Livro: Sob pressão: a rotina de guerra de um médico brasileiro
//Paulo Henrique de Souza
Nos prontos-socorros públicos brasileiros, o tempo escorre entre gritos, lágrimas, lamentos de revolta e desespero. Para o paciente, as horas numa sala de espera não são fáceis. Os médicos e outros profissionais da saúde que se revezam no atendimento também sentem o peso de sua passagem. Neste front improvisado, de uma guerra que nunca deveria existir, todos aguardam respostas de gestores – seres que, de tão distantes, parecem irreais –, na esperança de que uma trégua ocupe o território das urgências e emergências e traga paz para quem cuida e quem espera cuidado. Ficar em silêncio diante dessa crise não faz bem. A história mostra que mudanças surgem da crítica feita a partir de uma realidade nada atraente. São relatos assim, como o que veremos a seguir, nesta edição, que podem contribuir para que possam surgir flores das trincheiras cavadas nos hospitais.
O cirurgião torácico Márcio Maranhão, 44 anos, carioca da Gávea, entrou no Sistema Único de Saúde (SUS) por concurso público, em 2001, com um salário de R$ 1.247 para uma jornada de 20 horas semanais. Nos nove anos que passou na função, teve um aumento de R$ 100. Mas não foi apenas a baixa valorização como profissional que marcou seu tempo na rede pública, pela qual se declara ainda apaixonado. Os anos nas urgências e prontos-socorros o tornaram testemunha ocular de uma guerra diária, na qual profissionais e pacientes sofrem as consequências da falta de recursos e da má gestão. Suas memórias deste território minado inspiraram seu livro “Sob pressão: a rotina de guerra de um médico brasileiro” (2014, Editora Foz, R$ 38,90), um relato cativante, a ser devorado num fôlego só, que gera reflexão a partir da descrição da dura realidade da medicina no Brasil. Nesta entrevista, fala de suas angústias, frustrações e expectativas. Sobre o futuro, é cético: “Me preocupa muito o que vem por aí, não acho que seja paz. Creio que será mais guerra para podermos tentar transformar um pouco esse cenário que temos”.
Qual a rotina de um médico brasileiro, especialmente daquele inserido no Sistema Único de Saúde (SUS)?
É uma rotina de guerra, na qual há o enfrentamento diário de uma situação totalmente adversa de quando se deseja e se quer – de fato – realizar uma medicina de boa qualidade, quando a intenção é exercer a profissão em sua plenitude. Isso implicaria numa prática médica com condições mínimas fundamentais que contemplem a humanidade e a dignidade no atendimento do paciente. No dia a dia, na prática, os obstáculos aparecem na falta de condições e leitos; na inexistência de um dreno torácico e de um fio; na ausência de um anestesista. Enfim, na carência estrutural que não me deixa agir, não me permite atuar com qualidade e nem me permite trabalhar. Nessa rotina, parece que a gente rema contra a correnteza.
Nesse processo, em algum momento, o senhor já foi obrigado a fazer uma escolha de Sofia?
Sim, por diversas vezes. E isso é muito angustiante. O médico fica frente ao problema e tem que tomar uma decisão à beira do leito. Não se trata de uma decisão meramente clínica, mas de uma decisão de gestor. Você fica face a face com o paciente, olho no olho, no momento de fazer escolhas muito perigosas, pois muitas vezes são feitas concessões, que são em si perigosas. Isso ocorre porque não há alternativas de resolução imediata para a situação. Houve vezes em que encontrei pacientes que precisavam ser drenados com urgência e não havia local adequado para isso; pessoas abandonadas, desassistidas, sem uma linha de cuidado, sem alguém responsável, sem um dono. O doente público não tem dono. Ele fica abandonado, não tem um profissional de saúde que tome uma posição: “olha, eu sou o dono desse paciente, eu estou traçando a conduta, eu sou responsável pela conduta”. Então, a escolha de Sofia vem na forma de uma pergunta: “o que fazer nesse momento?”.
E como se age nesses casos?
Particularmente, eu corria o risco de colocar o doente em risco, pois meu maior temor sempre foi ser negligente, omisso, diante de uma situação. Negar socorro é uma situação angustiante, que eu não tolero e não me permito. Eu não saberia conviver com isso. Essas são as armadilhas que o sistema nos coloca, nos impõe, por falta de alternativas. Se eu não tinha nenhuma outra opção, eu tentava fazer meu melhor, usando os recursos possíveis e dentro de minha realidade, usando o que me davam. Você vai fazendo essas concessões, mas chega um momento em que se chega ao limite: “não, não vou fazer mais concessão nenhuma, porque isso implica riscos altos para o paciente”. Aí você para, pensa, coloca o pé no freio: “não, eu não quero mais isso para mim!”. Só que até esse ponto, há muito desgaste, pois alertamos: “olha, sem esse equipamento não posso fazer isso”. Sim, mas o doente continua precisando do procedimento, e como não tem uma solução, você se sensibiliza, você enfraquece, você acaba cedendo: “tá bom, eu vou fazer dessa maneira, correndo um risco maior”. Isso é o que chamo de rotina de guerra.
Nessa rotina de guerra, médico e paciente são vítimas?
São situações difíceis, mas incomparáveis. A situação do médico não se iguala ao sofrimento no qual o doente se encontra. Mas, de certa forma, quando o médico não tem condições de praticar o que aprendeu, aquilo a que se propôs fazer de forma digna, plena, com segurança, ele está sendo penalizado. Classificá-lo como vítima seria até leviano, mas acho que o médico sofre por causa de várias condições, como a falta de honorários justos, de um modelo de remuneração que preze pelos resultados, pelo comprometimento dele, obrigando-o a manter vários vínculos para ter uma vida digna.
E como isso se materializa para o paciente?
Em todos os sentidos. Ele sofre com a falta de perspectivas. Apesar de termos uma ampliação do acesso da população à saúde, a qualidade não melhorou. Piorou. Então, o paciente é vítima quando há fila de espera, quando pessoas morrem à espera de atendimento, de um procedimento cirúrgico, de alguma assistência, seja primária, secundária, terciária. Pacientes morrem por falta de leitos de terapia intensiva, um gargalo no nosso sistema. Não há leitos nas UTIs em quantidade suficiente para atender à demanda da população. Eu não sei o que pode ser mais grave do que esse cenário, que envolve insuficiência de leitos, superlotação de emergências, falta de insumos e de equipamentos. Além disso tudo, falta ainda dignidade. Os pacientes estão jogados, abandonados, como retratam todos os dias as páginas dos jornais. É preciso mais humanidade à assistência médica.
Quem é responsável por esse quadro?
Há vários players envolvidos. Não há uma política pública que vislumbre e realmente forneça o financiamento que o Sistema Único de Saúde precisa. Isso é notório. Não sou estudioso da área, mas é um consenso dizer que o SUS é subfinanciado, o que o impede de ser o que deveria: universal e para todos, e não exclusivamente para um segmento. Hoje, o SUS é destinado para a população de baixa renda. Então, o SUS é pobre, pois não é pensado para todos como usuários. Certamente, nesses últimos 26 anos de governo – não importa quem estava no comando –, não se pensou no SUS com uma política de Estado, como prioridade de governo. Houve avanços, mas foram pontuais, através de políticas focalizadas e pouco abrangentes. Isso é um grande problema. Também há pouca integração entre as diferentes esferas de gestão – federal, estadual e municipal -, o que também causa dificuldade, bem como a má gestão em si. Assim, a culpa por esse quadro recai sobre todos esses fatores, mais agravado ainda pela falta de incentivo para o profissional médico. Mas dentre essas responsabilidades, não posso eximir a classe médica, que já foi muito mais ativa, mas ficou estagnada, paralisada, diante da natureza complexa dos problemas. A situação do médico não se iguala ao sofrimento no qual o doente se encontra. Mas, de certa forma, quando o médico não tem condições de praticar o que aprendeu, aquilo a que se propôs fazer de forma digna, plena, com segurança, ele está sendo penalizado.
O que levou a esse esmorecimento de parte da classe médica na defesa do SUS?
A classe médica não é imune a várias distorções que se apresentam num cenário de inexistência de perspectivas. Dou um exemplo. Em determinado momento, eu trabalhava num hospital com uma remuneração de concursado do estado. Ao meu lado tinha um colega, menos qualificado, contratado por meio de um vínculo temporário, mas com um salário três vezes maior que o meu e com uma jornada igual ou menor. Então se criou uma distorção que favorece, na verdade, a fragmentação da classe médica. Eu não tinha nenhum problema com esse colega, mas eu acho que ele também deveria ter entendido que os prejuízos causados por um vínculo temporário, sem a segurança, os benefícios, de um concurso público. Assim, vejo uma carreira de estado, um concurso público federal, estadual, municipal, como o suprassumo. Mas claro que é preciso ter instrumentos de gestão para tornar o profissional com esse vínculo realmente produtivo.
Porque alguns médicos aceitam essa precarização do trabalho?
Eu tenho 20 anos de formado e, de fato, demorei a entender onde estava inserido, qual seria o meu papel no contexto da saúde pública. Acho que os órgãos representativos de classe têm um papel fundamental nessa conscientização de quem é recém-chegado ao mercado de trabalho. Hoje o egresso tem muita urgência em ganhar dinheiro, de ter alguma coisa antes de ser alguma coisa. Isso é fruto de uma formação médica muitas vezes superficial. Eu tenho convivido com muitos que deixam a faculdade, que me viam trabalhar e aprenderam comigo, e logo em seguida tinham como meta ganhar dinheiro. Há uma urgência, um imediatismo muito grande, que os coloca diante de um dilema: “eu não vou ganhar esse salário, não quero saber de carreira pública, quero ganhar o meu”. Essa postura gera fragmentação dentro da classe médica e repulsa ao serviço público, o que colabora para que tenhamos um cenário cheio de distorções.
Os jovens médicos ainda acreditam no SUS ou estão abandonando-o?
Atualmente, o que se vê é um ceticismo muito grande. O recém-formado vai ao SUS, vê o cenário, vê o caos, e fala: “pronto, já conheci o caos; sei como é e não quero isso pra mim”. Então, de certa forma, existe um contexto que afasta o médico ou o faz se sentir repelido. Sem fatores que o estimulem a ficar, ele pensa: “não vou ficar aqui, pois é um quadro de guerra, caótico”. Até sabemos que essa não é uma verdade absoluta, pois há ilhas de excelência no SUS. E nesse mar de abandono porque não podemos ter outras ilhas de excelência, que podem ser replicadas? Esses modelos existem também, principalmente, pelo comprometimento e esforço pessoal do médico, chefe do serviço, e pela produção de conhecimento de que ele é capaz. Quem não se enquadra nessa categoria, resiste até não sei quando, pois o universo não conspira a favor. Conheço hospitais com serviços dotados de profissionais capacitadíssimos, gabaritadíssimos, mas que não têm condições de operar um doente, pois não há leitos disponíveis no Centro de Tratamento Intensivo, não tem equipamento, não existe uma estrutura mínima para que se possa oferecer um cuidado cirúrgico digno. Assim, o jovem médico chega, vê a falta de perspectivas – seja salarial, de infraestrutura ou política – e percebe que isso tudo não é convidativo.
O senhor demonstra muita paixão pelo exercício da medicina. De forma geral, isso mudou?
Acho que se perdeu a essência da profissão, sua humanidade. É uma atividade na qual tem que se gostar de gente, tem que se ter compaixão pelo próximo. Eu sempre a entendi assim. Fui movido a fazer medicina por conta disso. E esse lado humano ficou lá pra trás, está esquecido. Se hoje quisermos falar de alguma inovação, eu entendo como oportuno fazer um resgate daquilo que se perdeu. Falo que só há uma maneira de pensarmos a prática médica: retornar a ter disponibilidade para o doente, expressar compaixão por ele. Isso seria um diferencial, que se perdeu em algum momento. Tive a sorte de ter professores, colegas, que muito me inspiraram. Foram referências que balizaram minha formação, além das que trago de casa, dos meus pais. Nosso papel é pensar na profissão de forma mais humana. A nossa prática exige isso. Assusta-me ver recém-formados, que, como eu disse, querem ter alguma coisa antes de ser alguma coisa. Trabalho com residentes e há vezes em que me pego procurando algum deles para me ajudar a fazer um procedimento. Vejo uma inversão de papéis: no meu tempo de formação, eu que corria atrás dos meus professores perguntando por algum procedimento, por uma cirurgia, com sede de conhecimento. Por situações assim, vejo uma crise também de valores na formação médica.
Em sua opinião, vivemos um tempo de brutalização da assistência?
Entendo que há a brutalização do sistema. Vê-se a falta de dignidade no atendimento ao paciente. Atende-se o paciente em maca no corredor, sem nenhuma privacidade, totalmente desprovido de sigilo, quanto mais de humanidade, de dignidade para que tenha ali seu problema resolvido. Essa brutalização é fruto desse cenário caótico e é brutal também para o médico, que tem de conversar com o doente perto de outros pacientes, sem a menor privacidade, situações que ferem nosso código de ética. O sistema nos brutaliza. O jaleco sai branquinho da faculdade e vai amarelando com o tempo. Na verdade, nós vamos sendo endurecidos pelo sistema. Não podemos deixar que isso se torne a normalidade. Isso não é normal, não podemos nos acostumar com isso.
A maior parte de sua vida profissional foi passada em serviços de urgência e emergência. Nesses locais, a precariedade e a grande demanda são frequentes. Mesmo assim, é possível estabelecer uma relação médico-paciente?
Em qualquer momento, a relação médico-paciente se estabelece. Basta ter vontade e disponibilidade para isso. Esse vínculo interpessoal – médico-paciente – pode acontecer dentro de uma ambulância, como eu fiz várias vezes. Pode existir também dentro de uma comunidade não pacificada, na casa do doente. Trabalhei no SAMU, o que me propiciou enxergar o doente dentro do contexto social dele. Assim, tinha acesso a informações muito relevantes, até para me ajudar num diagnóstico. Essa relação é sagrada, um rito. Na sua postura comprometida com o paciente, no acolhimento que se dá a ele e a seus familiares, por mais que seja em uma emergência, se estabelece uma relação robusta, de confiança, que não se mede em minutos, mas na intensidade.
Várias reportagens e algumas pesquisas de comportamento apontam uma crítica do paciente em relação ao médico. Sempre se fala em um distanciamento entre esses dois polos. O que tem prejudicado esse vínculo?
Tocar no paciente faz toda a diferença. Dar-lhe a mão, olhá-lo e escutá-lo são atitudes que compõem a grande revolução para haver uma mudança. É preciso trazer um pouco daquilo que se perdeu, dado o imediatismo da profissão, a fragmentação do cuidado, a necessidade de pedir exames complementares. Não se pode prescindir dessa relação médico-paciente. Isso é fundamental, a essência do nosso ofício. Essa confiança passa pelo olhar, pelo toque, o que gera repercussões positivas no tratamento e é emblemático. Pode-se fazer isso independentemente das condições.
Como resgatar esse pilar da medicina?
Existem muitas escolas de medicina, mas não se vê por aí a qualidade necessária na formação. Há muito mais uma necessidade de capital, mercantilista, de ganhar dinheiro com o curso de medicina, que é caro e tem demanda. É preocupante a situação dos médicos que ingressam no mercado de trabalho com essa formação rasa, que não passa pelo lado filosófico, antropológico, ético e social da medicina. Também acompanhamos escolas de medicina tradicionais prejudicadas pela falta de incentivo, com um hospital universitário sucateado. Defendo que a formação do médico passe por um centro de produção do conhecimento, de pesquisa. Sou muito simpático a essa ideia. Na verdade, atualmente o médico se torna a face da inoperância do Estado. E aos olhos da população, recai sobre o médico essa ineficiência. Não quero ser corporativista, mas me preocupa muito uma sociedade sem a figura de um médico ou de um professor valorizado. Temos notícias de médicos que faltam ao plantão, porém não se fala dos médicos que salvam vidas, que trabalham arduamente em péssimas condições, que produzem ciência, que publicam, que continuam no front de batalha, tentando fazer uma medicina de qualidade.
Vivemos em um país com um modelo de assistência híbrido, em que público e privado convivem. Essa realidade também afeta o comprometimento do médico com o paciente?
Não deveria, mas acho que atrapalha quando cria distorções. Há confusão nesse sistema misto, no qual políticas de governo são pontuais e equivocadas, e se incentiva o crescimento dos planos de saúde como se fossem a solução para a Saúde do Brasil. Este hibridismo público e privado