Filme: As Aventuras de Pi
A fábula de um rapaz que sobrevive a um naufrágio, à deriva no oceano em um salva-vidas, frente a frente com um felino selvagem; uma insólita aventura. Não é difícil arriscar um palpite sobre esse enredo ao buscar na memória o premiado “As Aventuras de Pi”, que rendeu o Oscar de melhor diretor a Ang Lee, além de prêmios nas categorias de fotografia, efeitos visuais e trilha sonora original. O incrível sucesso de público e de crítica, no entanto, trouxe subjacente mais um capítulo de um antigo debate sobre originalidade e autoria.
//Vevila Junqueira
O enredo acima, baseado no best-seller do canadense Yann Martel, foi levado às telas pelo diretor taiwanês ao custo estimado de US$ 120 milhões e arrecadou mais de US$ 600 milhões nas bilheterias mundiais.
O filme já nasceu sob holofotes por ser considerado, por muitos, impossível de ser feito. A produção, o prestígio após o lançamento e as premiações também reacenderam as discussões em torno da autoria da obra que deu origem ao filme.
No centro da polêmica, o canadense Yann Martel e um brasileiro: o médico e escritor Moacyr Scliar, que, mais de 30 anos antes da saga de Pi chegar aos cinemas, havia escrito uma história muito parecida, Max e os Felinos. Afinal, a obra que originou o filme buscou inspiração em Scliar ou se trata de um caso real de plágio na literatura?
SEMELHANÇA ARISTOTÉLICA
A hipótese de que Martel tenha plagiado o médico brasileiro Moacyr Scliar, autor de Max e os felinos, publicado em 1981 pela L&PM (Porto Alegre), chegou ao conhecimento do público em 2002.
Naquele ano, Martel conquistou, na Inglaterra, o prestigioso prêmio Booker, no valor equivalente hoje a mais de R$ 170 mil. Imediatamente o jornal britânico The Guardian apresentou a questão e a imprensa internacional promoveu um debate intenso.
Jornais importantes, como como o inglês The Sunday Times, o americano The New York Times e o canadense National Post abraçaram a polêmica. A imprensa brasileira também repercutiu o fato, com reportagens publicadas em O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, entre outros.
Martel admitiu publicamente que havia se baseado em Max e os felinos, traduzido nos Estados Unidos como Max and the Cats (New York, Ballantine Books, 1990) e na França como Max et les Chats (Paris, Presses de la Renaissance, 1991). Em nota da primeira edição canadense menciona Scliar de modo sucinto, ao enumerar as pessoas às quais se sentia grato, atribuindo a ele “a centelha de vida”.
Em 2003, em umas das muitas declarações que fez sobre o tema, o canadense disse à revista Canadian Literature: “O que me impulsionou em A Vida de Pi foi um comentário que li sobre o romance Max e os Felinos, do autor brasileiro Moacyr Scliar. Em uma parte dessa novela um homem acaba em um bote salva-vidas com um jaguar. O que me atraiu para essa premissa é que era perfeitamente aristotélico: havia perfeita unidade de tempo, ação e lugar. Enquanto eu estava na Índia, eu decidi contar minha própria história com uma premissa semelhante, porque tinha aquele mix do improvável e do apelo que se adequava a história que eu queria contar (tradução livre)”.
O MUNDO A ESPERA DE SCLIAR
Mais de 10 anos se passaram desde que, em outubro de 2002, Scliar teve notícia da matéria publicada no The Guardian, colocando em evidência a semelhança entre Max e os Felinos e A Vida de Pi. Considerando o lançamento da obra brasileira, são mais de 30 anos marcados por transformações políticas importantes.
Mas, essa narrativa fantástica e intrigante de Moacyr Scliar, está longe de ser considerada datada: “Hoje, o livro não perdeu a atualidade, porque continua a evidenciar a importância de se superarem os temores, reais ou imaginários, para a construção de um cidadão pleno e confiante, capaz de garantir uma sociedade justa para si e para os outros.”, aponta Regina Zilberman, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em 2013, na 85ª cerimônia de entrega do Oscar, no dia 24 de fevereiro, com a estatueta em mãos por seu prêmio de melhor diretor, Ang Lee disse em seu discurso de 26 segundos para a maior audiência na televisão americana desde 2007: “Eu quero agradecer Yann Martel por ter escrito este livro incrível e inspirador”.
O silêncio sobre Scliar, “a centelha de vida”, era previsível, pois, mesmo com toda a investida da mídia, o debate se manteve nos “bastidores” como uma questão literária. “Ao assistir As Aventuras de Pi no cinema agora, não pude deixar de sentir um gosto amargo, além das saudades do grande amigo que partiu”, disse Luiz Schwarcz, editor que acompanhou o autor brasileiro por muitos anos. “Enquanto o romance de Yann Martel ganhou as telas numa megaprodução, o mundo continua merecendo conhecer melhor os livros de um dos maiores escritores brasileiros do século 20”, diz.
Essa coincidência entre as obras brasileira e canadense que perpassa mais de 30 anos lança luz sobre a questão da autoria e originalidade. Para Zilberman, Martel se apropriou sim da ideia de Scliar.
Sobre os limites entre explorar uma premissa, a inspiração e o plágio, ela afirma: “Essa é uma questão muito delicada, e Scliar foi bastante generoso a respeito, já que aceitou as desculpas de Martel e deixou o caso por isso mesmo. Mas Martel, creio eu, plagiou, pois se apropriou, indevidamente, da ideia mais original da novela do escritor gaúcho – a da sobrevivência de Max, reapelidado de Pi, em um bote salva-vidas, na companhia de uma fera. Se Martel tivesse a intenção de não plagiar, teria reconhecido, desde o início, quando começou a escrever a obra, sua dívida para com Scliar”.
A MEDIAÇÃO DO AMIGO
Contudo, a aceitação do brasileiro não foi tão pacífica quanto parece, pelo menos é o que conta Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, empresa que publicou mais 20 obras de Scliar. Interlocutor frequente e grande amigo do autor gaúcho, ele narrou no blog da editora (www.blogdacompanhia.com.br) o surgimento da controvérsia e afirmou que Scliar cogitou acionar advogados.
A tensão inicial teria se dissolvido após o editor de Martel, Jamie Byng, da Canongate, entrar em contato: “No telefone, ele garantia a boa fé de Martel e me pedia, em conjunto com o autor, que alcançássemos uma solução pacífica”, relata.
O acordo estabelecido foi: “Convenci Moacyr de que o processo seria inviável [os advogados diziam ser impossível mover um processo com base na apropriação de uma ideia, além do custo de uma causa internacional como esta ser altíssimo] e propus que Martel desse uma entrevista valorizando a obra do brasileiro e se retratando das declarações infelizes. Moacyr, por seu lado, daria declarações dizendo que não moveria processo algum”.
A polêmica teria rendido ainda o interesse de editoras e agentes importantes dos Estados Unidos, querendo representar mundialmente a obra do escritor. “Infelizmente, seguindo seu caráter superdevotado aos amigos, Scliar não aceitou as propostas das grandes agências que queriam promovê-lo. Se manteve fiel ao agente literário que o representava, que prometeu tirar algum proveito da polêmica e recolocar as obras de Moacyr no mercado de língua inglesa e na Europa — promessa não cumprida”, disse Schwarcz.
O FATOR UPDIKE
As atenções à obra de Scliar renderam a reedição do livro, com um apêndice no qual o autor brasileiro comenta todo o episódio: “Não sou um autor desconhecido, mas certamente nenhum dos meus livros teve a repercussão alcançada por esse”, diz o gaúcho. Moacyr Scliar faleceu em 2011 e não testemunhou o sucesso do filme de Ang Lee, baseado na história de Martel. No entanto, se pronunciou diversas vezes sobre a coincidência entre as obras, tratando o tema com educada moderação desde que o assunto ganhou atenção – porém não sem alguma tensão inicial:
“Havia, na notícia, um componente desagradável e estranho, tão estranho quanto desagradável. Yann Martel não tinha, segundo suas declarações, lido a novela. Tomara conhecimento dela através de uma resenha do escritor John Updike para o New York Times, resenha desfavorável, segundo ele. Esta afirmativa me perturbou. Max and the Cats não chegou a ser um best-seller, mas os artigos sobre o livro, que me haviam sido enviados pela editora, eram favoráveis – inclusive o do New York Times, assinado por Herbert Mitgang”, disse à época.
No texto, Scliar se pergunta: “Teria Updike escrito uma outra resenha – para o mesmo jornal? Se era esse o caso, por que eu não a recebera? Será que os editores só mandavam resenhas favoráveis?”. Mais adiante, o gaúcho continua descrevendo o que o deixou desconfortável: “À afirmativa seguia-se um comentário de Martel. Uma pena, dizia ele, que uma ideia boa tivesse sido estragada por um escritor menor. Mas, em seguida, levantava uma outra hipótese: e se eu não fosse um escritor menor? E se Updike tivesse se enganado? De qualquer maneira a ideia principal do livro serviu-lhe de ponto de partida para sua obra Life of Pi”, conta. Algum tempo depois já estava claro que Scliar nunca fora resenhado por Updike.
A OBRA REVEL A O TRAÇO DE SEU AUTOR
Para a professora Regina Zilberman, apesar de seu enredo peculiar, a novela que gerou tanta polêmica apresenta características que a mantém dentro do universo literário criado pelo gaúcho Moacyr Scliar, que se consagrou por abordar temas vinculados à imigração judaica.
“O protagonista, Max, tem alguns elementos que o associam às personagens até então criadas por Scliar: é um imigrante, veio da Europa, precisa se adaptar ao Novo Mundo; mas não é judeu. Seu principal problema é a insegurança, que vai superando aos poucos, após aventuras, umas domésticas, outras quase sobrenaturais (o naufrágio, a que sobrevive, apesar de compartilhar o bote salva-vidas com um jaguar), outras ainda de ordem ideológica, contrapondo-se a grupos nazistas instalados no Brasil. É esse crescimento interior de Max que o livro narra”, ressalta Regina.
Moacyr Scliar, na época colunista da Folha, apresentou o contexto em que escreveu Max e os Felinos e também falou sobre as abordagens das obras canadense e brasileira em um artigo intitulado “Déjà vu”.
“Parecido? Bastante. É verdade que os textos são diferentes e que a metáfora funciona, em cada caso, de maneira diversa. A visão religiosa de Martel transparece em seu livro. ‘Max e os Felinos’ foi publicado em 1981, ainda sob a ditadura. Minha geração de escritores foi marcada pelo clima de autoritarismo então reinante e que colocava cada intelectual, cada cidadão, no papel de um náufrago em um bote diante de uma entidade enigmática e ameaçadora”, expõe (Moacyr Scliar, Folha de S.Paulo, 16.11.2002, autorizado e/ou fornecido pela Folhapress).
FIOS QUE SE REPETEM
A insólita experiência de coabitar um salva-vidas com um felino selvagem: “Os olhos fechados, as mãos aferradas às bordas do escaler, o corpo sacudido por violentos tremores, (…) esperava pelo fim, que viria, primeiro, com um tremendo golpe da grande pata; logo em seguida a fera se atiraria sobre ele, lhe cravaria as presas no ventre, nos braços, nas coxas, arrancando postas de músculos, triturando ossos, ele morrendo em meio a sofrimentos atrozes… Senhor, em tuas mãos entrego minha alma”.
Quem assistiu As aventuras de Pi deduziria facilmente que o trecho acima foi extraído do livro de Yann Martel. No entanto, pode ver também que Max e os felinos foi publicado pelo brasileiro mais de 20 anos antes do lançamento do livro canadense.
O trecho evidencia o “apelo do improvável” ambicionado por Martel, que escreve da seguinte maneira a tomada de consciência, pelo garoto, do outro sobrevivente a bordo, um tigre-de-bengala apelidado Richard: “Tinha agora no meu bote um tigre-de-bengala adulto, de três anos de idade, todo molhado, trêmulo, meio afogado, ofegante e tossindo. Com alguma dificuldade, Richard Parker se ergueu nas quatro patas sobre a lona. Os seus olhos reluziram quando encontraram os meus, as orelhas ficaram bem coladas na cabeça, todas as armas a postos. A cabeça dele era do tamanho e da cor da boia, só que com dentes”.
Scliar comenta a premissa: “O texto de Martel é diferente do texto de Max e os felinos. Mas o leitmotiv [ideia, condutor] é, sim, o mesmo. E aí surge o embaraçoso termo: plágio. Embaraçoso não para mim, devo dizer logo. Na verdade, e como disse antes, o fato de Martel ter usado a ideia não chegava a me incomodar. Incomodava-me a suposta resenha e também a maneira pela qual tomei conhecimento do livro”.
Para Scliar, se não fosse o prêmio, talvez ele nem ficasse sabendo da existência da obra do canadense: “Depois de muito debate sobre o assunto o livro de Martel finalmente chegou-me às mãos. Li-o sem rancor; ao contrário, achei o texto bem escrito e original. Ali estava a minha ideia, mas era com curiosidade que eu seguia a história; queria ver que rumo tomaria sua narrativa – boa narrativa, aliás, dotada de humor e imaginação. Ficou claro que nossas visões da ideia eram completamente diferentes. As associações que eu fiz são diferentes das que Martel faz”, disse.
Fonte: Revista Medicina ED. 2 MAI/AGO mai/ago 2013 P. 102