Humanidades, arte e saúde


Reflexões críticas sobre o modelo atual da graduação de médicos e psicólogos e o papel da arte na formação humanística dos profissionais de saúde, inclusive, dos psicanalistas. De um lado, o paciente, autor da sua própria biografia e portanto, de arte genuína, história e vida; e do outro, o profissional de saúde, com formação humanística, na condição de observador e intérprete. Ambos necessariamente interagem diante da obra.

// Déborah Pimentel

Uma das minhas metas como psicanalista e professora de ética médica, é criar possibilidades para que os profissionais de saúde se humanizem e exerçam o seu oficio com empatia e compaixão. A arte, indubitavelmente, desperta essas questões. Todas as expressões da arte dentro de suas peculiaridades, promovem um novo olhar sobre o ser humano, sua subjetividade e sobre a pessoa que sofre, adoece e morre, mas que antes de ser a portadora de uma doença, é autora de sua própria biografia, rica de sonhos, projetos e desejos realizados ou não.

Através da arte é possível compreendermos um pouco as nuances da alma e das dores dos nossos pacientes.

O saber em saúde advém da clínica, ou seja, do conhecimento da realidade do paciente, frente a uma boa entrevista, envolvendo não só aspectos estritamente biológicos, como também, e principalmente, os biográficos.

Realmente acredito que a arte e a literatura enquanto experiências sensoriais podem despertar sensibilidade, sem, no entanto, este profissional abdicar dos seus conhecimentos científicos dando um valor humanístico às suas observações clínicas, tal qual ocorre com um artista que usa a realidade como matéria prima.

Podemos afiançar que os grandes artistas, são grandes psicólogos, por essência. E com esta convicção deveríamos aprender com eles. Temos que estimular práticas de saúde centradas no sujeito e eu entendo isso como saber humanístico, aquele que mora na filosofia, na literatura, na arte, sem desmerecer a etiologia dos problemas, quer físicos, quer psíquicos.

Com o avanço científico e tecnológico, principalmente a partir do século XX, houve uma reorganização do saber médico que, paulatinamente, foi desconsiderando as fontes de saber humanístico e entramos em uma era de desumanização e de práticas de saúde que geram desconforto e distanciamento na relação entre profissionais e pacientes. A saúde transformou-se em mercadoria.

Mas como fazer este resgate de práticas humanizadas, senão investindo na própria formação médica? E como isso é possível? Dentro deste bojo valorizamos o papel da própria história, da filosofia, da literatura, da poesia, do cordel, do teatro, das pinturas e esculturas, para uma evolução das práticas de saúde. Estes conhecimentos humanísticos tornam o profissional mais sensível e por conseguinte mais habilitado a entender a alma humana e assim respeitar o sujeito que sofre e pede ajuda, como o autor da própria história, considerando a sua realidade e a sua dor, percebidas dentro de um contexto sócio-bio-psicológico e espiritual e com uma subjetividade particular e única, tal qual uma obra de arte. As obras de arte precisam ser vistas, analisadas, sentidas empaticamente e interpretadas. Elas expressam ações, fatos, histórias e dão um sentido à existência ou à morte.

De um lado, o paciente, autor da sua própria biografia e portanto, de arte genuína, história e vida; e do outro, o profissional de saúde, com formação humanística, na condição de “observa-dor”. Ambos necessariamente interagem diante da obra.

Baseado nestas premissas, tenho oferecido aos meus alunos de medicina uma experiência diferente e temos discutido arte, promovendo sessões em que eles buscam obras e as interpretam, desenvolvendo sensibilidade que pode ser transmitida e percebida contratranferencialmente na relação com os seus futuros pacientes. Creio que formação humanística implica em estudos de sociologia, psicologia, filosofia e artes em geral.

Mas será que estamos falando apenas da formação médica? Isso não seria importante para todos os profissionais que lidam com pessoas e em especial aqueles que lidam com saúde? Será que isso não seria importante para psicólogos e psicoterapeutas, e entre estes, os psicanalistas?

Ter a graduação formal em psicologia ou medicina não dão garantias de uma boa prática. Devemos entender também que a habilitação legal por capacitação universitária é insuficiente para o exercício profissional e não prepara nenhum médico ou psicólogo o bastante, pois o seu saber está além do saber universitário.  Claro que o saber universitário tem um enorme peso, porém quanto mais culto mais vantagens tem esse profissional no exercício de seu mister e na compreensão dos sofrimentos do corpo e da alma.

Assim, como também não podemos nos distanciar do fato de que a apreensão teórica da psicanálise não é suficiente para que se forme um analista.  Somente diante da experiência do seu próprio inconsciente é que esse candidato se capacita ao exercício de escuta em um registro que possa ser qualificado de psicanalítico.  Não será um título de especialista devidamente registrado em um conselho que autorizará um psicanalista ao seu ofício.

A formação psicanalítica em todas as boas instituições está montada em um tripé: análise pessoal, estudo teórico, e supervisão. E defendo que este estudo não seja apenas da teoria formal psicanalítica, mas faça interface com as artes, literatura, cinema, teatro, poesia, cordel, e o que mais vier como janelas que dão acesso a uma melhor compreensão do outro. Acredito que Freud nos convidava à criatividade emergente do inconsciente de cada analista que se autoriza ao exercício da prática psicanalítica.

Quem se arvora a uma formação em psicanálise e não vive a inquietude da análise e as suas vicissitudes ligadas à criatividade, como consequência de uma demanda da própria teoria analítica e do desejo do saber, não pode, por conseguinte, alcançar este status de psicanalista.  Até mesmo porque a formação de um analista só pode ser resultante da análise de um sujeito, processo esse impossível de ser enquadrado e ter efeitos previsíveis e portanto, sem garantias.

Tenho convicção que a formação humanística, aliada à uma boa análise pessoal, favorecem este profissional. Mas também é fundamental uma supervisão adequada, em que o jovem analista aprende a ler e interpretar as dores e angustias dos seus pacientes, em uma relação de inconsciente a inconsciente, revelando a história, as escolhas impossíveis e as vicissitudes da alma humana, que se revelam como uma grande e enigmática obra de arte.

A arte é absolutamente democrática e alcança todos, indiscriminadamente, a quem queira sobre ela se debruçar, levando a sua mensagem que é interpretada individualmente, e de acordo com as necessidades especificas de cada um. E peço licença poética para dizer que cada um é o seu próprio “interpreta-dor”.

O cordel é um destes maravilhosos exemplos. Leva a todos de forma simples e direta a melhor mensagem do poeta, contribuindo de alguma forma para alertar, esclarecer, fustigar, provocar a alma humana, criando e recriando na obra, oportunidades de se aprender com as experiências e lições de vida e dando a chance de transformar condutas e de refletir sobre a vida e sobre a morte.

A obra Saúde Mental em Cordel1 da presidente da Academia Sergipana de Cordel, a “marbela” cordelista destas paragens, a Izabel Nascimento, um verdadeiro girassol, é de grande relevância, pois traduz com palavras simples e diretas aquilo que muitos carregam como dores, medos, angustias e sintomas psíquicos, mas que muitas vezes não são reconhecidos como expressão de algum diagnóstico clínico. Com poesia e arte ela traduz sentimentos e emoções indizíveis para quem os sente, porém passiveis de identificação e reconhecimento para quem ouve os seus versos. O seu papel é educativo, informativo, é um alerta para aquele que sofre ou para um ente querido impotente diante da angustia do outro a quem ama e que acorda para necessidade de ajudar ou ser ajudado.

Em um dos trechos do seu cordel sobre a depressão ela diz:

 

Desejo que você saiba

Digo com muita certeza

Depressão não é frescura

Não é sinal de fraqueza

Portanto, vá pensando

Deus não está castigando

Numa atuação do mal

Tem cura, tem tratamento

Pra te livrar do tormento

Que é doença cerebral

 

Depressão não tem idade

Não escolhe Sul ou Centro

Às vezes quem ri por fora

Está chorando por dentro

Busquem quem lhe compreenda

Um profissional que atenda

E nova chance se dê

Para alcançar a saída

Ver de volta a cor da vida

Eu acredito em você!

 

Sobre ansiedade a cordelista diz em sua primeira estrofe:

 

Transtorno de ansiedade

Tem se tornado frequente

A mente está no futuro

O corpo está no presente

A palavra é conhecida

Mas será que em nossa vida

Tem alguma utilidade?

Disso é bom saber direito

Qual o real conceito

Da palavra ansiedade?

 

Sobre a prevenção do suicídio, ela diz:

 

As pressões do dia a dia

A depressão recorrente

Os padrões da sociedade

Vão minando a nossa mente

Até que chega um instante

Que tudo é angustiante

O mundo fica sem cor

Uma ideia suicida

Não quer dar fim à vida

Mas quer acabar com a dor.

 

Não é drama, nem frescura

Nem para chamar atenção

Não, não é falta de Deus!

Esta dor tem solução

É preciso conversar

Terapeuta para ajudar

Ver que não está sozinho

Tirar o peso, a tristeza

Acreditar. Com certeza

Viver é o melhor caminho!

 

A obra de Izabel está marcada no seu DNA. É filha de Pedro Amaro do Nascimento, reconhecido internacionalmente pelo Papa Bento XVI no seu livro sobre o Pontificado de Paulo II. Este poeta, homem simples, de grande sabedoria e riqueza linguística, entre inúmeras obras literárias em cordel, nos brindou com uma “belezura” de um livro intitulado Medicina e Arte2, editado pela SOBRAMES Regional Sergipe.

Assim, conclui-se que para que desenvolvamos práticas humanísticas em saúde, e entendamos melhor as múltiplas demandas de amor, não podemos prescindir de viver uma relação mais íntima com as artes de quaisquer naturezas.

Fecho meu discurso com fragmentos da poesia em cordel de Pedro Amaro:

 

O médico tem mente aberta

Conhece a situação

Sem a atuação do médico

Seria contradição

Qual um livro sem leitura

Qual um povo sem cultura

Ou criança sem ter pão.

 

Psiquiatria é intento

De estudos especiais

É o centro dos fenômenos

Sobre distúrbios mentais

Violência e desengano

Mudando o cotidiano

Das causas habituais.

 

Psicologia é ciência

Estuda o comportamento

E nas relações humanas

Dá um bom discernimento

Caminhos, definições

Sentimentos e emoções

Que se tem no pensamento.

 

Neste século XXI

Se eu fosse gênio, traria

Poesia e Medicina

Na mais perfeita harmonia

Todos poetas desejam

Que todos médicos sejam

Amigos da poesia.

 

Aos que cuidam da saúde

Todos especialistas

Nossos agradecimentos

Pelas ações e conquistas

A função mais concorrida

Protagonistas da vida

São veteranos artistas.

 

Referências

 

  1. NASCIMENTO, I. Saúde Mental e Cordel. Aracaju: Faculdade Estácio de Sergipe, 2018.
  2. NASCIMENTO, P.A. Medicina e Arte. Aracaju: Edições SOBRAMES Sergipe – Gráfica J. Andrade, 2016.

 

Déborah Pimentel é doutora em Ciências da Saúde e é professora de Habilidades de Comunicação e Ética Médica na Universidade Tiradentes e Universidade Federal de Sergipe. É membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe, imortal da Academia Sergipana de Medicina e membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores.

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