O médico à procura do ser humano


Antigamente a simples presença do médico irradiava vida. Antigamente os médicos eram também feiticeiros. “Mestre, diga uma única palavra, e minha filha será curada…”. A vida circulava nas relações de afeto que ligavam o médico àqueles que o cercavam. Naquele tempo os médicos sabiam dessas coisas. Hoje não sabem mais.

The Doctor | Sir Luke Fildes 1843-1927

Rubem Alves*

Aquele médico ao lado da menina: não se parece ele com um cavaleiro solitário que vai sozinho lutar contra a morte? Naquele tempo os médicos sabiam qual era seu destino. Havia muito sofrimento, sim. Havia muito medo, sim. Medo e sofrimento são parte da substância da vida. Mas nunca soube de um médico que ficasse estressado. Não são as batalhas que produzem o estresse. As batalhas, ao contrário, dão coesão, pureza, integração ao corpo e à alma. O cavaleiro solitário é um herói com o corpo coberto de cicatrizes, mas de alma inteira. Os estressados são aqueles que, sem ter uma batalha a travar, são puxados em todas as direções por uma legião de demônios.

A imagem do cavaleiro solitário que luta contra a morte é uma imagem romântica. Bela. Comovente. Quem não desejaria ser um? Criticam o romantismo. Fernando Pessoa comenta: mas não é verdade que a alma é incuravelmente romântica? O médico de antigamente era um herói romântico, vestido de branco. As jovens donzelas e as mulheres casadas suspiravam ao vê-lo passar. Ainda bem que a consulta permitia o gozo puro do toque da sua mão…

O cavaleiro solitário que luta contra a morte é um santo. Quem, jamais, ousaria pensar qualquer coisa de mau contra o médico? Hoje são comuns os processos contra os médicos por imperícia. Ser médico transformou-se num risco. Porque ninguém mais acredita na sua santidade. Talvez porque eles tenham deixado mesmo de ser santos… Mas naquele tempo as pessoas julgavam que o médico era um santo, e porque as pessoas pensavam assim, eles eram santos.

Eu me apaixonei pela imagem. Queria ser feiticeiro. Queria ser o cavaleiro solitário que luta contra a morte. Queria ser o santo. E esse ideal, para mim, não era uma abstração. Ele tinha um nome: Albert Schweitzer – um dos homens mais geniais do século XX. Organista, escritor, teólogo, fez um trato com Deus: até os 30 anos, faria essas coisas que lhe davam prazer cultural. Depois, iria se dedicar inteiramente aos sofredores. Entrou para a escola de medicina aos 30 e, depois de médico, passou o resto da vida num lugar perdido das selvas africanas, onde construiu um hospital de madeira e sapé, onde distribuía alívio da dor. Claro, nunca ficou rico. Nem teve estresse. Sua bela imagem o fazia feliz. Ganhou o prêmio Nobel da Paz.

Não fui médico. Mas segui pela vida encantado por aquele quadro. O encanto foi quebrado quando fui fazer meu doutoramento nos Estados Unidos. Um dia fui ouvir uma palestra do diretor do hospital da cidade de Princeton, NJ, onde eu estudava. Ele começou sua preleção com esta afirmação que estilhaçou o quadro: “O hospital de Princeton é uma empresa que vende serviços”. “Meu Deus”, eu pensei. “Aquele médico não existe mais”. E percebi que, agora, os médicos se encontram lado a lado com os prestadores de serviço, os encanadores, os eletricistas, os vendedores de seguro, os agentes funerários, os motoristas de táxi. É só procurar na lista de classificados. A presença mágica já não existe. O médico é um profissional como os outros. Perdeu sua aura sagrada. E me veio, então, uma definição do médico compatível com a definição que o diretor dera para o hospital de Princeton: “um médico é uma unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados, e que vende serviços”.

Essa imagem, em absoluta conformidade com as condições sociais e econômicas do mundo moderno, não fez nada comigo. Não me comoveu. Não desejei ser igual.

O mito de Narciso, eu acho, é o mito mais profundo. Todos nós, como Narciso, estamos em busca da nossa bela imagem. Mas para ver a nossa bela imagem temos necessidade de espelhos. Espelhos são os outros. É no rosto dos outros que vemos a nossa própria imagem refletida. Nos tempos antigos todas as pessoas eram espelhos para o médico. Todos o conheciam. Todos olhavam para ele com admiração. Hoje, morto o médico do quadro, o médico é agora procurado não por ser amado e conhecido, mas por constar no catálogo do convênio. Seus espelhos não são mais os clientes, parentes, todo mundo. São os seus pares: colegas de empresa, sócios de consultório, congressos. Perigosas, essas relações entre pares. O primeiro assassinato registrado foi de um irmão que matou o irmão. A relação do médico antigo com seus espelhos era uma relação de gratidão e admiração. A relação do médico de hoje com seus espelhos é uma relação de inveja e competição.

Acho que os médicos, hoje, são infelizes por causa disto: eles resolveram ser médicos por desejar ser belos como o cavaleiro solitário, puros como o santo, e admirados como o feiticeiro. Era isso que estava dentro deles, ao tomarem a decisão de estudar medicina. E é isso que continua a viver na sua alma, como saudade…

É. A vida lhes pregou uma peça. E hoje a imagem que eles veem, refletida no espelho, é a de uma unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados, e que vende serviços… Os médicos sofrem por saudade de uma imagem que não existe mais.

*Rubem Alves, filósofo, educador, psicanalista (1933-2014)

Fonte: O médico / Rubem Alves. – Campinas, SP: Papirus, 2002.

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