As humanidades e sua importância no atual exercício da medicina


Os recentes avanços científicos, o desenvolvimento da semiologia, armada com o surgimento de uma nova especialidade médica – a imagenologia, e a superespecialização como consequência da fragmentação do corpo humano nas especialidades médicas são fatores que interferem na atual prática médica diretamente.

Freepik

//Roberto Luiz d’Avila

Também há o aspecto do crescimento, no mercado de trabalho, das operadoras de saúde e cooperativas que intermediam o atendimento médico, com um afastamento gradual da qualidade da adequada relação médico-paciente na atenção à saúde.

Da mesma forma, os novos conceitos de vida e morte, a interpretação filosófica dos valores na caminhada humana, os novos condicionantes sociais com evidente reflexo no comportamento do ser humano e a crescente autonomia dos pacientes têm levado a medicina a seu maior dilema: a ética da conduta humana ao defrontar-se com as questões referentes ao próprio ser humano.

Os médicos recebem intenso treinamento, iniciado desde os primeiros anos de sua formação universitária, para decidir sobre os fatos que observam. Há quase dois séculos, o famoso fisiologista francês Claude Bernard introduziu definitivamente a medicina no campo das ciências, tirando-a do empirismo reinante à época, e os médicos passaram a objetivar tudo que era subjetivo, quantificando e mensurando. As decisões passaram cada vez mais a serem tomadas sobre a evidência dos fatos, e a clínica (a rigorosa observação e interpretação de fatos) se tornou soberana. A doutrina cartesiana da dicotomia corpo-mente impregnou os centros formadores e a medicina foi se afastando paulatinamente de seu forte componente humanista e social.

A arte hipocrática foi substituída pela ciência impessoal e pela análise estatística de eventos repetitivos. O que a medicina ganhou em ciência, perdeu em arte.

Impregnados de uma formação organicista, os médicos se dedicaram a resolver dilemas científicos utilizando cada vez mais a tecnologia capaz de invadir os corpos na tentativa de decifrá-los. Somente uns poucos se dedicaram aos cuidados dos transtornos mentais, estes desprovidos de qualquer processo que utilize tecnologia de imagem ou invasiva que os investigassem, mantendo a pureza empírica da observação subjetiva. Os estudiosos da mente humana sabem o preço de tal ousadia: o afastamento de seus pares.

É por demais conhecida a desvalorização progressiva das atividades médicas que cultivam o humanismo e as artes em geral. Relegou-se ao desprezo a clínica geral, a medicina geral e a comunitária, a acupuntura e outras especialidades médicas que privilegiam o ser humano e seu ambiente sem desprezar os recursos científicos, utilizando-os de maneira crítica e sem interesses escusos.

Enquanto a medicina apresenta-se absurdamente evoluída em termos tecnológicos, aumenta a distância daquilo que foi sua base histórica: o paciente como um todo, corpo e espírito. Quanto mais evoluída é a medicina, mais distante ela se torna da pessoa humana, com uma nova interface entre o médico e o paciente: a máquina!

A nova sociedade já não mais cultua o velho médico de família, pois na visão tecnicista só há lugar para o especialista. O próprio paciente exige quais os exames complementares deseja fazer. Já não há mais espaço para hábeis mãos, olhos e ouvidos do antigo clínico, pois se vendeu o mito de que medicina de qualidade se faz com tecnologia de ponta. Pensa-se erroneamente que quanto mais sofisticado o exame complementar solicitado (laboratorial, de imagem ou outro), melhor e mais atualizado é o médico e, portanto, mais acurado será o diagnóstico. O verdadeiro médico sabe que nada substitui a audição atenta e o toque da mão amiga, a experiência acumulada ao longo dos anos, o exame clínico bem feito, o diagnóstico seguro e a terapia simples e correta.

Vivem os médicos, nos dias de hoje, o paradoxo de exercerem uma medicina de múltiplos matizes: de uma sociedade que exige deles o que há de mais atual e o melhor de seu raciocínio clínico, mas também das necessidades e dos desejos, de desigualdades e de desesperanças, de exigências e de tribunais, de dor e de medo…

Mesmo sabendo-se que a prática da medicina é una, devendo ser aplicada indistintamente a todas as pessoas, isso não corresponde à verdade quando se observa o que realmente ocorre: este país-continente permite que se pratique medicinas diferentes para cidadãos de diferentes categorias, deixando para os médicos a difícil e desumana tarefa de decidir quem deve morrer e quem deve viver.

Identificado pelo usuário dos serviços de saúde como o responsável pelo descaso oficial na aplicação das políticas publicas de saúde, vivem os médicos, na atualidade, o drama-intestino de querer e não poder aliviar o sofrimento humano. Coniventes, eles muitas vezes participam do odioso processo de descaracterização da arte em prol da ciência maniqueísta que relativiza o humano. Exercem seu mister em meio a sentimentos conflitantes de que são alvos: ao mesmo tempo amados e odiados; queridos e infames; invejados e esquecidos; necessários e desrespeitados; idolatrados e aviltados! Vivem os médicos seus domésticos dramas entre a medicina hipocrática, viva e latente em cada um de nós, e a hodierna exigência do diagnóstico sem erro e sem defesa. Reclusos em seus próprios arsenais propedêuticos, protegem-se no mito da medicina defensiva, tentando justificar que suas máquinas hão de lhes dar a segurança do diagnóstico incerto e imperfeito. Ou então, caminham pela senda do lucro fácil que não advém do raciocínio clínico baseado em probabilidades, buscadas no exame objetivo do paciente.

Mais ainda, vivemos todos hoje o paradoxo movido pela angústia da opressão da tecnocracia dos dias atuais e pelo saudosismo da hipocrática sabedoria do passado. Entretanto, somos sabedores de que não poderemos continuar decidindo somente com o uso dos fatos, que precisamos utilizar também valores, crenças, desejos e necessidades dos pacientes.

Neste momento, o que mais precisamos é de uma profunda reflexão sobre o papel do médico e a necessária formação humanística dos futuros profissionais, a respeito da dignidade humana, da morte e do morrer, da empatia e da compaixão. Ou seja, uma profunda reflexão filosófica, antropológica e sociológica sobre o que nos faz humanos. Além, é claro, do uso das artes em geral como instrumentos para despertar nos atuais estudantes de medicina e jovens médicos a necessária sensibilidade para ouvir, auscultar e palpar não somente os corpos físicos de seus pacientes, mas principalmente suas almas. Quem são, o que desejam, quais suas crenças, suas necessidades, o quanto amou e foi amado?

O uso da literatura, do cinema, da música e das artes plásticas nos cursos de medicina e em muitos eventos médicos tem oferecido uma oportunidade única para ensinarmos razão e sensibilidade juntas para nos fazer melhores médicos…

Roberto Luiz d’Avila é cardiologista, presidente do Conselho Federal de Medicina (2009-2014) e atual assessor da presidência do CFM, professor de humanidades médicas da Escola de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina (UniSul) e diretor de relações institucionais do Complexo Hospitalar Baía Sul em Florianópolis (SC).