A Terra, a Primavera Fraturada e a Fraternura


// Péricles Brandão*

Aprendemos nas aulas de geografia do colégio que equinócio é interseção do círculo da eclíptica com o círculo do equador celeste. Mas as definições técnicas nunca dizem o essencial. Uma frase atribuída a Freud lembra: onde quer que se vá, os poetas chegaram ali antes. O certo é que poesia, a poiesis, algo anterior à simples arte de fazer versos, a Vida em seu incessante brotar, é o acontecimento inaugural da história dos valores. A Vida, uma só em sua diversidade multicor, precede as teorizações, as especulações, as fragmentações. E a grande festa da Vida é a que começa com o equinócio, é a primavera, palavra que quer dizer primeira verdade.

Mulher com braçada de flores, 1963 – Di Cavalcanti

As palavras dos grandes poetas são apenas um chamamento ao silêncio, condição sem a qual a criança interior não escuta o florescer dessa verdade primordial. Não erra nunca a criança no claro-escuro do sótão de Manoel de Barros – porque, ignorando a sintaxe, aprende com os bandos de aves na primavera a juntar em frases aladas suas palavras, a juntar em parábolas suas frases. Não se perde nunca a criança na vastidão da savana em que se indaga Mia Couto – porque, livre de certezas, corre confiando no que ensinam as árvores e os arbustos sobre os caminhos da primavera. Até mesmo a Ciência – para alcançar a verdade original da Vida – precisou buscar o reencantamento do mundo. A Natureza é a partitura de uma melodia a ser lida e cantada em coro, sussurraria com inocência de criança o astrofísico Hubert Reeves. A Natureza expressa-se através de charadas e fábulas e metáforas, gritaria o antropólogo Gregory Bateson com deslumbramento de criança.

O meu receio é que diante da vertiginosa virtualização da comunicação humana, num mundo cada vez mais mecanizado, essa criança que habita cada um de nós esteja ficando completamente sem tempo, quer dizer, sem espaço para sequer sonhar com o real, sequer sonhar com a chegada da primavera, com o retorno da primeira verdade.

Falo de um mundo em que no máximo a primavera é identificada distraidamente no calendário temático e admirada sem ser tocada, em relances, imóvel e sem calor, submersa no cristal líquido, estampada como papel de parede. Eu sei que muitos perguntarão: mas não é um universo mágico o que se descortina a um simples toque do dedo na tecla, do dedo diretamente na tela? Não é como uma fascinante linha de montagem oferecendo tudo padronizado, etiquetado, pronto para o consumo: otimismo em gotas, positividade em drágeas, manuais de ética e estética e etiqueta, ideias perfeitas sobre como salvar uma alma ou um país ou o planeta, receitas infalíveis para alcançar sucesso e fortuna, e notícias, muitas notícias, e cotações e gráficos e diagramas e estatísticas que sobretudo trazem ao eterno receptor de mensagens a convicção de estar conectado ao mundo?

Mas é outra a rede pela qual a primavera nos conecta ao mundo: é a teia da vida. Heráclito, filósofo e poeta, falava que a Natureza ama ocultar-se. Somente na aparência sua linguagem é a de polemos, do conflito, da luta, da guerra, da força que divide, desagrega. Néctar é a senha da vida que não quer estar só em si mesma, presa em sua casca, em sua casa, é doçura oferecida até à visita mais esquisita ou mais imprevista, autodoação pela qual, numa louca matemática, se multiplica. A verdade fundamental da Vida é apelo ao encontro fecundo entre os contrários: polinização, não mera polemizacão, esse arremedo de diálogo, pois dialogicidade pressupõe escuta respeitosa, discernimento e argumentação criteriosa. Mais do que em polemos, nós lemos no pólen a essência do que somos: mais que pó, lento poema, sem o qual não há fruto, não há futuro. Há uma radicalização na Natureza que é capacidade de ver com clareza na escuridão mais profunda, radicalização que alimenta. Que ela nutra o nosso espírito e faça florescer em nós uma espontânea resistência ao radicalismo inventado pelo homem, aquele dos fundamentalismos religiosos e dos sectarismos políticos, radicalismo que é cegueira no meio da claridade, ou pior, cegueira que se proclama capacidade e nega a claridade como realidade, cegueira que mata.

Na língua da civilização que criou a filosofia, verdade é aletheia, não-esquecimento, desocultamento, desvelamento. Eis aqui a verdade originária de que fala a primavera, a realidade enquanto linguagem. Quando parece que se esconde, é como uma deusa generosa que propõe enigmas, atiça a mente e os sentidos, atiça a busca do sentido, provoca a criança que fomos, a criança que somos, escondida entre nossos medos e receios e mal-entendidos e desencontros. A primavera é brincadeira iniciática de esconde-esconde. Frequentemente demora a aparecer, pois seus passos não são de autômato, seus ritmos não são de engrenagem, não são de relógio. Mas sobretudo quer ser descoberta nos detalhes e nos convoca a uma aventura que, a depender de nossa atenção e coragem, terminará em bem-aventurança.

 

Fonte: olhares.sapo.pt

Para decifrar seus enigmas, é preciso abandonar a sala de bate-papo interminável, que não tem janela para nenhum quintal, que não tem ar, que não tem ar recendendo a terra molhada. É preciso retornar do exílio de silício e ilusão, em que a suposta afirmação asséptica da vida e da própria identidade perante o outro e o mundo é tácita confissão de ausência da Terra, da ausência dos sentidos perante seus ciclos, cores, texturas, sabores, aromas, sons, da ausência de sentido. É preciso ver refletindo-se até na poça deixada pelo inverno o suficiente de azul para entender a razão pela qual a palavra céu no hebraico só existe no plural, a razão pela qual é fatal para a alma o modo singularíssimo como o brilho do céu no cristal líquido da tela retém o olhar. É preciso redescobrir a forma pura como uma criança, de travessura em travessura, de travessia em travessia, suja as mãos no chão de um jardim ainda úmido da chuva. É preciso lavrar a terra a pá e estrume e pelo gume da palavra dada, lavrar na Paz a palavra até não ver ao redor herdade, só lugar para a vida compartilhada, o que flori pleno de verdade: o verde-jade, o verde-broto, o verde-mar, o verde-água, o verde-folha e muitos, incontáveis outros. Não se trata de lavrar a terra a pá apenas como quem planta numa horta coentro ou endro, mas como quem gira uma chave invisível e abre uma porta para dentro. Um dos enigmas da primavera é que não acontece apenas fora, mas em cada uma de nossas células, em nossa alma.

Dentro de nós ou fora de nós, a primavera é uma maneira como a vida prova perante si própria que não envelhece nunca: sua juventude eterna está na força com que desafia a morte e se renova através de novas possibilidades de ritmos e tons e formas. Eu sei: o adulto quase sempre só percebe a presença de um pé de jambo na própria rua quando acha que chegou a hora de varrer suas flores mortas. Mas uma calçada assim atapetada de púrpura pode ser palco de uma odisseia. Pode marcar o momento em que, retornando de nossos giros pelo mundo, descobrimos com olhar de infância como somos: não ilhas de um arquipélago, mas unos uns com os outros, unos com o cosmos. Para a criança que procura no mormaço o refúgio da sombra de um pé de jambo, como procurávamos no pátio da escola, é possível ouvir  advertências que nos guiam em nossas odisseias. Os galhos sussurram ao vento: “a resistência está na flexibilidade, rigidez é fraqueza”. Por trás do respirar intenso das folhas, é possível ouvir com que alegria discreta dizem as pétalas: “o código da vida está na polinização sem fim, convite à solidariedade mútua”, quer dizer, polemização sem fim é estéril, furta-nos o futuro, o fruto a ser colhido junto. Encostando o ouvido no tronco, dá para escutar o doce discurso, sem radicalismo, da seiva: “minha radicalização leva à abertura, sem a qual não existiria acolhida a quem necessita de sombra.”

Primavera – para várias tradições sapienciais – é a infância que retorna, mas não apenas na memória. Essa estação é a chance de outro vigoroso começo. É isso que nos traz à lembrança o equinócio. Nele, são iguais em duração o dia e a noite no hemisfério sul dos poetas Manoel de Barros e Mia Couto e no hemisfério norte dos cientistas Hubert Reeves e Gregory Bateson, estão num encantador equilíbrio sol e lua, animus e anima. A partir desse momento, podemos fazer a escolha de deixar florescer em nós a primavera e sua verdade primordial. É isso que diz o equinócio: não estamos sós no sonho estranho de um outro cosmos em que somos o que somos, seres capazes de carinho e cuidado, seres capazes de encontro. Diz que, na época da reprodução em série, do processamento automático de informações e imagens, na época da recepção compulsiva, da indiferente retransmissão, da repetição gregária, do passivo engajamento, do anônimo pertencimento, a vocação e a delícia do ser consistem ainda em originalmente criar, criar com paixão, repleto de compaixão, de paixão de con-viver.

Entre o vigiado pensamento duplo de 1984 e a manipulada felicidade artificial do Admirável Mundo Novo, o que diz o equinócio da primavera de 2019 aqui ao sul do equador, aqui na periferia da periferia da periferia da via Láctea, é que nossa existência não é um negócio, não é um réquiem, é uma odisseia. Sua essência é o ethos pelo qual toma consciência de que o universo todo é seu lar. Seu alicerce é o que Francisco de Assis chamou de admirável comércio, ininterrupta troca amorosa de mensagens místicas e energias espirituais entre a Terra e o Céu. Seu florescer é ofício e ócio, é prece e carícia, é sacrifício e graça, é prosa e poesia, é fervorosa ânsia no coração, insubmissa esperança de que para todas as criaturas da Terra tenham dia e noite, luz e escuridão a mesma justa duração.

Primavera fraturada foi o nome provisório de uma obra póstuma do historiador Eric Hobsbawm, profeta da era dos extremos. Fraturada, a humanidade parece à procura de alguma cura absurda num futuro inventado, numa vida transformada em registro histórico póstumo – e provisório. Eu sonho com a Vida como verdade eterna, como verdade primeira, sonho com a volta da humanidade a si mesma, à sua relação íntima com a Terra, à fraternura, numa nova primavera.

 

*Péricles Brandão: membro da Comissão de Humanidades Médicas do CFM