciência e uma arte. A ciência estuda as doenças. A arte se ocupa da manutenção e do restabelecimento da saúde. Esse o pensamento de Roger, tanto quanto o recordo. Entretanto, creio não errar muito ao defender o conceito normativo de que a arte médica consiste essencialmente na aptidão que deve ter o médico de ativar sua criatividade em todos os atos, clínicos ou cirúrgicos, da assistência ao paciente. Concomitantemente, assinalarei o quanto é importante o saber intuitivo – o clássico olho clínico – no terra a terra da nossa prática cotidiana, não obstante estejamos vivendo uma era privilegiada da medicina, tanto que os recursos complementares disponíveis adquiriram dimensões de mito. Porém têm os seus inconvenientes, como todo poder mágico. Na práxis médica eles servem de anteparo às inibições emocionais de parte a parte. Ademais, comunicar ideias, sentimentos, propósitos, sempre foi difícil aos homens. E a situação se complica quando, num diálogo, de um lado está alguém que se queixa e pede auxílio, e do outro o interlocutor teoricamente depositário da solução do problema.
Desde Freud, como acentua Garma, “a enfermidade deixou de ser a lesão de único órgão, passando a ser de toda a personalidade”. Fundamentado nessa concepção, uso a expressão “humanismo médico”, que não deve ser confundida com humanitarismo nem com filantropia, para enfatizar que, a fim de ser fecunda em suas consequências, a relação médico-paciente deve basear-se no respeito que devemos à pessoa que nos consulta. Essa consideração pelo consulente, não importa a idade ou as condições socioeconômicas, já é, por si só, um ato assistencial, sobretudo se levarmos em conta que todo doente, na frente do doutor, assume uma atitude mental regressiva. A nossa conduta, tratando-o como gente, robustece-lhe o ego e se constitui num chamamento a brios. Isso não se verbaliza, transpira do estilo do comportamento assistencial.
Convém ainda ressaltar que a medicina de massa dos nossos dias, resultado, entre outras causas, da explosão populacional e do subdesenvolvimento, se exerce entre populações em condições de dependência externa que agravam a tendência regressiva interna. Por isso a relação médico-paciente deverá ser também educativa. Não se trata da repetição artificial de clichês sociais, de ser cortês. Às vezes precisamos até ser rudes. A relação médico-paciente é uma vinculação que atualiza o passado e abrange a complexidade dos sistemas existenciais e exige um mínimo de criatividade ante as solicitações de origem interna ou externa que envolvem todas as áreas da personalidade – a mental, a somática e a espaço temporal. A prática clínica nos ensina o quanto são instáveis as reações humanas nas respostas aos desafios da vida. Demais, nenhuma outra atividade confere ao profissional tantas oportunidades de conhecimento da realidade da humana contingência.
Deixo aqui apenas algumas referências em torno do tema relação médico-paciente, focado do ângulo do pensamento psicanalítico.
Paralelamente à convicção da necessidade de introduzir no convívio médico-enfermo as verdades da psicologia profunda aplicáveis ao dia a dia da medicina, ganha terreno cada vez mais a socialização da assistência médica, tendo como meio de ação o descomunal organismo estruturado pela previdência social. Pressionados pelas condições precárias do Terceiro Mundo, os governos, não podendo ignorar mais a área da saúde pública, procuram impor um tipo de assistência à população que, no que diz respeito ao médico, ao lado de algumas vantagens quanto ao mercado de trabalho, acarreta um evidente desestímulo ao exercício da profissão conforme os cânones da arte médica. Pelo menos é isso que tenho ouvido, de colegas de todas as especialidades, no decurso de vários anos.
Sobre esse panorama da nossa profissão pairam inúmeras interrogações, procedentes das massas maltratadas pelas instituições previdenciárias e da consciência justamente reivindicante da classe médica lesada nos seus interesses econômicos e culturais.
A que conclusão nos leva esta constatação? Deixarei no ar, sem resposta, esta pergunta, como um incentivo a pensar.
Hoje, nos melhores centros de ensino médico, trata-se de integrar, no exercício profissional, os recursos das máquinas e da técnica em geral com a compreensão da personalidade do paciente, em todas as especialidades. Penso que todos estão de acordo que eu não poderia abordar o tema que me deram – “a medicina como profissão, arte e ciência” – em termos tradicionais, isto é, em termos poéticos. Em primeiro lugar, não podemos esquecer que somos habitantes do Terceiro Mundo, e que neste a presença dos agentes patogênicos, por mil e uma circunstâncias, se faz excessivamente atuante, devido fundamentalmente à fome. A última esfinge que se postou arrogantemente nas encruzilhadas de todos os países foi a aids. A fórmula desafiante é a mesma da esfinge que enfrentou o Édipo do drama de Sófocles: “decifra-me ou devoro-te!”. Cabe à medicina desempenho heroico. E sobre heroico, sábio.
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Diante do exposto, resta afirmar que a medicina, não obstante a caminhada milenar do mito à verdade científica, não se sente extenuada, mas, pelo contrário, as dificuldades a estimulam a prosseguir na busca de recursos novos, que beneficiem a nossa profissão e a nossa arte de diagnosticar e curar. Chegamos a um ponto em que descobrir é a nossa meta, enfrentando corajosa e lucidamente os enigmas que nos desafiam. Demais, como Albert Picot, acreditamos que “as possibilidades do homem nunca se esgotam”.
* Excerto de conferência de encerramento do Congresso AMRIGS do Médico Gaúcho, Porto Alegre, 1987. Texto editado pelo Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins.
** Cyro dos Santos Martins (1908-1995): médico, psicanalista e romancista gaúcho.