Hélio Pellegrino
AUTOBIOGRAFIA[21] (fragmentos)
Deus escreve direito por linhas tortas – diz a sabedoria popular. Este sinuoso atributo, longe de ser um privilégio da Divindade, descreve e define, quase sempre, os enredados caminhos pelos quais um homem chega a construir o seu destino.
Sou médico um pouco por linhas tortas.[22] Meu avô foi médico, meu pai é médico, meu irmão é médico, pesquisador de renome internacional. Ao matricular-me na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte, identificava-me com o modelo familiar que tinha à mão. Em verdade, não me sentia fatalizado por esta escolha, que não chegava a exprimir meus mais profundos interesses. As disciplinas médicas, dentro do espírito das ciências físicas e naturais com que eram ensinadas, no meu tempo de estudante, me fascinavam menos do que as ciências do homem. O ser humano como pessoa – este sim – sempre me apaixonou. E, à base da orientação predominantemente organicista que informava o estudo da medicina há vinte anos, não se tinha muito que fazer, em termos científicos, com a pessoa humana. Esta, para tornar-se objeto de um conhecimento realmente respeitável, tinha que ser despojada, com a melhor das intenções, de sua transcendência e inesgotabilidade. A pessoa reduzia-se a um organismo e este era simplificado até à condição de um mecanismo cujo funcionamento se pudesse decifrar.
Lembro-me de uma aula de fisiologia nervosa, no segundo ano. O doente, com tabes dorsal, ao centro do anfiteatro escolar, era um velhinho miúdo, ex-marinheiro, vestido com o uniforme da Santa Casa, onde estava internado. Suas pernas, hipotônicas, atrofiadas, pendiam da mesa de exame como molambos inertes. Jamais me sairá da memória o antigo lobo-do-mar, exilado das vastidões marítimas, feito coisa, diante de nós. Suas andanças pelo mundo, seus amores em cada porto ficavam reduzidos, em termos de anamnese, a um contágio venéreo ocorrido décadas atrás. O velhinho, contrafeito, engrolava o seu depoimento, fustigado pelos gritos de – “fala mais alto!” – com que buscávamos saciar nosso zelo científico. De repente, o desastre. Sem controle esfincteriano, o velho urinou-se na roupa, em pleno centro do mundo. Vejo-o, pequenino, curvado para a frente, tentando esconder com as mãos a umidade ultrajante. Seu pudor, entretanto, nada tinha a ver com a ciência neurológica. Esta lavrara um tento de gala, e o sintoma foi saudado com ruidosa alegria, corno um goal decisivo na partida que ali se travava contra a sífilis nervosa.
O velho ficou esquecido como um atropelado na noite. A aula prosseguiu, brilhantemente ilustrada. Os reflexos e a sensibilidade cutânea do paciente foram pesquisados com maestria. Agulhas e martelos tocavam sua carne – esta carne revestida de infinita dignidade, que um dia ressurgirá na Hora do Juízo. Meu colega Elói Lima[23] percebeu juntamente comigo o acontecimento espantoso. “O marinheiro está chorando” – me disse. Fomos três a chorar.
Entre lágrimas e urina, nasceu-me o desejo de me dedicar à psiquiatria. O choro do velho, seu desamparo, sua figura engrouvinhada sobre a qual parecia ter-se abatido todo o inverno do mundo, tudo me surgiu de repente como o grande tema de meditação, a partir de cuja importância poderia eu, quem sabe, encontrar um caminho. A meus olhos, a tabes dorsal integrou-se numa pessoa humana visada como todo. Esta totalidade única e indissolúvel deveria poder tornar-se objeto de ciência. Já ouvira falar em Freud, nos abismos do inconsciente, na medicina psicossomática, que dava seus primeiros passos.
Absorvido por outros interesses, adiei por alguns anos o meu encontro com a ciência psiquiátrica. A literatura e depois a política, ao lado das donzelas em flor, eram minhas paixões exclusivas. Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, João Etienne Filho,[24] Francisco Iglesias,[25] Autran Dourado,[26] Marco Aurélio Martos,[27] Wilson Figueiredo,[28] entre tantos outros, eram os companheiros com quem fazia o aprendizado da vida. Éramos jovens, e a vida nos assustava e seduzia e nos púnhamos a viver por todos os poros do corpo e da alma, seduzidos e assustados.
Nessa medida, andei longe de ser um estudante exemplar. Lembro-me das arrancadas épicas que, em véspera de exame, Elói Lima e eu fazíamos, noite adentro. Varávamos a madrugada, febris, intoxicados de anatomia, de histologia, de doenças tropicais, de parasitologia, de clínica médica, de técnica operatória. Temperávamos, é claro, a vetusta aridez das disciplinas científicas com intervalos de conversa menos especializada e mais amena. Salvávamos o mundo, conspirávamos contra o governo ditatorial, telefonávamos muito, para gregos e troianos. Certa vez, convocamos Paulo Mendes Campos, cujo pai era nosso professor, para estudar fisiologia conosco. No texto sobre que suávamos a camisa, descobrimos a citação de um velho mestre renascentista, Fracastori, confessando seu pasmo diante do mistério dos batimentos cardíacos. Caímos em transe poético e, fiéis à poesia, deliberamos preservar nossa inocência diante do mistério do coração e de tudo mais. Fornos para o botequim de seu Nacif, no Abrigo Pernambuco, e lá, bebendo cerveja, vivemos um capítulo inteiro de fisiologia digestiva e, principalmente, renal.
Assim exercíamos nossa juventude, assim eu procurava os meus caminhos. É curioso como, por linhas aparentemente tortas, preparava, sem o saber, o chão em que iria fundar minha futura atividade de psicanalista. A psicanálise é, essencialmente, a ciência da liberdade humana. Tal como era feito há vinte anos atrás, o estudo da medicina se assentava em premissas organicistas, deterministas e mecanicistas. Sua fonte de inspiração vinha do século XIX, das ciências físicas do século XIX. Para que um fenômeno, dentro dessa linha de pensamento, pudesse ser compreendido, era necessária sua pulverização metódica para que, através dela, se isolassem e se identificassem os elementos simples, a partir de cuja irredutibilidade viria à luz a inteligência do fenômeno. Explico: suponhamos que um crítico de arte, diante de um quadro, se pusesse a raspar com a unha as várias tintas que o compõem e, através da análise química das amostras assim colhidas, chegasse ao veredicto sobre o valor estético da obra. Tal procedimento, além de insólito, seria inteiramente inadequado à natureza do conhecimento a ser obtido. Um quadro, ao nível de sua emergência estética, é um fenômeno unitário, global. Sua essência reside exatamente nessa totalidade e nessa globalidade. Se o quisermos compreender esteticamente a partir da análise química de suas tintas, estaremos desrespeitando a integridade e a objetividade do fenômeno que temos diante dos olhos. Isto quer dizer: estaremos fazendo péssima ciência estética, em nome de um redutivismo que, ao invés de nos dar a verdade, nos lança num pseudo-objetivismo estéril e – o que é mais grave – antitético.
Meu amor à literatura, à poesia, à política, fazendo de mim um estudante dispersivo e frequentemente relapso, salvou-me de qualquer forma de tentação do redutivismo, do mecanicismo e do organicismo enragés. A pessoa humana é uma totalidade transcendente cujo centro é a liberdade. Para construirmos uma ciência da pessoa, temos que começar por respeitá-la na sua essência originária. O ser humano é liberdade encarnada, é corpo e matéria integrados num todo por eles sustentado, mas que os transcende. Sem tela e sem tinta não há pintura nem quadro, mas a tela e a tinta não constituem, por si mesmas, a verdade do quadro, nem esta pode a elas ser reduzida.
Ao espírito das ciências físicas e naturais do século XIX não interessava nem a complexidade, nem a globalidade dos fenômenos. Por isto, a psiquiatria anterior à psicanálise limitava-se a descrever e a catalogar as manifestações psicopatológicas, buscando-lhes não o significado profundo, em termos de história humana, mas o substrato neurofisiológico que as pudesse explicar. Tratava-se, em suma, de explicar, não de compreender. Ora, a pessoa humana, como tal e enquanto tal, só pode ser compreendida, jamais explicada. Posso explicar, segundo a lei da gravidade, a queda de uma pedra do décimo andar de um edifício. A pedra está totalmente sujeita à lei da gravidade, estatuto de exterioridade que a determina por inteiro, de modo a permitir uma explicação cabal do fenômeno dentro do estrito princípio da causalidade mecânica. Se, entretanto, um melancólico se atira desse mesmo andar, o fato passa a pertencer a nível fenomênico inteiramente distinto. Posso explicar a queda de seu corpo pela mesma lei de gravitação, mas, nessa medida, estou a assimilá-lo à pedra, e meu juízo é apenas o de um físico interessado na queda dos corpos. Se quero interpretar, como psicólogo, o seu gesto, tenho que compreendê-lo, tenho que aceitá-lo em sua irredutível integridade. Será sempre um ato significativo, pleno de interioridade; resposta criadora, embora destrutiva, de uma liberdade pessoal acuada, frente a uma situação interna insuportável. Se me limito a dizer: “E um maníaco-depressivo e, por isto, suicidou-se”, faço do meu diagnóstico a causa explicativa do que aconteceu. O diagnóstico no caso faz as vezes da lei da gravidade, e o sentido do fenômeno me escapa por completo.
Se a pessoa humana é explicada, e não compreendida, destrói-se sua liberdade e, assim, degrada-se sua história existencial à categoria de subproduto sem maior interesse científico. Aí está a drástica limitação da psiquiatria intransigentemente organicista. Sem liberdade não há história, em sentido humano. O homem, como pessoa, é um permanente emergir da necessidade e da facticidade que o rodeiam, e esta emergência transcendente constitui o seu projeto como ser-no-mundo. O homem é o construtor de si mesmo, e a psiquiatria, quando não é o esforço científico para compreender a estrutura desta construção, em seus níveis reflexivos e pré-reflexivos, isto é, conscientes e inconscientes, deixa escapar de seu campo a pessoa humana. Neste caso, só lhe restam os ossos – os ossos do ofício.
Do ponto de vista curricular – e acentuo o caráter apenas curricular da minha crítica – foram-me oferecidos durante o curso médico os ossos do ofício de psiquiatra, não o ofício. Basta dizer que a cadeira de psiquiatria – pasmem os céus! – era ensinada durante seis meses, no sexto ano, e era tudo. Isto definia todo um feixe de premissas anacrônicas que então informavam o ensino médico. Ao mesmo tempo, confessava-se aí a posição desesperançada e derrotista de tais premissas frente ao problema das doenças mentais.
Nessa época, já era para mim motivo de espanto o fosso existente entre a filosofia do ensino médico, tal como nos era inculcada, e a prática da medicina pelos professores que a encarnavam e a transmitiam. Os professores eram pessoas cuidando de pessoas, e o encontro entre médico e paciente surgia a nossos olhos em toda a sua beleza. Lembro-me de meu pai, grande clínico e professor, alma desinteressada para quem o exercício da ciência médica sempre foi um generoso testemunho de bondade. Lembro-me do professor Alfredo Balena, cujos olhos muitas vezes se umedeciam ao ouvir a história do doente. Dele guardo recordação especial, pois foi quem me tratou quando, criança, padeci de grave episódio nefrítico. Até hoje sei o cheiro da brilhantina que usava, e posso sentir em meu peito o calor de sua orelha, auscultando-me. E me lembro de Hilton Rocha, oculista de renome mundial, e de Caio Benjamin Dias, estudioso e meticuloso, e de Lucas Machado, mineiro sábio, e de Baeta Viana, mestre na química orgânica e na alquimia da amizade, e de João Afonso Moreira, e de Mário Mendes Campos,[29] médico e poeta, e de Galba Velloso, inteligência acerada, e de Rivadávia Gusmão, e de Oswaldo Costa, paraninfo da turma, e de tantos outros.
No sexto ano, em crise existencial, querendo ganhar a vida para casar-me,[30] celebrei bodas indissolúveis com a psiquiatria, pela mão do meu amigo Fernando Velloso. No Raul Soares, manicômio do Estado,[31] fiz meu fecundo e agora metódico aprendizado psiquiátrico. Também lá, no entanto, me doía a vivência de que o melhor de nossos esforços humanos, para a compreensão dos doentes, escapava pelas largas malhas da mentalidade organicista imperante, sem alcançar status de ciência. Bondade, compaixão, abertura autêntica ao sofrimento do Outro, disposição para compreender e encontrar-se, tudo eram bons sentimentos que usávamos sem qualquer economia, mas sem método. Faltavam-nos as ferramentas de trabalho que nos permitissem transformar nossa própria pessoalidade num dado permanente e decisivo da situação terapêutica.
[21] Publicado originalmente na revista Manchette, em setembro de 1977.
[22] Formado em 8/12/1947
[23] Elói Heraldo Lima, médico. Permaneceu em Minas Gerais, foi amigo de Hélio por toda vida.
[24] João Etienne Filho, escritor, professor e jornalista. Responsável pela aproximação dos quatro mineiros.
[25] Francisos Iglesias, historiador.
[26] Autran Dourado, escritor.
[27] Marco Aurélio Mattos, jornalista e escritor.
[28] Wilson Figueiredo, poeta e jornalista.
[29] Pai de Paulo Mendes Campos.
[30] Casou-se com Maria Urbana Pentagna Guimarães em 11/12/1948.
[31] Trabalhou no manicômio Raul Soares até 1950.