Filme: 12 Anos de Escravidão


Solomon Northup, que viveu no século 19, nos Estados Unidos, e Jó, personagem central do Livro que leva seu nome na Bíblia, têm muito em comum. Ambos foram arrancados de um estado de conforto e progresso e atirados numa espiral de acontecimentos dignos dos melodramas mais pungentes. Em suas jornadas, apenas não perderam a crença absoluta em dias melhores. Também viram a sorte mudar de forma repentina, como um prêmio tardio.

//Paulo Henrique de Souza

O flagelo impingido a Jó, cujo nome significa “voltado sempre para Deus”, carece de evidências históricas. Para alguns – inclusive, religiosos – é entendido como poema épico cujo tema central é a fé. Do dia para a noite, o personagem vê desaparecer sua imensa riqueza, sua família e sua saúde. De homem rico e próspero torna-se um solitário mendigo coberto de chagas dos pés à cabeça. Quando chega ao fundo do poço ainda tem fôlego para demonstrar inabalável confiança na existência e na bondade divinas. É o suficiente para ser recompensado pela sua integridade.

O caso de Northup tem a força dos relatos autobiográficos. Era um negro liberto que vivia na região de Nova Iorque ao lado da esposa e filhos. Letrado e culto, ganhava a vida como violinista, até o dia, em 1841, em que foi sequestrado, acorrentado e vendido como escravo a fazendeiros de Louisiana, no Sul norte-americano, poucos anos antes da Guerra Civil, que assolou o país e trouxe o fim da escravidão em todos os Estados Unidos.

Vítima da ganância e da indiferença, Solomon Northup registrou em diário as humilhações físicas e emocionais que vivenciou e testemunhou. Seu relato, publicado pela primeira vez, em 1853, e que, agora, se tornou leitura obrigatória nas escolas dos Estados Unidos, retira das descrições de fatos e sentimentos sua força. É essa mesma energia que ganha as telas em 12 Anos de Escravidão, filme homônimo, indicado a nove e vencedor de três Oscars (melhor filme, roteiro e atriz coadjuvante).

Nesta trajetória trágica, pontuada de personagens que perderam tudo, o fazendeiro Edwin Epps (Michael Fassbender) e a escrava Patsey (Lupita Nyongo) são exemplos extremos da miséria humana relatada por Northup (Chiwetel Ejiofor).

O primeiro é o proprietário que não consegue ver humanidade nos escravos que possui. Os trata como mercadorias e usa a Bíblia para justificar cada ato e castigo.

Escrava Patsey (Lupita Nyongo) é exemplo extremo da miséria humana relatada.

A outra é a mulher reduzida à condição de posse, sem direitos e sem perspectivas. Com a infância roubada e o corpo coberto de maus tratos, toca sua existência com passividade bovina, mas remoendo-se em revolta à beira de uma explosão. Entre os dois, uma relação de ódio e dominação que os reduz a caricaturas do que poderiam ter sido, condição da qual não há saída.

O diretor Steve McQueen, segundo negro a ser indicado pela Academia de Hollywood ao prêmio de melhor diretor, faz o espectador experimentar sensações diferentes ao longo de 133 minutos de projeção.

Há a tensão, ao se perceber como Solomon ingenuamente cai na armadilha montada, e o medo, durante a viagem no porão de um navio rumo às plantações de algodão. Depois, vem a indignação com as condições de trabalho e a revolta com os repetidos abusos praticados pelos senhores. Alívio só perto do fim, que, mesmo conhecido, não deixa de causar um frio de montanha russa no estômago antes do desfecho.

Ao fim, 12 Anos de Escravidão provoca reflexão sobre um dos momentos mais questionáveis da história recente da humanidade. As imagens secas, despidas de lirismo ou de compaixão, revelam a face mais cruel do gênero humano quando colocado em posição de poder sobre outros homens. O italiano Piers Paolo Pasolini fez o mesmo, em 1975, com o indigesto Saló, ou os 120 Dias de Sodoma, uma fábula provocativa e chocante sobre o mal, inspirado na obra do Marques de Sade.

Contudo, o índice de maldade é ainda pior, em 12 Anos de Escravidão. Nele, as mutilações, torturas e sevícias não são tão explícitas, quanto no clássico italiano, mas em sua sutileza fazem o espectador se contorcer como se a chibata arrepiasse sobre sua pele. Ou seja, desaparece o alegórico para dar lugar à realidade imposta a milhões de homens, mulheres e crianças durante séculos. O desconcertante é que não se trata de uma visão de um passado distante. Relatos e várias denúncias dão conta de que a escravidão ainda existe, mesmo que sob outras roupagens.

Em tempos obtusos, nos quais os valores se movem com tamanha facilidade e o dinheiro camufla tantos interesses, resta aos que caem nas arapucas contemporâneas ter a esperança de Jó e de Solomon Northup. Ficam à espera de que um lance da Justiça ou a ousadia de algum contestador do sistema lhes retirem de onde estão, rasgando o véu que os separam de dias melhores.

CHAGA HISTÓRICA E ATUAL

A revista National Geographic publicou uma reportagem sobre Os escravos do século XXI | Crédito: Jodi Cobb

A escravidão é tema conhecido dos brasileiros. Em 1888, ela foi abolida no país, mas, de uma forma ou de outra, ainda traz dor e revolta. O conceito dessa prática se baseia no entendimento de que um ser humano pode ter direitos de propriedade sobre outro.

Prática imposta pela força e pela violência, a escravidão permite que o senhor (dono ou comerciante) possa vender, dar ou trocar sua “mercadoria” tenha qualquer direito e objeção pessoal ou legal.

A escravidão está diretamente atrelada ao preconceito, por se basear na crença de superioridade de uma etnia ou grupo sobre outro. Também, existe a busca do ganho em escala, pois tornaria possíveis grandes lucros.

Este fenômeno existe ainda hoje, não é apenas história de cinema. Numa reportagem sobre os escravos do século 21, a revista National Geographic estimou que há mais pessoas vítimas deste tipo de abuso do que o total de homens, mulheres e crianças, que, durante quatro séculos, foram mercadoria de tráfico transatlântico.

Os números falam em 27 milhões de escravos distribuídos pelo mundo, inclusive no Brasil, onde há denúncias de trabalhadores proibidos de abandonar seus empregos e ficam à mercê de patrões por conta de dívidas impagáveis.

Pela lei, a escravidão é considerada extinta. Em 1981, a Mauritânia foi o último país a aboli-la, apesar de que há relatos de vestígios dessa prática na região. Mas, esse caso não é único. O fenômeno tem registros em diferentes países da Ásia, da América Latina ou da Europa do Leste.

Essa é a realidade de mulheres vítimas da exploração sexual, crianças obrigadas a jornadas insalubres ou mesmo homens adultos, que deixam suas famílias com promessas de trabalho digno. Para eles, os direitos são apenas ficção.

Fonte: Revista Medicina CFM ED. 4 JAN/ABR 2014 P. 90