A medicina e o problema ético do homem moderno
Erich Fromm*
Que entendemos por ética?
A palavra vem de uma raiz que significa, originalmente, costume, e chegou a significar a ciência que trata dos ideais das correlações humanas. Essa confusão entre costume e ideais ainda existe para muita gente.
A maioria das pessoas pensa hoje, conscientemente, na ética em termos de um ideal, de normas éticas, quando realmente julgam que o costume ou o hábito é um bem. Nós, porém, entendemos conscientemente por norma ética um “dever”, e no inconsciente realmente pensamos que o certo é aquilo que é aceito. E, como sabemos, o que é aceito é também a solução mais cômoda, exceto do ponto de vista da nossa consciência.
Por vezes, a ética se refere apenas ao comportamento, e, nesse caso, a entendemos como um código – certamente um código de comportamento desejável. É possível, decerto, dividir a ética. Falamos da ética médica, da ética comercial, da ética militar. Em todos esses exemplos, falamos na realidade de um código de comportamento relacionado com uma determinada situação, ou nela válido. Isso é perfeitamente certo, e prefiro as pessoas que têm um código às que não o têm, e prefiro bons códigos aos maus. Mas se entendemos por ética o que significa a expressão na grande tradição filosófica ou religiosa, ela será então não um código de comportamento válido em certos setores. Segundo essa tradição, a ética se refere a uma determinada orientação, arraigada no homem e que, portanto, não é válida em relação a esta ou aquela pessoa, a esta ou aquela situação, mas a todos os seres humanos. Na verdade, se os budistas estão certos, é válida não somente em relação aos seres humanos, mas a tudo o que vive. A consciência é o órgão dessa atitude ética. Se falamos da ética no sentido da grande tradição filosófica e religiosa do Oriente e Ocidente, então a ética não é um código, mas uma questão de consciência.
Se aceitarmos esse ponto de vista, não haverá uma ética médica. Existe apenas uma ética universal humana aplicada a situações humanas específicas. Se, por outro lado, separarmos a ética médica do problema universal da ética, haverá então o perigo de que a ética médica possa degenerar num código que, essencialmente, serve para proteger os interesses dos médicos contra o interesse dos clientes.
A essa altura, é oportuno dizer alguma coisa mais sobre a consciência. É importante ter presente uma distinção entre a consciência autoritária e a consciência humanista. Consciência autoritária nos parece ser, aproximadamente, o que Freud entendia pelo superego, expressão hoje muito mais popular do que “consciência”. A consciência autoritária, ou superego, é originalmente o poder do pai subjetivado e, mais tarde, a autoridade da sociedade subjetivada. Ao invés de ter medo dos castigos de meu pai, subjetivei suas ordens de modo que não tenho de esperar por essa experiência terrível. Ouço dentro de mim a voz dele e não corro o risco de qualquer ocorrência desagradável. Sou advertido antecipadamente, porque meu pai está dentro de mim. Esse conceito de autoridade subjetivada do pai e da sociedade é válido para o que muita gente considera ser a sua consciência. A explicação freudiana do mecanismo psicológico parece-me muito engenhosa e acertada. Surge, porém, uma indagação: será apenas isso, ou haverá outra, totalmente diferente?
Ao segundo tipo de consciência, que não é a autoridade subjetivada, dei o nome de consciência humanística, referindo-a à tradição filosófica ou religiosa humanista. Essa consciência é uma voz íntima que nos chama de volta a nós mesmos. Por esse “nós mesmos” entendo a essência humana comum a todos os homens, ou seja, certas características básicas do homem que não podem ser violadas ou negadas sem consequências sérias.
Muitos cientistas consideram, atualmente, um absurdo falar de algo semelhante à “natureza do homem”. Acham que tudo depende de onde se vive. Se formos caçadores de cabeças, gostaremos de matar as pessoas e encolher-lhes o crânio. Se vivermos em Hollywood, gostaremos de ganhar dinheiro e ver nosso retrato nos jornais, e assim por diante. Acreditam não haver nada na natureza humana que nos mande fazer uma coisa e não outra. Os psicanalistas e psiquiatras, porém, devem pensar de forma diferente: podem afirmar que existem, na realidade, certos elementos básicos que são parte da natureza humana e que reagirão mais ou menos como nosso corpo se suas leis forem violadas. Se ocorre no corpo um processo patológico, habitualmente experimentamos dor; e se ocorre um processo patológico em nossas almas – ou seja, se algo ocorre em nossas almas que viola algo profundamente enraizado na natureza humana, também ocorre uma reação: experimentamos um sentimento de culpa. Ora, se a pessoa não pode dormir, toma pílulas. Se tem dores, pode tomar outras pílulas. A consciência culpada é tranquilizada pelas muitas formas oferecidas pela nossa cultura, com esse objetivo. Não obstante, a consciência culpada embora possa ser inconsciente tem muitos modos de se manifestar, em uma linguagem por vezes tão penosa quanto a dor física.
Os médicos e os estudantes de Medicina, como têm de tratar habitualmente da dor física e dos sintomas físicos, devem dedicar particular atenção ao que se sabe sobre a dor mental e os sintomas mentais. Por exemplo, uma pessoa que nega completamente o que Albert Schweitzer chamou de reverência pela vida, que é totalmente cruel, desumana, sem bondade, sem amor, está no limiar da insânia. Ao prosseguir nesse caminho, tem receio de enlouquecer, e por vezes enlouquece realmente. Apresenta, em certos casos, uma neurose que o salva da loucura. Até os piores homens da terra precisam de manter a ilusão – e talvez não seja totalmente uma ilusão – de que há neles algo de humano e bom, porque sem isso não se sentiriam mais humanos, e sim próximos da insanidade.
Podemos encontrar facilmente exemplos surpreendentes disso. O Dr. Gustave Gilbert, psicólogo que entrevistou Goering e outros líderes nazistas prisioneiros, durante um ano, até o último dia da vida deles, contou sua experiência. Diz-nos ele que um homem como Goering lhe implorava para ir vê-lo todos os dias e dizia: “Veja, não sou tão mau assim. Não sou tão mau como Hitler; Hitler matou mulheres e crianças, eu não. Por favor, acredite em mim.” Sabia que ia morrer. O homem a quem falava era um jovem psicólogo americano, cuja opinião a seu respeito não podia ter qualquer consequência. Goering não falava para um público, e mesmo assim não podia suportar a ideia de enfrentar-se, desaparecido seu poder, como um ser totalmente desumano. História semelhante é narrada por um representante da imprensa americana que viveu durante certo tempo em Moscou sobre um homem chamado Jagoda, chefe da Polícia Secreta, antes de ser morto pelos que mais tarde também seriam mortos. Jagoda era responsável pela morte e tortura de centenas de milhares de pessoas. Segundo o jornalista, mantinha próximo de Moscou um orfanato, num dos mais belos lugares do mundo – os órfãos eram tratados com liberdade, amor, com toda a consideração. Certo dia Jagoda disse a esse jornalista: “Poderá fazer-me o grande favor de escrever sobre o meu orfanato, para uma revista de Nova Iorque?” O repórter olhou-o, com surpresa, e o chefe da Polícia Secreta explicou: “Você compreende, tenho um tio em Brooklyn, irmão de minha mãe, que lê essa revista. Se ler seu artigo, escreverá para minha mãe, e eu me sentirei melhor.” O repórter escreveu a história e em regozijo Jagoda poupou várias vidas e lhe foi grato até o fim de sua existência.
O problema não era a mãe de Jagoda, mas sua consciência. Não podia suportar a desumanidade total.
Um psiquiatra vienense que visitou a Alemanha Oriental conta que os psiquiatras falam, ali, de um colapso neurótico a que dão o nome de “doença dos funcionários”. Referem-se à doença que toma a forma de um colapso neurótico em funcionários comunistas que permanecem longo tempo em serviço e que a certa altura não toleram mais. Poderíamos coligir farto material em todos os países e culturas para ilustrar o mesmo princípio, ou seja, que não é possível viver desumanamente toda a vida sem sofrer reações severas.
Citei exemplos da Rússia stalinista e da Alemanha nazista, mas não quis dizer com isso que não tenhamos problemas semelhantes nos Estados Unidos, e em todo o mundo ocidental; nosso problema não é, no caso, de crueldade ou espírito de destruição, mas de tédio. A vida não tem sentido. As pessoas vivem, mas não se sentem vivas – a vida corre como areia. E a pessoa que está viva e, conscientemente ou não, sabe que não vive, sente repercussões que, se tiver conservado uma pequena sensibilidade de vida, frequentemente resultam numa neurose. E são essas pessoas que consultam hoje os analistas. Em nível consciente, queixam-se de um casamento ou emprego insatisfatório, ou coisas semelhantes; mas se indagarmos o que se oculta sob tais queixas, a resposta, habitualmente, é que a vida não tem sentido. Tais pessoas sentem que vivem num mundo em que deveriam estar animados, interessados, ativos, e não obstante se sentem mortas e inumanas.
Para tratar realmente do problema ético do nosso tempo o problema do homem moderno -, devo começar dizendo que, embora as normas éticas da conduta humana sejam idênticas para todos, não obstante cada época e cultura tem seus problemas particulares. Não buscarei discutir os problemas das finalidades éticas dos vários períodos, mas sim os problemas éticos do século XIX e os do século XX.
Os principais problemas éticos, os principais pecados do século XIX podem, ao que me parece, ser relacionados como segue: primeiro, a exploração – o homem se alimentava de seu semelhante; fosse a exploração do trabalhador, do camponês ou do negro no Congo ou no Sul dos Estados Unidos, o homem usava seu semelhante como alimento – não exatamente de forma canibalística, pois tinha melhor alimento, mas usava a vida, e a energia de outro homem para alimentar-se. O segundo problema moral do século XIX era o autoritarismo – os homens no poder sentiam que em virtude de sua força tinham o direito de mandar e limitar os outros homens. Era a autoridade dos pais sobre os filhos, tão bem descrita em The Way of All Flesh, de Butler, a autoridade dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os trabalhadores, dos Estados sobre os territórios, especialmente quando habitados por gente de cor diferente. O terceiro problema era a desigualdade. Considerava-se certo que pessoas na terra (e até mesmo dentro da mesma nação) vivessem em circunstâncias materiais de completa desigualdade – e que os sexos não eram iguais, que as raças não eram iguais, apesar da suposta obediência aos preceitos do Cristianismo, que em essência é uma religião universal baseada no conceito de que somos todos filhos de Deus.
Outro vício do século XIX, particularmente o da classe média, foi a sovinice – acumulação, poupança de sentimentos e coisas. Intimamente relacionada com essa atitude estava o individualismo egoísta: “meu lar é meu castelo”, “minha propriedade sou eu”.
Tendemos a considerar tais vícios como peculiares do século XIX e sentimos que, realmente, progredimos muito mais do que nossos antepassados. Já não praticamos tais males e nos sentimos bem. Talvez toda geração veja assim seus próprios problemas éticos. Tal como os franceses combateram, estrategicamente, na Segunda Guerra Mundial com as ideias da Primeira, também toda pessoa trava sua luta moral em termos da geração precedente. Verá, facilmente, como superou de forma maravilhosa certos vícios, mas não vê que a negação do que antes existia não é em si uma realização, e que numa sociedade e cultura em transformação não se reconhecem os novos vícios devido à sensação de felicidade provocada pelo desaparecimento dos velhos vícios.
Voltemos aos vícios do século XIX e vejamos o que foi feito deles. Não temos hoje, na verdade, o espírito autoritário de então. As crianças podem “expressar-se” e fazer o que lhes agrada. Os trabalhadores conversam com psicólogos, aos quais descrevem seus sentimentos, e nenhum patrão ousaria agir atualmente como o patrão de há cinquenta anos. Mas não temos princípios, não temos nenhum senso de valores ou padrão de valores.
Gostaria de falar, aqui, de um conceito da distinção entre a autoridade irracional e a racional. Pela primeira entendo a autoridade baseada na força, física ou emocional, e cuja função é a exploração de outras pessoas, materialmente, emocionalmente ou de qualquer outra forma. A autoridade racional é a autoridade baseada na competência e cuja função é ajudar a outra pessoa a realizar determinada tarefa. Creio que essas autoridades estão muito confundidas, hoje. Se Joãozinho diz à mãe “dois e dois são cinco”, ela poderá julgar que lhe está inibindo a liberdade de expressão se insistir em que dois e dois são quatro. Se for muito sofisticada, ela poderá até mesmo justificar-se com o raciocínio de que os sistemas matemáticos não são absolutos, de qualquer modo, de forma que “meu Joãozinho, no final das contas, tem razão”.
Quando lembramos o ensaio de Thoreau A Vida Sem Princípios, escrito há cem anos, podemos ter dificuldades em acreditar que se trata de um problema do século XX. Evidentemente, já era um problema no século XIX. Mas se isso ocorria na época de Thoreau, ocorre hoje com intensidade ainda muito maior. O que Thoreau viu, com grande sensibilidade, foi que as pessoas tinham opiniões, mas não convicções, que tinham fatos, mas não princípios. Essa evolução continuou, até assumir hoje proporções assustadoras e, creio, também um papel assustador na educação. A educação progressista era uma reação contra o autoritarismo do século XIX, e, como desafio, era uma realização construtiva. Mas juntamente com certas outras tendências em nossa cultura, deteriorou num laissez-faire no qual não se reconhece nenhum princípio, nenhum valor é formulado, nem existe qualquer hierarquia. Penso não numa hierarquia de poder, mas numa hierarquia de conhecimento e respeito pelos que são mais bem informados. Hoje, enfrentamos a suposição dogmática de que a espontaneidade, originalidade e individualismo estão necessariamente em conflito com a autoridade racional e um sentido de aceitação de padrões. Um corretivo útil para essa atitude seria o conhecimento da arte de atirar com arcos, do Zen, que tende a combinar atitudes aparentemente contraditórias.
Quanto ao segundo vício, o do entesouramento, certamente não entesouramos hoje, isso provocaria uma catástrofe nacional. Nossa economia é baseada no consumo, no dispêndio. E, naturalmente, tais transformações morais são, frequentemente, consequência de certas modificações econômicas. Nossa indústria de publicidade é um apelo constante ao dispêndio e não à poupança. Que fazemos, então? Praticamos o consumo incessante, pelo próprio consumo. Sabemos de tudo isso, não é necessário discuti-lo. Uma caricatura em The New Yorker mostra bem isso: dois homens olham um carro novo. Um deles diz: “Não gosto de rabo-de-peixe, você não gosta de rabo-de-peixe, mas imaginou o que aconteceria à economia americana se ninguém gostasse de rabo-de-peixe?”. Na realidade nosso perigo não é o de acumular, mas é igualmente grande – somos os consumidores eternos, recebendo, recebendo, recebendo. Oito horas por dia, qualquer que seja a nossa situação, trabalhamos. Somos ativos. Em nossos momentos de lazer, porém, somos completamente preguiçosos, com a passividade de consumidores. A atitude de consumidor passou, agora, do campo da Economia para invadir cada vez mais a esfera da vida diária. Consumimos cigarros e coquetéis, livros e televisão; parecemos procurar a grande mamadeira que nos proporcione a alimentação total. E por vezes consumimos tranquilizantes.
A desigualdade é o terceiro vício que julgamos ter superado. Realmente, a desigualdade que existia e era permitida no século XIX está desaparecendo. Apesar do muito que resta ser feito, o observador objetivo se impressionará com o progresso obtido no sentido de uma igualdade de raças na América, especialmente no período transcorrido desde a Segunda Guerra Mundial. O progresso no sentido da igualdade econômica nos Estados Unidos também tem sido considerável. Mas a que nos levará isso? Deformamos a noção de igualdade, transformando-a numa noção de “semelhança”. Que significava o conceito de “igualdade” na grande tradição humanista? Significava que somos iguais num sentido: o de que todo homem é em si uma finalidade e não deve constituir-se em meio para os objetivos de ninguém. Igualdade é a condição na qual nenhum homem deve ser transformado em meio, mas sim todo homem deve permanecer como um fim em si mesmo, a despeito de sua idade, cor, sexo. Foi essa a definição humanística da igualdade que representa a base, na verdade, para o desenvolvimento das 138 diferenças. Somente, se pudermos ser diferentes sem estarmos ameaçados de tratamento desigual, somente então seremos iguais.
Mas, que fizemos nós? Transformamos o conceito de igualdade no conceito de semelhança. Na verdade, temos medo de ser diferentes porque temos medo de não ter direito de estarmos aqui, se formos diferentes. Indaguei recentemente a um homem de seus trinta anos por que tinha medo de fazer algo digno em sua vida, de viver intensamente e com ímpeto. Depois de refletir um momento, respondeu-me: “Tenho realmente medo porque isso significaria ser muito diferente”. Infelizmente, acredito que isso ocorra com muitas pessoas.
Esse conceito de igualdade, que tem todo o prestígio, toda a dignidade de um grande conceito filosófico e humanístico, é mal empregado num dos mais degradantes, inumanos e perigosos aspectos de nossa cultura, ou seja, o da semelhança, que significa a perda de individualidade. Podemos vê-lo perfeitamente nas relações entre os sexos. Verifica-se nos Estados Unidos que os sexos se tornaram “iguais” a um ponto em que a polaridade entre eles desapareceu, e a fagulha criadora que só se produz com a polaridade dos opostos desapareceu. Mas, a menos que essa polaridade possa existir, não pode haver criatividade, pois é com o encontro de dois polos que a centelha criadora pode surgir.
Nessa transformação dos vícios do século XIX em vícios do século XX – que são chamados de virtudes – devemos notar também a considerável eliminação do individualismo e da exploração egocêntrica. Em nenhum outro país do mundo, a exploração desapareceu nas mesmas proporções em que nos Estados Unidos. Os economistas dizem que, dentro de um prazo relativamente curto, os resultados serão ainda mais fantásticos do que hoje. O individualismo egocêntrico praticamente não existe – ninguém quer ficar só, todos querem estar em companhia de outros, as pessoas ficam em pânico com a possibilidade de estarem sós, mesmo por pouco tempo. Tais vícios desapareceram, mas quais os surgidos em seu lugar? O homem sente-se, e sente os outros, como coisas – meras mercadorias. Experimenta a energia vital como um capital a ser investido para obtenção de lucro, e ao lucro dá o nome de êxito. Fazemos máquinas que agem como homens e produzimos 139 homens que agem como máquinas. O perigo do século XIX foi o de nos tornarmos escravos; o perigo do século XX não é o de sermos escravos, mas robôs.
Originalmente, toda a nossa produção material era um meio para a realização de um fim. Um meio para a finalidade de maior felicidade – e é o que ainda afirmamos. Mas, na realidade, a produção material tornou-se um fim em si mesma, e não sabemos realmente que fazer com ela. Vejamos apenas um exemplo; o desejo de poupar tempo. Quando temos o tempo poupado, ficamos sem saber o que fazer dele, e buscamos meios e formas de matá-lo. E recomeçamos a poupar o tempo. O homem, em nossa cultura, julga-se não um elemento ativo, não o centro de seu mundo, não um criador de seus próprios atos, mas antes uma coisa impotente. Seus atos e suas consequências se transformam em seus senhores. Veja-se o símbolo ou talvez a realidade terrível – da bomba atômica. O homem adora os produtos de suas próprias mãos, os líderes que ele mesmo faz, como se lhe fossem superiores, e não criações dele. Acreditamos que somos cristãos ou judeus ou o que quer que seja, mas na verdade caímos no estado de idolatria cuja melhor descrição ainda se encontra nos profetas. Não oferecemos sacrifícios a Baal ou Astarde, mas adoramos as coisas: produção, êxito; somos ingenuamente inconscientes de que somos idólatras, e pensamos ser sinceros ao falarmos de Deus. Certas pessoas chegam a tentar combinar a religião e materialismo, até que a religião se transforma no método de obter maior êxito por si mesmo, sem ajuda do psiquiatra. Na verdade, as coisas se tornaram os objetivos da preocupação final. E qual o resultado? O resultado é que o homem está vazio, infeliz, entediado.
Quando falamos do tédio, as pessoas pensam, naturalmente, que ele não é agradável, mas não o consideram como problema sério. Estou convencido de que o tédio é uma das maiores torturas. Se tivéssemos de imaginar o Inferno, para nós seria o lugar onde estivéssemos continuamente entediados. Na verdade, as pessoas fazem um esforço fanático para evitar o tédio, correndo de uma coisa para a outra, porque tal sensação é insuportável. Quem tem a “sua” neurose e o “seu” analista, isso o ajuda a sentir-se menos entediado. Mesmo que tenha ansiedade 140 e sintomas compulsivos, estes pelo menos são interessantes. Na verdade, estou convencido de que uma das motivações dessas coisas é a fuga ao tédio.
Creio que a frase “o homem não é uma coisa” constitui o tópico central do problema ético do homem moderno. O homem não é uma coisa, e, se tentarmos transformá-lo nisso, podemos arruiná-lo. Ou, citando Simone Weil: “O poder é a capacidade de transformar o homem numa coisa porque transformamos um ser vivo num cadáver.” O cadáver é uma coisa. O homem, não. O poder final – o poder de destruir – é exatamente o poder final de transformar a vida numa coisa. O homem não pode ser montado e desmontado novamente, como as coisas. A coisa é previsível, o homem não. A coisa não pode criar, o homem pode. A coisa não tem eu, o homem tem. O homem tem a capacidade de dizer a palavra mais peculiar e difícil da língua, “eu”. As crianças só relativamente tarde aprendem essa palavra, mas depois disso dizem, sem hesitação, “eu acho”, “eu penso”, “eu faço”. E se examinarmos o que estamos realmente dizendo – a realidade do que afirmamos – verificaremos que isso não é verdade. Seria muito mais acertado dizer “algo pensa em mim”, “algo sente em mim”. Se, ao invés de perguntarmos a uma pessoa “como vai?”, perguntamos “quem és?”, ela se surpreenderá. Qual a primeira resposta que dará? Primeiro, seu nome, mas o nome nada tem a ver com a pessoa. Em seguida, diria: “eu sou médico, sou casado, pai de dois filhos”. Tais qualidades poderiam também ser atribuídas a um carro – é um sedã de quatro portas, etc. O carro não pode dizer “eu”. O que a pessoa oferece como descrição de si mesma é, na realidade, uma lista das qualidades de um objeto. Pergunte-se a alguém, ou a nós mesmos, quem somos, quem é esse “eu”. O que queremos dizer quando usamos a expressão “eu acho”? Achamos ou sentimos realmente, ou algo em nós sente? Sentimo-nos realmente como o centro do mundo, não um centro egocêntrico, mas no sentido de que somos “originais”, e por isso quero dizer que os pensamentos e os sentimentos se originam em nós? Se nos sentarmos por quinze ou vinte minutos, pela manhã, e tentarmos não pensar em nada, mas esvaziar nossa mente, veremos como nos é difícil ficar sozinhos conosco e ter um sentimento de que “isso sou eu”.
Quero mencionar mais um ponto que se refere à diferença entre conhecer as coisas e conhecer o homem. Posso estudar o cadáver ou um órgão, e isso é uma coisa. Posso usar meu intelecto, e meus olhos também, bem como minhas máquinas e ferramentas, para estudar essa coisa. Mas se quero conhecer o homem, não posso estudá-lo dessa forma. É claro que posso tentar, e escrever algo sobre a frequência deste ou daquele comportamento e sobre a porcentagem desta ou daquela característica. Grande parte da ciência da Psicologia se ocupa disso, mas, ao fazê-lo, trata o homem como uma coisa. O problema do psiquiatra e do psicanalista, porém, é o problema de que todos nos devíamos ocupar – compreender nossos vizinhos e a nós mesmos é o mesmo que compreender que o ser humano não é uma coisa. O processo dessa compreensão não pode ser realizado pelo mesmo método no qual o conhecimento das Ciências Naturais pode ser obtido. O conhecimento do homem só é possível no processo de relacionarmo-nos com ele. Somente se eu me relacionar com o homem a quem quero conhecer, somente no processo de nos relacionarmos com outro ser humano, poderemos realmente saber alguma coisa sobre ele. O conhecimento final sobre outro ser humano não pode ser expresso em pensamentos ou palavras – tal como não podemos explicar a alguém como é o gosto do vinho do Reno. Poderíamos tentar durante cem anos, mas jamais tal gosto seria conhecido sem provar o vinho. E jamais podemos esgotar a descrição de uma personalidade, de um ser humano, em sua plena individualidade. Mas podemos conhecê-lo num ato de empatia, num ato de experiência plena, num ato de amor. Tais são as limitações da Psicologia científica, ao que me parece, quando tem como objetivo a plena compreensão dos fenômenos humanos, pela palavra ou pelo conteúdo do pensamento. É da maior importância para o psiquiatra e o psicanalista saber que somente nessa atitude de correlação ele pode compreender alguém, e isso me parece também muito importante para o clínico-geral.
O paciente, portanto, deve ser visto como um ser humano, e não apenas como “uma enfermidade”. O médico é treinado numa atitude científica, na qual observa, como se observa no estudo das Ciências Naturais. Para compreender seu paciente, porém, e não tratá-lo como coisa tem de aprender outra atitude que é própria da ciência do homem: como relacionar-se, na qualidade de ser humano, com outro ser humano, usando a concentração e a mais completa sinceridade. A menos que isso se faça, todas as frases sobre o paciente como pessoa serão apenas conversa fiada.
Quais são, portanto, as exigências éticas de nossa época? Primeiramente, superar essa “condição de coisa” – ou, usando um termo técnico, a “reificação” do homem. Superar o conceito de nós mesmos e dos outros como coisas, a nossa indiferença, nossa alienação em relação aos outros, à natureza e a nós mesmos. Segundo, para chegarmos outra vez a um novo senso do “eu”, é necessária uma experiência do “eu sou”, ao invés de sucumbirmos ao sentimento de autômato no qual temos a ilusão de que “eu sou o que penso”, quando na realidade eu não penso, sendo na verdade como a pessoa que coloca o disco na vitrola e julga estar tocando a música.
Outra finalidade que podemos mencionar é a de tornar-se criador. Que é a criatividade? Poderia significar a capacidade de criar pinturas, romances, quadros, obras de arte, ideias. Decerto, isso é uma questão de aprendizado e de ambiente e, parece-me, também de genes. Mas há outra criatividade que é uma atitude, uma condição atrás de toda a criatividade no primeiro sentido. Enquanto o primeiro tipo de criatividade é a capacidade de transmitir a experiência criadora ao plano material, à criação de algo que se pode expressar na tela ou em qualquer outro meio, a criatividade no segundo sentido refere-se a uma atitude que pode ser definida simplesmente: estar consciente e reagir. Isso parece muito simples, e parece-me que a maioria das pessoas dirá “evidentemente, estou pronto a reagir, a corresponder”. Ter consciência significa ter realmente consciência – do que uma pessoa realmente é, ter consciência de que uma rosa é uma rosa é uma rosa, como disse Gertrude Stein -, ter consciência de uma árvore e não ter consciência dela como algo que se enquadra no conceito da palavra árvore, como a maioria das pessoas habitualmente faz.
Darei um exemplo. Certo dia, uma mulher que eu estava analisando chegou à consulta muito entusiasmada. Estivera descascando ervilhas na cozinha. Disse-me: “Pela primeira vez na minha vida senti que as ervilhas podem rolar”. Ora, todos sabemos disso, desde que elas estejam sobre uma superfície lisa. Sabemos que uma bola ou qualquer outro objeto redondo rola; mas o que realmente sabemos? Sabemos, em nossa mente, que um objeto redondo, sobre a superfície lisa, rola. Vemos o fenômeno e afirmamos que os fatos correspondem ao que sabemos; mas isso é muito diferente da experiência criadora de ver realmente o movimento. As crianças procedem assim. É por isso que podem brincar repetidamente com uma bola, porque não se entediam, porque não pensam nela, apenas a veem e a experiência é tão maravilhosa que podem vê-las muitas vezes.
Essa capacidade de ter consciência da realidade de uma pessoa, de uma árvore, de alguma coisa, de corresponder a essa realidade, é a essência da criatividade. Creio que um dos problemas éticos de nossa época é educar os homens, as mulheres e a nós mesmos para que tenhamos consciência, e para reagirmos. Outro aspecto disso é a capacidade de ver; ver o homem no ato da relação, e não vê-lo como objeto. Em outras palavras, devemos lançar as bases de uma nova ciência do homem na qual ele seja compreendido não somente com o método das Ciências Naturais, que tem seu lugar adequado, e se aplica também a muitos campos da Antropologia e da Psicologia, mas também no ato do amor, no ato da empatia, no ato de vê-lo como homem. Mais importante do que todos esses fins é a necessidade de colocar o homem novamente no controle, de fazer que os meios sejam novamente meios e os fins sejam novamente fins, de reconhecer que nossas realizações no mundo do intelecto e da produção material só têm sentido se forem meios para um fim: o pleno nascimento do homem, ao se tornar este plenamente humano.
É fácil, por certo, dizer que os médicos são parte dessa cultura e sociedade, e sofrem dos mesmos problemas e defeitos de todos os demais. Devido à natureza de seu trabalho, porém, devem relacionar-se com seus pacientes; precisam aprender não somente o método da Ciência Natural, mas também o da ciência do homem. É fato estranho que os médicos sejam diferentes; a profissão médica é um anacronismo em relação ao seu método de trabalho. Refiro-me à diferença entre a produção artesanal e a produção industrial. Na produção artesanal, tal como existia na Idade Média, o homem fazia seu trabalho sozinho. Poderia ter um ajudante, ou aprendiz, ou alguém que o ajudasse, que limpasse o chão, aplainasse a madeira. Mas a tarefa essencial era feita por ele. Na moderna produção industrial, temos o oposto. Temos o princípio de um alto grau de divisão do trabalho. Ninguém faz a totalidade do produto. Os responsáveis organizam o todo, mas não o fazem; e os que fazem o trabalho específico jamais veem o todo. Tal é o método da produção industrial.
O método de trabalho do médico é ainda o do artesão. Pode ter alguns assistentes, pode ter este ou aquele equipamento, mas com exceção de uns poucos que procuram introduzir os métodos industriais na prática da medicina, a maioria dos médicos ainda age como artesã. São eles que veem o paciente e assumem a responsabilidade. Além disso, há outra diferença. Todos falam hoje que trabalham para ganhar dinheiro. Compreendo que os médicos ainda pretendem que tal não é realmente a principal razão de seu trabalho, que agem no interesse do paciente, e só incidentalmente ganham dinheiro. O artesão da Idade Média tinha a mesma atitude. Naturalmente, ganhava dinheiro, mas trabalhava, por amor à arte, e muitas vezes preferia uma recompensa menor a um trabalho entediante. A profissão médica é ainda uma vez anacrônica, talvez ainda menos realista sob esse aspecto do que no caso do seu processo de trabalho.
Isso pode ter duas consequências. Pode prestar-se à hipocrisia de proclamar ideias que são tradicionais sem que exista um sentimento de fidelidade a tais ideias.
Mas há também a possibilidade de que os médicos, exatamente porque seu método de trabalho ainda não foi despersonalizado, porque ainda constitui um trabalho no sentido artesanal, tenham maiores possibilidades que os homens de qualquer outra profissão. Essas possibilidades existem desde que eles reconheçam a oportunidade – a de ajudarem a nos guiar a um novo caminho de humanismo, a uma nova atitude de compreensão do homem, que envolve a consciência, pelo médico e pelo paciente, de que o homem não é uma coisa.
*Erich Fromm, filósofo e psicanalista alemão (1900-1980)