O exercício da medicina na sociedade do desempenho


// José Eduardo de Siqueira*

Vivemos em tempo de Olimpíadas e a cobrança do mais perfeito desempenho feita pela sociedade e autoimpostas pelos próprios atletas atinge níveis surreais, para não dizer desumanos. Esperava-se em 2021 melhor performance de Simone Biles, ginasta norte-americana, ganhadora de 4 medalhas de ouro na versão anterior dos jogos. O mundo todo se surpreendeu ao assistir aquele frágil ser humano afirmar que desistia de participar das demais provas e declarar com a voz embargada: ‘Preciso me concentrar no meu bem-estar, há vida além da ginástica’.

As palavras de Simone nos dá conta da cruel realidade que vivemos e quão acertados são os ensinamentos do filósofo teuto-coreano Byung-Chul Han em sua obra ‘Sociedade do Cansaço’ 1 . Nela, o autor argumenta que a sociedade disciplinar descrita por Foucault nas obras ‘Microfísica do Poder’ 2 e ‘Vigiar e Punir’3 , já não mais representa o modelo de convivência social na hipermodernidade. Segundo ele, a cobrança exercida ‘de fora para dentro ’do modelo foucaultiano, foi substituída pela autocobrança. Para atender as expectativas de alto desempenho exigido pela sociedade, as pessoas passaram a competir consigo mesmas. Segundo Han, as pessoas não mais figuram como ‘sujeitos de obediência’ descrito por Foucault, mas como ‘sujeitos de desempenho’.

Todos aqueles que militam como docentes na área do ensino médico já se confrontaram com situações de extremo sofrimento e até mesmo de estados depressivos de estudantes que por não terem obtido notas satisfatórias em provas parciais de alguma disciplina, foram obrigados a realizar o exame final para que pudessem ser promovidos para o período seguinte do curso. Reconhecendo-se inferiores aos demais colegas de turma, passaram a fazer uso de drogas antidepressivas ou outros tipos de estimulantes, as ‘smart pills’ 4 , substâncias que prometem melhorar as funções cognitivas humanas.

Não se pretende discutir nesse breve ensaio, os benefícios à saúde metal humana proporcionado por novas drogas que resultaram de pesquisas clínicas conduzidas com rigor científico e passaram a figurar no portfólio do mais elevado nível da medicina baseada em evidências. Não, o que se discute é sobre a pertinência do uso de fármacos que prometem o imponderável ‘melhoramento’ de habilidades naturais, próprias da condição humana.

O depoimento de Simone nos obriga a refletir sobre o mantra olímpico ‘faster, stronger and fast’ e nos impõe a complexa questão: ‘A biologia humana deve/pode ser passível de manipulação em busca de atingir o estado de ‘alta performance’, desconsiderando o conceito de saúde estabelecido pela OMS há mais de 70 anos ?’

Seria ocioso discutir a utilização do ‘doping’ nos esportes olímpicos, basta para tanto considerar a atual punição imposta pelo Comitê Olímpico à Russia, o que obrigou os atletas daquele país a se apresentarem sob o manto de outra bandeira que não a de seu país de origem.

Mesmo que futuras pesquisas consigam produzir drogas ou ‘devices’ capazes de melhorar o desempenho humano, como prometem os defensores do transhumanismo, persistirá a questão ética relativa ao fato que nos será imposta sobre a moralidade de aceitarmos conviver com dois tipos de seres humanos, os artificialmente ‘melhorados’ e os ‘normais’ representantes atuais da família homo sapiens sapiens. A história recente da humanidade mostrou as consequências desastrosas da institucionalização de regimes políticos totalitários, que utilizando-se de práticas eugênicas por meio do descarte dos ‘menos dotados’ e selecionando os ‘melhores dotados’ imaginavam construir a ‘sociedade perfeita’. Será razoável imaginar que no curso do século XXI, marcado por uma desigualdade social escandalosa, sejamos tentados a reeditar a tese da pureza racial e convivermos com duas categorias de seres humanos?

Retornando ao ambiente acadêmico, considerando sobretudo, os cursos da área da saúde, vários autores têm relatado o uso de drogas que comprovadamente podem induzir à dependência física e psíquica e são consumidas por estudantes, como é o caso do cloridrato de metilfenidato, vendido com o nome comercial de Ritalina. Segundo Affonso e cols 5 , em pesquisa realizada na Faculdade Anhanguera de Brasília ( FAB ), 57% dos estudantes de biomedicina, enfermagem farmácia e nutrição declararam ter usado com regularidade metilfenidato para melhorar seus desempenhos acadêmicos e o fizeram sem orientação médica, valendo-se tão somente de sugestões de amigos ou em busca de informações oriundas de sites da internet.

No caso dos estudantes de medicina existem outros fatores agravantes, como por exemplo, a necessidade de dedicação integral em um curso de graduação que, embora contando com carga horária total em média de 10.000 horas, não pode ser considerado terminativo, já que necessitarão dar continuidade a seus estudos em programas de residência médica com duração nunca inferior a três anos para obterem o certificado de especialista em alguma área mais restrita do conhecimento médico. Igualmente dramático é o fato de que ao final desse enorme percurso, eles ainda nutram a expectativa de que exercerão a medicina como arte e poderão desfrutar de uma vida profissional digna.

O Portal PEBMED publicou em 2020,matéria sobre o Dia da Saúde Mental, comemorado no dia 10 de Outubro, onde relata que a depressão e o Síndrome de Burnout constituem os tipos mais recorrentes de transtornos mentais, com maior incidência entre os médicos. O Portal faz referência à pesquisa The Truth About Doctors 6 , realizada pela agência McCann Health em 2017 que revelou que a frustração é uma das palavras mais relacionadas à prática médica ao redor do mundo e que na percepção dos egressos do curso médico, a realidade da profissão mostrou-se muito aquém das expectativas que os motivaram a estudar medicina que estiveram presentes nos primeiros anos do curso. Ao final dessa longa jornada, as variáveis que mais contribuem para a frustração dos médicos brasileiros podem ser assim resumidas: a) o exercício da medicina na esfera de saúde pública, caracteriza-se por exigir o máximo empenho do profissional em atender o maior número possível de pacientes, não importando a qualidade, pois o que realmente interessa ao gestor público é a quantidade de atendimentos prestados como elemento de comprovação da eficiência dos serviços prestados à população; b) os planos de saúde privados seguem roteiro similar, valores pífios destinados aos honorários por consultas combinado com a obrigação do médico em prestar atendimento ao maior número de pessoas com o menor número de pedidos de exames para complementação diagnóstica.

Das primeiras lições deixadas pelo aforismo hipocrático ‘onde houver amor pela arte da medicina, também haverá amor pela humanidade’ nada resta senão a obrigação do desempenho em atender mais e mais pessoas, sem que se possa praticar a medicina como arte para acolher seres humanos biográficos que sofrem nas esferas biológicas, psicossociais e espirituais. Segundo a pesquisa da McCann, o sentimento de frustração com a profissão tem efeitos negativos na qualidade de vida dos médicos. Ao todo, 66% dos entrevistados relataram problemas de sono. No Brasil, foram 72%.

Considerando atentamente o depoimento da jovem Simone Biles e os ensinamentos do filósofo Byung-Chul Han é chegada a hora de repensarmos o modelo de sociedade que desejamos legar para nossos filhos, aquele que leve em conta a preservação da saúde física e mental de todos os membros da família humana ou insistir no atual modelo obcecado pelo desempenho a qualquer custo ? Vida saudável ou autofágica?

 

* José Eduardo de Siqueira é membro da Comissão de Humanidades do CFM.

 

Referências:

1. HAN, Byung-Chul A sociedade do cansaço. Petrópolis: Editora Vozes,2017

2. FOUCAULT, Michel Microfísica do Poder. 8ed.Rio de Janeiro: Graal,1989

3. ———————— Vigiar e Punir. Petrópolis. Editora Vozes,1987

4. SMITH, Elizabeth & FARAH, Martha. Are Prescription Stimulants ‘Smart Pills’? The Epidemiology and Cognitive Neuroscience of Prescription Stimulant use by Normal Healthy Individuals. Psychological Bulletin 137 (5) 717-41,2014

5. AFFONSO, Raphael da Silva e cols. O uso indiscriminado do Cloridrato de Metilfenidato como estimulante por estudantes da área da saúde da Faculdade Anhanguera de Brasília ( FAB ).Infarma Ciências Farmacêuticas, vol 28(3); 166-172,2016

6. McCann Health. The Truth About Doctors. May,16, 2017