Filme: Era uma vez eu, Verônica
O drama de uma residente em psiquiatria, que narra em primeira pessoa sua crise existencial e profissional. Esse é o tema do novo filme do diretor Marcelo Gomes, que foi buscar inspiração para “Era uma vez eu, Verônica” também na medicina.
//Thiago Brandão
Uma médica recém-formada inicia residência em psiquiatria em um hospital público de Recife (PE). Esse é o pano de fundo sobre o qual o diretor pernambucano Marcelo Gomes retrata a crise existencial e profissional de sua protagonista em “Era uma vez eu, Verônica”. Com muitas dúvidas sobre o presente e o futuro, Verônica (Hermila Guedes) percebe-se incapaz de envolver-se emocionalmente com o trabalho e com o amigo Gustavo (João Miguel), com quem mantém um relacionamento sexual inconstante – exibido na tela de modo naturalista.
A crise de Verônica se agrava porque seu pai, um bancário aposentado com quem ela divide o apartamento, fica doente. Em casa, diante do espelho, ela observa o surgimento dos primeiros fios de cabelo branco. No hospital, onde trabalha, ela precisa conter os problemas pessoais e administrar o desamparo profissional enquanto navega nos fragmentos de discurso de seus pacientes, que sofrem de doenças variadas – esquizofrenia, depressão, estresse nervoso. Em uma das cenas, um paciente insatisfeito lhe cospe no rosto.
Em entrevista ao CFM, Marcelo Gomes disse ter visitado hospitais públicos para compor a história. “Os atores visitaram, eu visitei [hospitais]. Falei com psiquiatras. Achei que os hospitais eram dez vezes menos duros. É impressionante. O dia a dia de um hospital público é impressionante e a vida dos profissionais é dura. Os médicos às vezes têm que atender inúmeros pacientes em um tempo exíguo. Quinze pacientes em quatro horas. Eles entram em crise profissional. Isso está exposto no filme”, disse.
Depois de realizar “Cinema, aspirinas e urubus” (2005), que recebeu mais de 50 prêmios nacionais e internacionais, e “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (2009), Gomes queria ter uma protagonista feminina. “Adoro cinema e filmes com personagens femininos; posso citar pelo menos dois que foram importantes para a construção de Verônica: ‘Mônica e o desejo’ [de Ingmar Bergman] e ‘Um bonde chamado desejo’ [de Elia Kazan]”, afirmou. O filme levou em 2012 seis prêmios no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e dois no Amazonas Film Festival – em ambos foi considerado o melhor longa-metragem.
O cineasta Marcelo Gomes, diretor de “Era uma vez eu, Verônica” falou à Medicina sobre o filme. Nesta entrevista, ele analisa a crise de sua personagem e a relação dela com seus pacientes //TB
Quem é a Verônica? O que é essa crise?
Tentei entender o que se passa na cabeça do jovem de hoje em dia. Convidei trinta jovens que tinham um perfil parecido com a da personagem que eu imaginava e fiz longas entrevistas com elas. Eram entrevistas que se pareciam com sessões de psicanálise, duravam duas, três horas. Elas conversavam comigo sobre afeto, amor, desamor, vida em sociedade, individualidade, profissão, relações afetivas, que são cada vez mais verticais ao invés de horizontais, e também sobre maturidade: aquele momento da vida em que você já não tem a desculpa de ser estudante, você tem que encarar a vida adulta. Como é amadurecer no Brasil contemporâneo, com urbanização caótica, violência? Então, a Verônica é todas essas mulheres que entrevistei. São mulheres que têm muito mais liberdade do que as mães tiveram. Acho que a crise é sartreana. [Jean-Paul] Sartre associava a angústia ao fato de que você tem muita liberdade e precisa decidir um só tipo de vida: “Quero ser engenheira, casar e ter três filhos”. E depois você fica imaginando como seriam as muitas outras opções que deixou para trás. É uma angústia sartreana. A Verônica é uma personagem sartreana, existencialista e tropicalista – tropicalista porque ela não mora em Estolcomo, mas em Recife, uma cidade luminosa.
Ela representa bem a geração a que pertence?
Ela representa a geração que eu quis construir a partir das conversas que tive. A crise feminina parece ser implosiva. Tenho a impressão de que a crise masculina é explosiva e de que a feminina é mais interior. Acho que a crise da Verônica é a de todos nós. Como vamos lidar com a perda, o amadurecimento, as relações afetivas, o futuro e o que é que queremos do nosso trabalho, todas essas questões. A Verônica é uma personagem comum, próxima de nós, cheia de dúvidas.
Você tem alguma crítica ao modo como ela se comporta ou a compreende completamente?
Ela é politicamente incorreta. Às vezes, é extremamente egoísta e tenta resolver seus problemas sem se preocupar com as repercussões. Isso é muito contemporâneo. O egoísmo é algo presente atualmente. O interessante é que ela assume esse egoísmo, não tenta escondê-lo. Eu não queria fazer um personagem politicamente correto. Queria fazer um filme que fosse como um diário íntimo que você abre e começa a ler. Por isso, ele foi feito em primeira pessoa e há cenas de intimidade muito grande. Essa é a vida íntima e verdadeira da Verônica. E Verônica em latim quer dizer a verdadeira imagem. Queria construir esse personagem e ir à intimidade dele. E na nossa intimidade temos nossas contradições e egoísmos, e não somos a pessoa perfeita que os outros projetam.
A Verônica é médica. A profissão que ela exerce desempenha um papel nessa crise?
Ela vem de uma estrutura social protegida, de classe média. Inicialmente, é um choque para ela se encontrar com aquele outro Brasil, dos hospitais em crise. Aos poucos, esse outro Brasil se torna também espelho dos problemas dela. A partir daí, ela se humaniza e humaniza o próprio trabalho. Não é sem razão que começa a cantar para os pacientes e apertar a sua mão. Assim, encontra um caminho pessoal para ser médica. Coloca a personalidade dentro da profissão e se sente assim mais madura, a ponto de ser escolhida pelos pacientes para atendê-los. Fiz da Verônica uma psiquiatra para que ela ouvisse problemas o dia inteiro e depois tivesse que pensar os próprios problemas. Aqueles personagens são um pouco uma caixa de ressonância.
Os pacientes da Verônica têm sérias dificuldades para articular seus problemas, o que acentua a crise e o isolamento em que eles e a Verônica parecem viver. Ser uma psiquiatra naquelas circunstâncias é um agravante?
Queríamos fazer um filme filosófico, focado primeiramente no ser humano. A Verônica sente um vazio e não sabe por quê, assim como seus pacientes. Mas estes não tiveram educação, apoio social, então, os problemas deles são maiores. É muito difícil esses personagens relatarem com discernimento seus problemas para o médico. O interessante é que a Verônica, como médica, tenta compreender todos aqueles pacientes, tudo o que eles sentem, e fazer um diagnóstico; ao mesmo tempo, os pacientes a refletem e ela é diagnosticada a partir do que ouve deles. Há uma paciente que conta uma história de depressão muito parecida com a da própria Verônica e ela se solidariza com essa paciente a ponto de levá-la em casa, em um bairro pobre de Recife. Então, existem problemas sociais graves, mas também há problemas existenciais e filosóficos em todos nós; eles independem de classe social.
Fonte: Revista Medicina CFM ED. 1 P. 68 / com adaptações