A Oferenda das Flores Não Colhidas


Péricles Brandão*

É certo que os jardins ingleses – com sua assimetria planejada, seus canteiros sem rigidez geométrica, seus extensos gramados ondulados, seus caminhos sinuosos, suas bordaduras irregulares – sugerem a quem colhe flores a sensação de liberdade no meio de uma paisagem próxima do que é natural e selvagem.

E penso até que o poeta Alfred Tennyson tinha de fato a intenção de sentir mais perto de si a Natureza, ao arrancar da fenda do muro a flor com raiz e tudo para longamente contemplá-la perguntando-se sobre a raiz mesma do mistério da vida, da existência humana, sobre sua procedência divina. Mas é inútil toda pretensão – explicitada por outro inglês, o filósofo Francis Bacon – de extrair confissões da Natureza sob tortura, de extrair assim seus testemunhos, atitude que condena qualquer pensar a virar mera especulação, abstração.

Moldado no concreto, o Buda no pequeno jardim da frente da casa de Carmem parece renovar sereno a memória do contentamento diante da oferenda apresentada por um dos seus discípulos há milhares de anos: a oferenda das flores não colhidas, não separadas do Todo, oferenda das flores onde estão, em seus ciclos e suas conexões, vivas, em seu balé rodeado de luzes e sombras. O que constitui aqui afinal a oferenda é o próprio dom de cuidar através de sua obra, o vegetal em seu apogeu.

Não é senão por seu dom de cuidar que Carmem tem acesso aos mais surpreendentes segredos da Natureza sobre ser plenamente no mundo. Se a Carmen de Mérimée vivia perigosamente à cata de aventuras, esta aqui vive pacientemente à cata de bem-aventurança. E é de bem-aventurança que falam as plantas espalhadas pela casa quando aparentemente apenas lhes arranca suspiros o vento. Cada uma contando sua própria busca por bem-aventurança, dialogam entre si papoulas e madressilvas, buganvílias e roseiras, antúrios e suculentas, orquídeas e avencas, o pé de limão siciliano e o de quincã, o pé de romã e o de jabuticaba.

São incontáveis os tons de verde, mas é uma só verdade que cantam, uma só melodia: – Não deixes teu olhar se habituar a coisa alguma, não retenhas com tédio cena alguma nas retinas, não permitas que nada se torne rotina; que seja para teu olhar andarilho nossa calma um provisório lar, que aprenda teu olhar menos a habitar nossa alma do que, para seguir viagem, a descansar um pouco, apenas repousar. Assim – como vigorosa paz – nos é revelada a vida pela seiva que, na quietude, flui sem cessar.

No coração da casa, no jardim de inverno, deparamo-nos com um arbusto que ora evoca o que há de mais exótico, ora o que há de mais íntimo. Não importa como se queira chamá-lo – de qualquer maneira, escorre, prosaica, a poesia. Talvez sininho-japonês. Conta um poeta japonês do século XVII, Matsuo Bashô, como, certa vez, envolto por uma nuvem de flores na primavera, não sabia de qual dos templos ao redor provinha o som de um sino. Ouvindo a música silenciosa dessa flor que lembra um sino japonês, podemos imaginar que todo espaço é templo, todo tempo.
Mas talvez se prefira chamar esse arbusto de lanterna-chinesa. Conta um poeta chinês do século XI, Ouyang Xiu, como, certo ano, as mesmas lanternas do mercado de flores deixaram de ser brilhantes como o dia, pois não havia mais para quem comprar um buquê. Reparando o fogo sutil dessa flor que lembra uma lanterna chinesa, podemos perceber como deixá-la onde está interiormente nos ilumina.

Esculpido num velho tronco de árvore do sertão, São Francisco recebe de braços abertos, na entrada da casa, todo convidado, como se repetisse as palavras que, passeando pelos campos da Úmbria, dizia para cada planta: – Fala-me de Deus! Se as plantas no campo respondiam florindo, aqui responde Carmem praticando com fervorosa ternura sua arte da jardinagem e da hospitalidade. Quando, já noite, sentamos todos em torno da mesa posta sob o caramanchão de que pendem cachos de uvas, sente-se então que há tanto amor no ar que a via Láctea, através dos altos ramos entrelaçados das videiras, é como se fosse um altar-mor.

 

*Péricles Brandão: membro da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina