Um tal doutor João


//Eugênio Marcos Andrade Goulart*

João Guimarães Rosa abandonou a medicina após breves anos de profissão, mas ela jamais se separou dele. Ficou entremeada em seus textos, sempre correndo em sua veia artística. Desde suas primeiras experiências com contos e estrofes, até nos seus últimos escritos, pouco antes de morrer prematuramente, aos 59 anos, com muita constância o médico Rosa sobreviveu na obra do escritor Rosa.

De sua epiderme literária, ou seja, na forma como escolhia e agrupava as palavras, à sua carótida poética, ou seja, suas essências e suas crenças, o viés do olhar médico ficou incrustado no cerne da mensagem que deixou para a posteridade.

Seu pendor pelo jogo com as palavras, escolhendo sempre as mais adequadas, mesmo que inusitadas, ficou registrado desde a morte de um colega vitimado pela febre amarela, quando cursava o segundo ano do curso médico. Proferiu então a frase que ficou registrada para sempre: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”.

Essa fala, quase um cochicho, foi presenciada pelos colegas Alysson de Abreu e Ismael de Faria; e João Rosa, como era conhecido entre os amigos de então, voltaria a usá-la no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967, portanto, 40 anos depois.

Depois de sua passagem pela Faculdade de Medicina, que durante seu curso de graduação passaria a se chamar, em 1927, Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, ficaram os seguintes documentos, hoje criteriosamente guardados no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, que funciona no mesmo local: comprovante de inscrição no exame vestibular; provas escritas do exame vestibular; provas escritas do curso médico; fotos com colegas; reprodução do quadro de formatura; discurso de orador da turma; discurso de paraninfo do professor Samuel Libânio; e registro da formatura, em 21 de dezembro de 1930.

Até então, Rosa tinha escrito alguns pequenos contos e poemas, porém ainda manietado por forte influência dos escritores franceses, que já tinha lido vorazmente. Ele mesmo comentou que nessa época escrevia friamente, sem paixão, preso a modelos alheios. Quatro desses contos foram publicados em 1929 e 1930 na revista O Cruzeiro, de circulação nacional, e Guimarães Rosa recebeu 100 mil réis por cada um deles. Provavelmente em função desse sucesso, foi escolhido pelos colegas como orador da turma da formatura. No seu discurso, há um relato que vale a pena ser citado:

De distinto médico patrício contam que, achando-se moribundo, gostava que os companheiros o abanassem. E a um deles, que se oferecera trazer-lhe moderníssimo ventilador elétrico, capaz de renovar-lhe continuamente o ar do aposento, responde, admirável, no esoterismo profissional e sublime na intuição de curador. — Obrigado; o que me alivia e conforta, não é o melhor arejamento do quarto, mas sim a solícita solidariedade dos meus amigos….

Assim que se graduou, e casado há pouco com sua jovem vizinha Lygia Cabral Penna, partiu para Itaguara, situada a cerca de 100 quilômetros de Belo Horizonte, onde clinicou até 1932. A vida pacata em Itaguara, então distrito de Itaúna, na época com no máximo 700 habitantes, onde nem sequer havia eletricidade e até então não havia residido um médico, deu-lhe tempo para coletar mentalmente dezenas de histórias para o livro Sagarana.

No período de não mais que dezoito meses na região, observou personagens típicos e guardou de memória casos antigos e novos, verídicos, improváveis ou fantasiosos, histórias de crimes e de feitiçarias, e detalhes minuciosos de bichos e plantas, que encheram as quinhentas páginas dos originais de Sagarana, escrito alguns anos depois.

Poucos documentos relacionados à sua prática clínica nesse período ficaram preservados, como, por exemplo, algumas receitas. Nelas, o doutor João Rosa, como era conhecido, receitava elatério, chamado também de “pepino-do-diabo”, pelo seu efeito laxativo, e ruibarbo, de propriedades digestivas.

Ficou amigo de raizeiros, cuja medicina alternativa tinha grande aceitação popular em toda a região, em especial de Manoel Rodrigues de Carvalho, seu Nequinha, famoso curandeiro, que morava em um grotão na zona rural próxima. Em uma carta, preservada pela Secretaria de Cultura da cidade de Itaguara, recomenda cuidados em relação à esposa de Seu Nequinha, que acabara de ter um filho. Rosa elogia o enfermeiro improvisado (“Pudesse eu ter sempre à mão um auxiliar assim”) e adverte que

[…] se as dores nas pernas continuarem, veja se há alguma novidade no lugar dolorido (inchação branca e dura), pois pode tratar-se de uma flebite puerperal. De qualquer maneira, caso a dor continue, a doente deverá manter-se em repouso rigorosíssimo, podendo aplicar angus quentes no lugar da dor.

Em uma ocasião, teve que socorrer em caráter de urgência uma paciente que fora baleada no abdome pelo marido, que se supunha traído. Providenciou um caminhão que a transportasse até Itaúna, onde foi operada pelo cirurgião Antônio de Lima Coutinho, amigo de Rosa. O fato foi descrito no livro A messe de um decênio, de autoria de Lima Coutinho, pois o projétil não foi encontrado na cavidade abdominal, já que, descobriu-se depois, transpassou todo o corpo da paciente e inusitadamente não causou lesões graves.

No conto “Corpo fechado”, de seu primeiro livro publicado, Sagarana, Guimarães Rosa se coloca como um personagem, o médico recém-chegado à cidadezinha, a conversar com o amigo Manuel Fulô, falso valentão. No diálogo, em mesa de bar e depois de muitas cervejas, Fulô atiça o doutor novo a combater o feiticeiro local, Toniquinho das Águas:

Ele vive desencaminhando o povo de ir se consultar com o senhor. Dizendo que doutor-médico não cura nada, que ele sara os outros muito mais em-conta, baratinho… Ele quer plantar mato na sua roça e frigir ovo no seu fogão! O senhor não vê? Ele não faz receita no papel, só porque não conhece os símplices, e acho que não sabe escrever, e isso que nem o boticário aviava nenhuns-nada… Mas benze, trata de tudo, e aconselha que a gente não deve de tomar remédio de botica […]

O doutor hipotético (seria mesmo hipotético?) não faz caso das futricas de Manuel Fulô. Nesse parágrafo rosiano, uma palavra pouco usada: “símplices”, como eram designadas as drogas que entravam na composição dos remédios. O texto do conto é também pontilhado de referências diretas e indiretas a doenças, como erisipela, hanseníase (mal de lázaro), neurastenia, bócio (papo), sífilis (mal gálico) e tuberculose (héctico).

Ainda em “Corpo fechado”, Rosa descreve a monotonia da vida em um vilarejo, principalmente a incômoda solidão noturna. Um curto diálogo diz todo o sentimento do jovem médico que abandonou a provinciana, porém fervilhante Belo Horizonte, pela mais que pacata Itaguara:

— Mas, gente, que é que vocês fazem de-noite?

— De noite, a gente lava os pés, come leite e dorme.

Muitos anos mais tarde, em uma autoanálise sobre essa época de sua vida, Guimarães Rosa, que não gostava de dar entrevistas (essas foram muito raras), confidenciou ao amigo Pedro Bloch:

Fui exercer a Medicina, durante dois anos, em Itaguara (Itaúna). Só lia Medicina. Naquele tempo, quando eu tinha que atender a doentes, montado a cavalo, longe, achava que qualquer coisa que eu lesse fora da Medicina me enfraquecia. Devorava tudo com angústia, voracidade. Se ao atender um doente eu tivesse lido um jornal ou qualquer coisa não médica, tinha uma impressão de falta, enfraquecimento. Eu não podia aceitar, por exemplo, que doente meu morresse!

Durante sua vida de médico da roça, clinicando no arraial, seu consultório era ao lado de sua casa e vizinho da precária farmácia da vila. Fazia também longas viagens a cavalo para atender doentes que não tinham como se deslocar.

Procurou abordar em seus textos, como no conto “Duelo”, de Sagarana, essas dificuldades do dia a dia:

Cassiano perguntou:

— Me diz uma coisa, Vinte-e-Um: nas Abóboras tem doutor?

— Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!… Como é que eu, que não sou dono de nada desta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua, p’ra ele querer vir até cá?!… Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica…

Sempre com estilo literário apurado e meticuloso, volta e meia usava palavras incomuns, sem quebrar a harmonia da frase, como “meizinhas”, que significa medicamento, palavra hoje totalmente em desuso. Usaria outras vezes a mesma palavra em circunstâncias semelhantes, como no conto “Dão-Lalalão”, do livro Noites do sertão:

O triste seo Quincorno não esbarrava de tomar meizinhas, na esperança. Não resignava. Tomava pó de bico de pica-pau torrado, na cachaça, chá de membro de coati, ou infuso, chá de raiz de verga-tesa – coisas de um nunca precisar, deus-livre-guarde.

Outra referência à palavra “meizinha” aparece ainda no majestoso livro que escreveria futuramente, Grande sertão: veredas, quando relata o hábito dos jagunços em improvisar medicamentos com aquilo que estava à mão:

Alaripe pegou a gabar a virtude mezinheira das raízes e folhas. — “Até estas aqui, duvidar, devem de poder servir, em doses, de remédio para algum carecer, só que não se sabe…” — ele disse, por uma moita rosmunda de frei-jorge, esfiada em tantos espetos e a povoã por perto crescida.

É quase um caminho sem fim ir atrás de todas as palavras utilizadas por Rosa. Para saber o significado da palavra “rosmunda”, no parágrafo anterior, há que se contar com a ajuda da professora de linguística Nilce Sant’Anna Martins, que estudou toda a obra do autor e define o termo como aquilo que é “lavado pelo orvalho”. Em sua pesquisa, identificou a influência do latim no neologismo “rosmunda”: “ros” significa orvalho e “mundo” significa “limpo”. De fato, conforme Rosa declarou publicamente, o garoto Joãozito, como era conhecido, estudou latim com os padres holandeses que ministravam aulas em Cordisburgo e também no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte.

Entretanto, algumas vivências em Itaguara desgostaram o jovem médico, fazendo-o desejar mudar de vida. Rosa teve, por exemplo, que dar assistência ao primeiro parto da sua esposa Lygia, pois o farmacêutico e o médico de Itaúna somente chegaram quando sua filha Vilma já havia nascido.

Deixou Itaguara em 1932 para se inscrever como médico voluntário da Força Pública de Belo Horizonte (atual Polícia Militar de Minas Gerais). Estava em curso a Revolução Constitucionalista, movimento liderado por São Paulo contra o governo federal, em resposta aos desdobramentos políticos da Revolução de 1930, que colocou no poder o gaúcho Getúlio Vagas. A revolta durou alguns meses e, após vários enfrentamentos e muitas mortes, foi vencida pelas forças federais, apoiadas pelos mineiros. O levante ganhou o nome de Revolução Constitucionalista de 1932.

Um equívoco foi cometido por vários autores ao afirmarem que Rosa esteve na frente de batalha na região do Túnel da Mantiqueira, próximo à cidade de Passa Quatro, na divisa de Minas Gerais com São Paulo. Na realidade, Rosa ficou aquartelado em Viçosa, aguardando o momento de seguir para mais uma sangrenta guerra entre irmãos brasileiros, o que, felizmente para ele, nunca aconteceu.

Juscelino Kubitschek, que era contemporâneo de Rosa na Faculdade de Medicina em Belo Horizonte, trabalhou durante alguns meses como cirurgião militar no hospital de campanha em Passa Quatro. JK, pouco depois, deixaria a profissão para se tornar político de grande sucesso, posteriormente tornando-se amigo íntimo de Guimarães Rosa, quando ambos residiram no Rio de Janeiro.

Em 1933, como oficial médico do 9º Batalhão de Infantaria, mudou-se para Barbacena, terra natal de seu sogro. Foi um período de vida mansa de médico de quartel, fazendo exames de rotina na tropa, discursando nas solenidades e lendo muito. Em Barbacena nasceu Agnes, sua segunda filha. Nas inúmeras horas vagas escreveu alguns poemas do livro Magma, que, todavia, não permitiu que fosse publicado em vida.

Esmerou-se no estudo de línguas, incluindo o alemão, o russo e o japonês, e já reconhecido pelos companheiros como poliglota recebeu o estímulo de um colega de Barbacena para se inscrever em um concurso do Itamaraty para a seleção de diplomatas e deixar a profissão de médico. Viajou para o Rio de Janeiro, onde prestou concurso em 1934, tendo sido aprovado em segundo lugar dentre 57 concorrentes.

Finalmente, pôde assumir que tinha alguma incompatibilidade com a prática da medicina. Expressou claramente isso em carta ao amigo e colega Pedro Moreira Barbosa, datada de 1934:

Não nasci para isso, penso. […] Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material – só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez – nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol…

Com Guimarães Rosa já funcionário do Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro, o livro Sagarana, que inicialmente recebera o título de Contos e em seguida de Sezão, foi escrito em 1937, a lápis, com Rosa deitado em uma cama:

Então, passei horas de dias fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, “revendo” paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. […] sete meses de exaltação, de deslumbramento.

O livro ficou em segundo lugar em um concurso da Livraria José Olympio, em 1938. O escritor Graciliano Ramos, já reconhecido nacionalmente, e que fazia parte da comissão julgadora, optou por dar o prêmio a outro livro, após um debate passional entre os jurados. Todavia, Graça confessou que ficou com as histórias dos originais do livro em sua memória e sempre desejou conhecer o autor, de pseudônimo Viator, que ninguém sabia quem era. Baseado no texto que lera, tinha certeza de que quem o escrevera era um médico do interior de Minas Gerais. Anos mais tarde, Graciliano Ramos ficou conhecendo Rosa casualmente, que se identificou como o misterioso Viator. Graciliano se desculpou por não lhe ter dado o prêmio, aproveitando a ocasião para estimulá-lo a prosseguir como escritor e escrever um grande romance. Sagarana somente foi publicado em 1946, após exaustivas revisões e redução do número de contos. O livro imediatamente recebeu enorme consagração do público e da crítica.

O escritor que existia em Guimarães Rosa não se manifestou durante alguns anos, envolvido que estava com as tarefas de cônsul durante a Segunda Guerra Mundial. Como diplomata foi transferido para Hamburgo, na Alemanha e, além de correr risco de vida, devido às bombas dos aliados que caíram muitas vezes próximas ao local onde residia, ficou confinado na cidade de Baden-Baden por quatro meses, até ser libertado em troca de diplomatas alemães residentes no Brasil.

Após quatro anos na Europa, voltou em 1942 para o Rio de Janeiro, e logo em seguida foi enviado pelo Itamaraty para a Colômbia. Suas vivências em Bogotá e a opressora solidão a 2.600 metros de altitude fizeram com que escrevesse o conto “Páramo”, publicado no livro póstumo Estas estórias. “Páramo” significa planície deserta, e a palavra “soroche”, que empregou no texto, é um termo popular nos Andes para designar o mal-estar provocado pela rarefação do oxigênio em grandes altitudes:

Nessa manhã, acordei – asfixiava-me. Foi-me horror. Faltava-me o simples ar, um peso imenso oprimia-me o peito. Eu estava sozinho, a morte atraíra-me até aqui – sem amor, sem amigos, sem o poder de um pensamento de fé que me amparasse. O ar me faltava, debatia-me em arquejos, queria ser eu, mal me conseguia perguntar, à amarga borda: há um centro de mim mesmo? Tudo era um pavor imenso de dissolver-me. Aquilo durou horas?

[…] Era o soroche, apenas, o mal-das-alturas.

Em 1952, numa volta às origens, realizou uma grande cavalgada pelo sertão mineiro, tangendo uma boiada. Saiu das margens do rio São Francisco em direção a Cordisburgo, sua cidade natal. Durante doze dias, acompanhou – da manhã à noite – homens e bois, sempre com um caderno de notas pendurado no pescoço por um barbante e um lápis à mão. Nessa viagem conheceu o vaqueiro Manuelzão, que viraria um importante personagem de sua literatura, e que em depoimento posterior relatou que o doutor João “perguntava mais que padre”. Nos anos seguintes Rosa escreveu Corpo de baile e, pouco depois, no mesmo fôlego, o romance Grande sertão: veredas, sua obra-prima. O livro Corpo de baile, com quase mil páginas, foi posteriormente, com autorização do autor, desmembrado em três volumes: Manuelzão e Miguilim; No Urubuquaquá, no Pinhém; e Noites do sertão.

Algumas anotações desses diários de campo da cavalgada denunciam o médico que existia nele, como ao escrever sobre o mel de jataí e suas propriedades terapêuticas: Mel especial. Dos principais. É medicinal. É doce, é puro. Tira-se dele para dar a uma criança endefluxada.

“Defluxo” é um termo comum no interior de Minas, usado para designar gripe. Talvez derive da palavra “fluxo”, ou seja, da coriza que caracteriza essa infecção virótica. Outros nomes populares são também “resfriado” e “pingadeira”.

Em um texto autobiográfico, Rosa fala sobre a miopia, a sua “vista curta”, que passou despercebida durante a primeira infância. O problema só foi diagnosticado aos 9 anos de idade, por José Lourenço Viana Filho, o Dr. Juca, médico em Curvelo e amigo da família de Rosa. No livro Manuelzão e Miguilim, no primeiro conto, de nome “Campo Geral”, o autor escreveu uma cena em que Miguilim encontra por acaso um cavaleiro rico, doutor da cidade, que visitava para uma caçada os ermos onde morava, o Mutum:

— Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? […]

E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.

— Olha agora!

Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali meu Deus, tanta coisa, tudo…

A menina Chica, irmã de Miguilim, que volta já adulta no livro No Urubuquaquá, no Pinhém, no conto “A estória de Lélio e Lina” também apresentava sinais de miopia: A Chica apertava muito os olhos, muito azuis, para enxergar melhor as pessoas, e sempre em si sorria.

No livro Grande sertão: veredas, o personagem principal Riobaldo seria, em muitos aspectos, o próprio Guimarães Rosa, conforme reconheceu o autor em algumas entrevistas. Como em todo ser humano, existe nele uma mistura de coragem e medo, de certezas e incertezas, de amor e ódio, e uma luta permanente do bem contra o mal. Em uma frase carregada de poesia, Riobaldo relembra uma crise passageira de depressão durante sua juventude, em um momento de conflito íntimo, quando não via um sentido maior para a sua existência: Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo […].

Ainda em Grande sertão: veredas, tudo indica que seu Nequinha, de Itaguara – ou seja, Manoel Rodrigues de Carvalho –, raizeiro que professava a religião espírita, influenciou o personagem compadre Quelemém, que também era espírita e teve grande ascendência sobre Riobaldo. No texto, é compadre Quelemém quem o aconselha sobre seus muitos dilemas existenciais:

— “Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho…”

Ao se referir ao compadre Quelemém, Riobaldo diz que aceita de bom grado suas preces, doutrina de “Cardéque”, e recomenda que o interlocutor, certamente também o próprio Guimarães Rosa, o conheça: O senhor vai ver pessoa de tal rareza, como perto dele todo-o-mundo pára sossegado, e sorridente, bondoso

Da época de juventude na Faculdade de Medicina ficou a amizade com o colega Aurélio Caciquinho Ferreira, vínculo que resistiria à distância e ao tempo. De família enraizada no norte de Minas, em especial em torno de Januária, o dr. Aurélio, que foi médico nessa cidade por longo período, trocou correspondência frequente e constante com Rosa, que sempre lhe solicitava casos de jagunços e fatos pitorescos da vida de médico do interior. A família Ferreira era adversária jurada do jagunço Antônio Dó, famoso por sua crueldade e poderio, morto em 1929. Ricas memórias dos tempos antigos do sertão é que certamente não faltavam. Lamentavelmente, em 1979, uma excepcional cheia do rio São Francisco inundou Januária, atingindo a casa e a biblioteca do dr. Aurélio. Todas as cartas de Guimarães Rosa ao amigo foram destruídas pelas águas barrentas, segundo informação pessoal de sua filha Sônia Ferreira.

Rosa vivenciou significativas mudanças na prática médica entre as décadas de 1920 e 1960. Nesse período, em que pesem os avanços cirúrgicos, os antibióticos e outros medicamentos, e a sofisticação dos exames complementares, antigas doenças continuavam a infligir sofrimentos à humanidade. Assim, dezenas de enfermidades e situações de convívio médico/paciente são sempre relatadas poeticamente em sua literatura. Essa, portanto, é a justificativa para o livro de que sou autor, O viés medico na literatura de Guimarães Rosa: realizar uma abordagem até agora pouco explorada da obra do médico e escritor João Guimarães Rosa.

 

*Eugênio Marcos Andrade Goulart, médico, professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, ambientalista, autor do livro O viés médico na literatura de Guimarães Rosa (“Um tal doutor João” é o primeiro capítulo), sobre o médico João Rosa, mais tarde também respeitado como diplomata e especialmente escritor.