O décimo primeiro mandamento
//Roberto Luiz d’Avila*
VERGHESE, Abraham. O décimo primeiro mandamento. Tradução Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 632 p.
Pense num romance escrito neste novo século que fale de amor, ódio, dor, sofrimento, empatia, compaixão, doenças, morte, relação médico-paciente, literatura e arte, história da medicina, semiologia, clínica médica, cirurgia geral, obstetrícia, ginecologia, emergências e residência médica – tudo isso ao contar a história de vida, desde o nascimento na década de 50, de irmãos gêmeos, até os dias atuais. O narrador, um dos gêmeos, o faz de maneira épica, iniciando o romance com uma relação proibida, entre um cirurgião inglês e uma freira indiana, em que a fatalidade se fez presente no momento do parto gemelar com fetos siameses (cefalópagos – unidos pelas cabeças), iniciado por via vaginal e concluído por cesariana, acompanhado de rotura e hemorragia uterina, em um país africano, pobre e submetido a uma ditadura.
Pense também que estes gêmeos foram adotados por uma ginecologista e um clínico geral e cirurgião, amigos de seus pais e colegas de hospital, que cresceram convivendo, desde pequenos, com os grandes dramas de dor e sofrimento de uma população pobre atendida em um hospital de missionários, em Adis Abeba, no coração da Etiópia.
Acrescente, agora, o amor de ambos os irmãos adolescentes por uma mesma jovem que cresceu junto com eles, sendo a traição de um deles determinante para o afastamento definitivo de ambos, em meio a uma guerra civil.
Some, ainda, a descrição de técnicas operatórias, um pouco de história da medicina, casos clínicos originais, perdas afetivas, empatia e compaixão aos borbotões e, finalmente, em vez do esperado término feliz, uma morte imprevista, dentro de um moderno hospital norte-americano, encerrando o roteiro desenvolvido com maestria e paixão.
O romance foi lançado em 2009, nos Estados Unidos, com o título Cutting for stone: a novel, traduzido para a língua portuguesa como O décimo primeiro mandamento. Este título, no Brasil, foi extraído pela editora brasileira (Companhia das Letras) do prólogo do livro, quando dr. Stone afirma, ao ser questionado se deveria operar um paciente com chance mínima de sobrevivência, respondeu: “Lembre-se do décimo primeiro mandamento. Não operarás um paciente no dia de sua morte”. Também no prólogo, encontra-se outra assertiva do mesmo cirurgião, referente à decisão de operar ou não um determinado paciente: “A operação mais bem sucedida é a que você decide não fazer”.
Sobre o título do livro em inglês, – Cutting for stone – conforme relatou o próprio autor, dr. Abraham Verghese, foi utilizado um jogo de palavras com um trecho do Juramento de Hipócrates sobre a litotomia – extração cirúrgica de um cálculo por incisão de qualquer estrutura anatômica das vias urinárias (rim, pelve renal ou bacinete, ureteres, bexiga e uretra) – onde a versão em português fala no procedimento da talha (litotomia): “Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam” e a versão inglesa diz: “I will not cut for stone, even for patients in whom the disease is manifest; I will leave this operation to be performed by practitioners, specialists in this art”. Observa-se que a expressão cutting for stone refere-se a “cortando para Stone”, ou seja, ao cirurgião inglês dr. Thomas Stone, pai dos gêmeos Shiva (nome dado em homenagem ao deus hindu) e Marion (em homenagem ao dr. J. Marion Sims, reconhecido como pai da obstetrícia e da ginecologia).
O livro, ao ser lançado no Brasil em 2011, já acumulava mais de 1 milhão de vendas nos Estados Unidos, sendo aclamado como o melhor romance de 2009 (Financial Times), permanecendo por mais de 50 semanas na lista de best-sellers do The New York Times (2011), elogiado pelo The Guardian, e traduzido em 25 idiomas.
O autor, Abraham Verghese, nasceu na Etiópia em 1955, filho de pais indianos, professores oriundos da cidade de Kerala (sul da Índia), contratados pelo governo etíope. Verghese iniciou o curso de medicina na Etiópia, no início dos anos 70, indo para os Estados Unidos com os pais e irmão após a queda do Imperador Hailé Selassié em 1974. Nos EUA, trabalhou como técnico de enfermagem, retornando à Índia para completar seus estudos médicos, colando grau em 1979 (Madras Medical College). Abraham fez residência médica em medicina interna e infectologia nos Estados Unidos, para onde emigrou, e desde 2007 é catedrático associado de medicina interna e professor de teoria e prática da medicina na Universidade de Stanford (Califórnia), depois de ter trabalhado em Johnson City (Tennessee), Boston (Massachusetts), em San Antonio e em El Paso (ambas cidades do Texas).
Entre 1990 e 1991, Abraham Verghese fez uma pausa em sua carreira profissional e dirigiu-se a Iowa, onde graduou-se como master of fine arts. Em 2002 fundou e tornou-se diretor do Centro de Humanidades Médicas e Ética do University of Texas Health Science Center at San Antonio, trabalhando com empatia, relação médico-paciente e o valor do exame físico.
Em 2015, o autor recebeu o prêmio National Medals of the Arts and Humanities das mãos do presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama.
Antes de O décimo primeiro mandamento, Verghese escreveu dois livros autobiográficos. O primeiro, My own country, sobre a sua experiência com a epidemia de aids/HIV, no início da década de 80, quando trabalhou no Tennessee – “My Own Country”, publicado 1994, finalista do National Book Critics Circle Award e virou filme em 1998, com o título de The namesake, dirigido por Mira Nair. A obra foi lançada no Brasil pela Companhia das Letras, em 1995, com o título Minha terra.
O segundo livro, The tennis partner, recebeu a menção de notable book do New York Times e também se tornou best-seller nacional. Publicada em 1999 e ainda não lançado no Brasil, relata sua vivência com a morte de um colega médico e amigo, dependente químico, e sua dolorosa despedida.
Há, em O décimo primeiro mandamento, inúmeras referências literárias e musicais, mas, de modo muito especial, há uma única referência às artes plásticas, relacionada à vida de Santa Teresa d’Ávila, a partir de uma belíssima escultura do arquiteto, pintor e escultor Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), expoente do barroco italiano, chamada O êxtase de Santa Teresa, localizada na Igreja Santa Maria della Vittoria, na Capela Cornaro, em Roma. Uma foto emoldurada dessa escultura permeará todo o livro do início ao fim…
O livro é intenso. Ao lado da trama de amor, paixão e ciúme, o romance segue a atividade profissional do dia a dia de um pequeno hospital missionário, com médicos dedicados. Sobressaem as descrições cirúrgicas e de vários procedimentos, tais como, a descrição, plano por plano, de vasectomia, colostomia, drenagem torácica em hemotórax e drenagem de hematoma subdural. O tratamento da úlcera gástrica e da hemorragia digestiva alta, em plena década de 80 do século passado, é descrito com maestria. Observa-se, também, a história e a evolução do tratamento das fístulas vaginais, do transplante de fígado e da tuberculose pulmonar, em pacientes fictícios, personagens do livro, mas baseadas em fatos vividos ao longo da carreira médica do autor.
A Semiologia Médica (disciplina que estuda os sinais e sintomas) é rica e abundante em todo o livro: são descritos todos os pulsos cardíacos, caracterizando cada um deles em cada patologia cardíaca, inclusive com a explicação do artefato chamado “martelo d’água”, cuja impacto da onda se assemelha e deu nome ao “pulso martelo d’água” visto na insuficiência aórtica. Os estigmas do raquitismo estão presentes: pernas curvadas, bossa granulosa na testa e o desenho em forma de pão de passas da Semana Santa na parte superior do crânio (comum na África subsaariana). Da mesma forma, os estigmas da sífilis congênita são assinalados: nariz em sela, olhos embaçados e dentes incisivos serrilhados; além da rica semiologia da neurossífilis, com a descrição da tabes dorsalis e da marcha tabética. Do avô do narrador são destacados os sinais clássicos da cirrose hepática alcoólica: pele cor de cera, palmas das mãos vermelhas, aranhas vasculares no rosto e no pescoço, ginecomastia, ausência de pelos axilares, parótidas inchadas, perda do terço lateral das sobrancelhas e pálpebras edemaciadas. O narrador revela, ainda, por meio do sofrimento de sua avó paterna, a evolução natural da tuberculose pulmonar e o tratamento clássico da doença à época dos fatos (em voga até meados do século passado), com o pneumotórax terapêutico (colapsoterapia) em seu pai, também tísico na adolescência. A hepatologia também foi lembrada com um caso, sofrido pelo autor da narrativa, de hepatite aguda pelo vírus da hepatite B, de evolução fulminante, com o seu corolário de sinais e sintomas da insuficiência hepática, coma hepático, síndrome hepatorrenal e consequente transplante de fígado.
Temas modernos e atuais também estão presentes, com particular atenção para a dor e o sofrimento na terminalidade da vida e os cuidados paliativos, com a descrição do uso de morfina na sedação para a angústia respiratória. Os rituais tribais, ainda presentes na África de hoje, foram contemplados, em especial a infundibulação (clitoridectomia) e a sutura vulvar sem assepsia e antissepsia e suas desastrosas consequências. Encontramos também a descrição e a necessária crítica ao sistema público de saúde norte-americano: Medicaid e Medicare.
O livro está recheado de atos humanistas e humanísticos, com a empatia e a compaixão presentes em todas ações: cuidado, atenção, carinho e competência nas descrições do mais simples aos mais complexos casos clínicos.
Nessa linha de atuação compassiva, mesmo no tratamento de pacientes agudamente comprometidos, encontramos a seguinte pergunta, repetida três vezes ao longo do livro, feita aos alunos do protagonista: “Que tratamento de urgência, em situação de choque, é ministrado pelo ouvido?”. A resposta é arrebatadora, carregada de puro humanismo: “Palavras de conforto!”.
As narrativas ganham, no livro, sua exata dimensão, exercendo papel especial na relação médico-paciente. No último parágrafo do prólogo do livro, o narrador, Marion, nos alerta e resume sua motivação, em relação ao seu irmão Shiva:
“O que mais devo a Shiva é o seguinte: narrar a história. É uma história que minha mãe, a irmã Mary Joseph Praise, não revelou, e da qual meu destemido pai, Thomas Stone, fugiu e cujos pedaços eu tive de juntar. Narrá-la é o único meio de fechar o fosso que separa meu irmão e eu. Embora eu tenha uma fé infinita na arte da cirurgia, não há cirurgião capaz de curar o tipo de ferida que divide dois irmãos. Onde seda e aço fracassam, a história tem de ter êxito. Vou começar pelo começo…”
Boa leitura!
*Roberto Luiz d’Avila é ex-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e professor de Humanidades da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)