Atenção e atenção!


Foto: Alan McFadyen

 

Péricles Brandão*

Como tanta riqueza veio pousar em tanta miséria? – pergunta o fragmento 29 do Quinto Evangelho. Por que às vezes o que está na luz move-se de modo tão cruel?

O martim-pescador não faz perguntas, já não lembra que depois do Dilúvio voou tão perto do sol que ficou com o coração em chamas e o dorso da cor do céu.

Ele não consegue ver, em seu veloz voo vertical, nem a própria beleza refletida na límpida pele da água. Não percebe quanto de ouro solar, quanto de turquesa celestial há em seu corpo, quanto de vestígios do Alto.

O peixe prateado ofusca seu olhar faminto. A realidade circundante é um campo de batalha. Seus olhos fixam um único ponto. Todo o seu ser é só uma flecha lançada contra o alvo.
Toda a sua atenção está concentrada na luta pela sobrevivência. A luta pela sobrevivência é o sentido de sua presença no mundo.

No entanto, a prosoché, palavra alada na língua de Hipócrates de Cós, não é atenção concentrada, é atenção plena.

Essa é a atenção de Martin, pescador de sonho, alimento do espírito: a lança de seu olhar é pura luz, não captura apenas o ponto, captura o rio e seu ritmo e no próprio íntimo o mar, captura peixe prateado, reflexo, incessante fluir, que se faz no fundo quietude e silêncio.

Dentro do corpo, fora do corpo, no rio calmo, no rio revolto, na doença e na saúde, a vida está em conflito com a vida e, no entanto, Martin sabe que ela é sempre um bem absoluto.

Seu olhar jamais será predatório: não vê presa, vê – para ser preservada, amada, zelada – beleza. E se mantém  cuidadosamente à caça do que nutre e cura toda a Terra: o equilíbrio cooperativo entre opostos, a tensão harmoniosa dos contrários.

Sua perspectiva é a da transobrevivência: quer restituir a cada molécula, a cada célula, a cada ser o fogo vivo de sua presença na história do universo.

Acima das sutis ondulações do rio do Tempo, que foge rumo ao Mar Infinito, também tem asas a alma de Martin, mas, deixando-se levar pelas correntes de ar, amiúde em círculos plana.

Quase à flor do líquido espelho, essa ave contempla o que permaneceu de sol em seu peito, o que restou de firmamento em seu dorso, vigia o esplendor da vida ao redor, dá meia-volta e voa na direção do Alto, sem alvo, na direção da verdade do Ser em si mesma.

Isso é prosoché, arte e ciência das evidências paradoxais: ser atento ao ponto de notar que criatura alguma nunca estará livre e saciada até sentir-se parte de toda a Criação.

*Péricles Brandão: membro da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina