Livro: Dignidade!


A convite da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1998 por seu trabalho humanitário, escritores testemunham a atuação de médicos em missões da instituição em diferentes partes do mundo e relatam a experiência em gêneros literários diversos no livro “Dignidade!”

//Vevila Junqueira

O embate com a extrema indignidade, o abandono e a violação, sobretudo dos mais vulneráveis – mulheres e crianças –, é o caminho que percorrerá o leitor de “Dignidade!” (Leya, 2012, 268 páginas). Nove escritores especialmente convocados para descrever as circunstâncias em que é realizado o trabalho da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em áreas carentes de assistência médica em diferentes países do mundo, marcadas pela inexistência quase absoluta de instituições, expõem ao leitor situações que o colocam diante de um mundo à parte daquele em que a dignidade humana mínima é garantida. E ninguém está a salvo de cruzar a linha da dignidade nos relatos do livro, nem mesmo as equipes da MSF.

É desse limite que nunca deveria ser ultrapassado, dessa zona de desrespeito aos mais elementares preceitos de direitos humanos, que os relatos – capazes de ultrajar a consciência do leitor – ocorrem. Nesse time de autores, estão Mario Vargas Llosa, Eliane Brum, Paolo Giordano, Catherine Dunne, Alicia Gimenez Bartlett, James A. Levine, Esmahan Aykol, Tishani Doshi e Wilfried N’Sondé.

Os cenários são os mais diversos. Deles emergem os conflitos, as rivalidades étnicas, os deslocamentos frenéticos de populações e os genocídios da República Democrática do Congo; o mal de Chagas da Bolívia; e a precariedade da vida em favelas de Bangladesh, que sujeitam enormes contingentes ao calazar ou leishmaniose visceral. Emergem as feridas deixadas pelo regime do apartheid, somadas à ignorância e ao estigma que coexistem com as altas taxas de HIV e tuberculose e com as consequentes reações violentas e irracionais contra os contaminados na África do Sul; as condições subumanas dos imigrantes irregulares amontoados nos campos de detenção provisória da Grécia; a falta de perspectivas em saúde no Estado de Nagaland, na Índia; a luta contra o HIV no Maláui; e o desastre físico e social de mulheres que desenvolvem fístulas obstétricas no Burundi.

A obra, no entanto, não é documental ou jornalística – tampouco apresenta o ponto de vista estritamente médico. A perspectiva é sobretudo humana, artística e vivencial. Os relatos incluem os diversos atores da organização e das comunidades atendidas.

Os recursos utilizados pelos autores são muitos – narrativas ficcionais, relatos, descrições e composições diversas que revelam uma gama de transgressões à dignidade humana em pontos esquecidos e obscuros, ou nem tanto, do globo. Algumas técnicas empregadas podem confundir o leitor inadvertido, mas enriquecem os textos ao trazerem aspectos subjacentes à realidade e exporem uma conexão sutil dos escritores com as situações vividas.

Do mesmo modo, as expressões presentes nos textos – horror, infecção, violência, corrupção, matança, vítima, enfermiço, impotência, miséria, sujeira, desânimo – podem ser hostis ao leitor. Mas isso se dá simplesmente porque impõem uma verdade inconveniente. Elas podem soar inclusive como uma acusação de omissão. A mensagem, de qualquer modo, é voltada a expor o problema, torná-lo público e fazer ressoar vozes emudecidas pelo terror.

Percebe-se que, muito abatidos e combalidos, profissionais de saúde e comunidades não se curvam à desesperança. A obra apresenta comoventes traços de força e fé que marcam a conduta humana dos indivíduos . Mesmo aqueles que legitimamente poderiam desistir, não o fazem – e não o farão. Essa pungente verdade continua revisitando a memória do leitor após a término do livro, chamando à reflexão constante. Se o objetivo era criar uma fagulha de transformação individual, a obra cumpre sua missão.

Leia alguns trechos da obra:

“Nesse momento, compreendo profundamente o que necessitam aquelas pessoas: não é outra coisa senão se fazer ouvir. Querem contar suas particularidades, seus piores momentos, fazer-se merecedoras de uma individualidade mínima que seja. Nisso não se diferenciam do resto dos humanos, dos homens e das mulheres do mundo livre e opulento: que alguém as escute, não existe um desejo mais premente, fazer-se ouvir.”
Alícia Giménez Bartlett

“O problema número um do Congo são os estupros.”
Tharcisse

“Matam mais mulheres que o cólera, a febre amarela e a malária. Cada bando, facção, grupo rebelde, inclusive o Exército, onde encontra uma mulher procedente do inimigo, a estupra. Ou melhor, a estupram. Dois, cinco, dez, quantos sejam. Aqui, o sexo nada tem a ver com o prazer, só com o ódio. É uma maneira de humilhar e desmoralizar o adversário.”
Mario Vargas Llosa

“Ao desembarcar em Cochabamba, Maria descobriu que a cidade era como ela tinha imaginado. Entre ruas largas e olhos indiferentes, Cristina não era apenas a sua bússola, mas toda a sua geografia. Era sua aldeia e também os morros, as espigas de milho e o rio onde ela se banhava aos domingos. Cristina era o mundo que sabia dela, Maria. E foi assim que à noite elas decidiram dormir na mesma cama para não se perderem uma da outra e também de si mesmas, enquanto esperavam a cirurgia que emprestaria um compasso regular ao seu coração.”
Eliane Brum (veja entrevista abaixo)

A jornalista e escritora brasileira Eliane Brum é uma das autoras de “Dignidade!”. Nesta entrevista, ela fala sobre a experiência de contato com vítimas do mal de Chagas na Bolívia
//VJ

Você disse que a princípio planejava escrever um conto de terror sobre o mal de Chagas na região de Narciso Campero, mas que, ao conhecer os percursos da vida daquelas pessoas, a história tornou-se excessivamente real. Como foi o resgate das histórias de Sonia, Maria, Cristina e Nora?

Permaneci na região de Narciso Campero por uma semana. A organização Médicos Sem Fronteiras não permite, por questões de segurança, que jornalistas fiquem mais tempo. A princípio, eu pensei em escrever uma história de ficção, a partir da realidade. Mas, ao começar a conversar com as pessoas, em suas casas, descobri que transformá-las em personagens de uma ficção seria uma espécie de traição a elas. As chamadas doenças negligenciadas, como Chagas, são as doenças da porção invisível do mundo, que atingem as populações mais pobres, aqueles que não têm dinheiro para pagar por tratamento e, no caso dessa população boliviana, nem mesmo por casas seguras. Por serem doenças da pobreza, a indústria farmacêutica não tem interesse em desenvolver nem medicamentos nem vacinas, razão pela qual a doença até hoje é tratada com um medicamento de 1960, muito agressivo e que pode provocar efeitos colaterais que inviabilizam seu uso em algumas pessoas, como a Norita.

Quanto tempo ficou no povoado ouvindo-as e como foi a entrega delas para falar sobre suas experiências?

Passei uma semana vendo todos os dias a família Cotrina Veizaga – na qual os pais e todos os filhos têm Chagas – e também entrevistando Cristina e Maria, o outro eixo da minha reportagem, que são duas mulheres que fazem uma viagem à cidade grande em busca de um marca-passo para salvar suas vidas e, para fazer isso, precisam atravessar mundos. Conversei com todos separadamente e em conjunto, longamente. Percebi que aquelas pessoas nunca tinham sido ouvidas sobre o que é viver com Chagas, o que é conviver com a vinchuca (palavra em quéchua para o inseto “barbeiro”). E para elas era muito importante poder falar, contar sua história para o mundo e romper a barreira da invisibilidade. Por isso, escolhi fazer uma reportagem. Porque essas pessoas existem, têm rosto, nome e sobrenome e vivem uma situação de horror inimaginável, vítimas de uma doença que poderia ser erradicada se alguém se importasse com elas.

Os relatos e as descrições sobre a vinchuca acabaram trazendo uma atmosfera de bastante terror. Sentimos uma espécie de demonização do bicho, como por exemplo, quando você diz o “farfalhar agourento das asas”. Como se deu a criação desse cenário em que você descreve o pavor e a série de recursos inúteis que os camponeses usam para tentar conter o inseto?

Sim, é uma história de terror, mas de terror real. Aquele tipo de terror que só a realidade é capaz de produzir. Eu não demonizo a vinchuca (o barbeiro, o vetor). Eu capto e transporto para a escrita o lugar que ela ocupa na vida daquelas pessoas. Quando chamo a vinchuca de “vampiro”, não é uma graça, uma brincadeira, mas uma escolha que dá conta da forma como ela é vista por aquelas comunidades. A vinchuca para eles não é um inseto, mas uma entidade onipresente que assinala as suas vidas, que está lá, em todos os momentos, e estará também na sua morte. Que faz com que as mulheres hoje gritem mais no parto por medo de seus bebês serem soropositivos do que pelas dores, que está lá na sua morte, como causadora desta. Que está lá quando fazem amor, quando se casam, quando brincam, quando choram. Até a chegada da MSF, parte da comunidade acreditava que as pessoas morriam porque ficavam enfraquecidas de tanto a vinchuca sugar seu sangue. Só com a MSF muitos souberam que a morte súbita, que costumava ser a da maioria, era causada pela doença de Chagas – e esta era causada por um protozoário transmitido pelas fezes da vinchuca. As cenas que as pessoas descrevem – como as paredes pintadas com seu sangue ao tentar esmagar os insetos; ou a fogueira e o posterior “enterro” das vinchucas no lado de fora da casa, na tentativa de acabar com elas (não com aquelas, mas com todas); ou a morte de dois irmãos de Cristina, ainda crianças, porque o número de insetos era tão numeroso que asfixiaram os meninos ao entrar pela sua boca – são cenas reais.

Podemos concluir que você encontrou elementos “reais” de terror naquelas histórias?

É um terror, sim. Um terror real. Um terror invisível para a porção do mundo que tem o dever moral e humano de enxergar essas pessoas. Como todos nós sabemos, a realidade é mais absurda que qualquer ficção. Nesse caso, o terror real é maior do que um ficcionista seria capaz de criar, por temer soar inverossímil. Só que esses vampiros não movimentam milhões de dólares na indústria de entretenimento – seria necessário menos que isso, talvez, para que os vampiros reais pudessem ser destruídos. Por isso, eu escolhi colocar o título da minha reportagem de “Os vampiros da realidade só matam pobres”.

 

Fonte: Revista Medicina CFM ED. 1 P. 72