Medicina na modernidade


//José Paranaguá de Santana*

Uma faceta do drama da medicina na modernidade é a progressiva dominação da técnica sobre a dimensão humana no cuidado às pessoas. Com frequência, a abordagem deste drama condena o paradigma flexneriano[1], que orienta a formação e a prática médica desde o início do século passado. Este ensaio sugere uma alternativa para o debate sobre o tema, a partir das relações entre medicina e sociedade no período contemporâneo à Organização das Nações Unidas (ONU). Neste sentido, faz-se uma breve apreciação da formação e prática médica na América Latina e da especialização como fenômeno da modernidade e, ao final, apresentam-se algumas provocações para esse debate.

No final da Segunda Guerra Mundial, floresceu um sentimento generalizado de solidariedade, cuja expressão nas relações internacionais configurou o conceito de cooperação adotado na fundação da ONU, em 1945. Na prática, a cooperação significava a mobilização de subsídios dos países ricos para o desenvolvimento dos países pobres. Essa proposta traduzia a acepção de que o desenvolvimento econômico seria etapa indispensável para a superação de carências sociais da maioria das populações.

Saline Infusion: An incident in the British Red Cross Hospital, Arc-en-Barrois, 1915 | Henry Tonks 1915

No continente americano, houve a aceitação tacitamente compartilhada de que a ajuda externa caberia aos Estados Unidos, detentor de maior poder econômico, financeiro, industrial, tecnológico, científico e militar. O ideário pan-americanista, que vinha se remodelando gradativamente desde os primórdios do século XIX, renovou-se mais celeremente em consonância com as circunstâncias bélicas da Segunda Guerra. No período seguinte, de paz sombreada pela ameaça de renovação do conflito bélico na era atômica, a crença no planejamento das políticas públicas se converteu em “mantra” da gestão estatal. Em muitos países, essa orientação se expressou em planos governamentais de ampliação da oferta de bens e serviços para amplas faixas da população.

Nos Estados Unidos, ocorreu forte expansão dos programas governamentais na área de saúde e da capacidade institucional de controle de doenças. Essa política remontava aos anos 1930, com a orientação keynesiana do governo Roosevelt em todos os setores, e se fortaleceu com a experiência de planejamento e gestão governamental durante o esforço de guerra.

Nos países latino-americanos, as dimensões mais graves da saúde eram a grande incidência de doenças infecciosas, a alta mortalidade infantil e a baixa expectativa de vida, num contexto de crescimento e urbanização da população. A escassez e o descrédito nas informações disponíveis limitavam a capacidade de gestão dos serviços públicos e também do setor privado. E as preocupações enfatizavam a penúria da força de trabalho, afetando todos os tipos profissionais, e a insuficiência de centros de formação, bibliotecas e materiais didáticos, além da abordagem educativa tradicional desligada das realidades nacionais.

Novas estratégias de preparação de recursos humanos em saúde foram implantadas nessa parte das Américas. As medidas comumente adotadas naquela época buscavam adequar a força de trabalho ao crescimento da demanda dos sistemas de saúde. Contudo, as iniciativas desencadeadas careciam de diretrizes ajustadas às realidades nacionais, sendo quase sempre orientadas por modelos de intervenção voltados para a formação especializada destinada a serviços médicos individuais. Enquanto isso, a saúde pública continuava a lidar com doenças transmissíveis e mazelas decorrentes de deficiências sociais, especialmente a ausência de saneamento básico.

Para além da esfera educacional, a crise econômica mundial dos anos 80 e o fracasso do comunismo, com a derrocada da União Soviética demarcada pela queda do Muro de Berlim, configuraram o cenário de revigoramento das teses do liberalismo prescritas pelo Consenso de Washington no encerramento daquela década. Sob a alcunha de neoliberalismo, germinou e se disseminou uma versão tosca do liberalismo clássico, tendo como objetivo maior a contestação das políticas de bem-estar social em cada país e, no plano das relações internacionais, a irrelevância da solidariedade como orientação da cooperação internacional para o desenvolvimento.

Essa nova conjuntura se refletiu, na área de saúde dos países latino-americanos, na promoção de reformas setoriais, simultâneas ou meramente complementares a reformas econômicas e dos aparelhos da gestão pública. Nas Nações Unidas, a despeito da Declaração de Alma-Ata, em 1978, propor o lema “Saúde para Todos”, as agências e os bancos promotores de desenvolvimento apoiavam reformas setoriais de saúde pautadas em dois pontos fundamentais: na limitação, ou preferencialmente na redução desses recursos setoriais; e na busca de eficiência e eficácia, com ênfase na transição para modelos de gestão e oferta de serviços privados. A resultante incontestável desses processos foi o agravamento das desigualdades e a deterioração das condições de saúde.

A debilidade institucional vigente na maioria dos países latino-americanos não lhes permitia elaborar avaliações e propostas de intervenção ante as deficiências de seus sistemas de saúde. Tal situação ocasionou o surgimento de diversas iniciativas que, embora compartilhadas pelos próprios países, geralmente eram deliberadas e executadas com forte interferência externa, por agências de outros países ou veiculadas por organismos internacionais.

O Brasil trilhou a contramão dessas orientações, a partir de 1985, em razão do processo de redemocratização com ênfase nos direitos sociais que sucedeu o regime militar. A Constituição da República de 1988 definiu a saúde como “direito de todos e dever do Estado” e estabeleceu o Sistema Único de Saúde. Tais avanços representam contribuições do processo da Reforma Sanitária Brasileira, sob o lema “Democracia é Saúde”[2].

As medidas citadas contribuíram para reduzir a escassez geral de médicos nos países. Mas não alteraram a situação de saúde. A justificativa mais frequente apontava o modelo de formação médica, geralmente transferido da experiência externa, sem correlação com os sistemas de saúde dos próprios países e, menos ainda, com as demandas nosológicas de suas populações.

No contexto histórico em tela, a especialização médica se disseminou por toda a América Latina, no curso de sua mundialização durante o século XX. A fase inicial foi desencadeada com os programas de residências, que, mesmo sem absorver todos os recém-formados, levou à situação vigente de predomínio de especialistas no mercado de trabalho em saúde. De tempos para cá, os próprios cursos de graduação se tornaram etapa preparatória para esse processo. A expressão desse movimento, no contexto social compartilhado por quase todos os países na atualidade, é a concentração de médicos nas grandes cidades e consequente escassez nas regiões interioranas, notadamente naquelas mais carentes.

Alguns aspectos, dentre tantos outros, foram apenas assinalados nesta breve revisão, como introdução de uma nova abordagem ao drama da medicina nos tempos atuais, a ser incorporada ao debate ora promovido pela Comissão de Humanidades em Medicina do Conselho Federal de Medicina.

Conforme já pontuado, a especialização dos médicos tem sido contemplada predominantemente sob a ótica de sua condenação, com base na argumentação sobre a nocividade do modelo flexneriano de educação e prática médica, que teria concebido a progressiva dominação da técnica sobre a dimensão humana no cuidado às pessoas.

A proposta aqui sugerida inverte o sentido dessa linha de raciocínio ao reconhecer a técnica como a essência da modernidade, a partir daí reconhecer também sua inexorável e irresistível utilidade no campo da medicina, na forma da especialização de seus atores. O novo debate poderia começar questionando a atitude cômoda de atribuir os males da medicina na modernidade à acepção implantada, no alvorecer do século passado, na educação e no trabalho de seus praticantes. Ao invés de repisar lamentações condenatórias ao projeto bem-sucedido da medicina moderna que valoriza a técnica, não seria o caso de enfrentar o drama dessa modernidade, onde todos se deixam encantar até se tornarem servos da técnica em vez de subordiná-la a serviço da humanidade?

Parece que tem uma pedra no meio desse caminho: a resistência em adotar atitudes e práticas transformadoras das relações entre medicina e sociedade. O caminho pode ser por dentro dessa pedra que reside em todos e em cada um dos que persistem no autoengano de que não são atores e autores desse drama da modernidade. Neste caso, a indagação se afunila na direção dos próprios médicos e suas representações institucionais: até que ponto a servidão à técnica e a negligência com as dimensões humanas do cuidado em saúde interessam aos próprios cuidadores?

Outras perguntas poderiam ser formuladas para estimular um debate novo, desapegado do muro das lamentações contra o flexnerianismo. Questões que nos levem a preservar nossa inerente humanidade sem sucumbir à atração irresistível pelas novidades técnicas próprias da modernidade. Mas, para isso, uma dúvida crucial precisa ser esclarecida: estamos dispostos a enfrentar tais questões?

* Médico, mestre em Medicina Tropical e doutor em Ciências da Saúde. Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde e assessor do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz, diretoria de Brasília. Titular da Academia de Medicina de Brasília. Membro da Comissão de Humanidades em Medicina do CFM. Recebeu do Ministério da Saúde a Medalha do Mérito Oswaldo Cruz (categoria ouro). Foi conselheiro do CRM/DF e consultor da Organização Pan-Americana da Saúde.

 

[1] A designação se refere ao autor de uma publicação de 1910, cujas recomendações foram adotadas, a partir daquele momento, na reforma das escolas médicas americanas e canadenses e, subsequentemente, influenciaram a educação e a prática da medicina em praticamente todo o mundo. FLEXNER, Abraham. Medical education in the United States and Canada: a report to the Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching. California: Creative Media Partners, 2018. 380 p.

[2] DEMOCRACIA é saúde. Fiocruz, Brasília, DF. 1 vídeo (42 min). Publicado pelo canal VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=-_HmqWCTEeQ. Acesso em: 18 set 2018.