Dois Olhares Sobre o Dado: Deslumbramento e Cuidado


Rembrandt, A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, 1632

Péricles Brandão*

Deu-se esta aula de anatomia da Corporação dos Cirurgiões de Amsterdã, no século em que se chegara à conclusão de que o coração humano seria uma bomba hidráulica, que se repara quando falha e que para porque é parte de uma máquina que se desgasta.

Entrementes, foi como se, por um instante que pareceu inacabável, sobre a mesa de pedra gelada ainda batesse dentro do peito de Adriaen: denken is bedanken, denken is bedanken, denken is bedanken – para espanto de todos os presentes.

E não era como o ranger póstumo de uma peça enferrujada, era como uma parábola ou charada a ser decifrada: pensar é agradecer – pensar é agradecer, antes de mais nada, ao que não tem termo: à Vida que jorra desde a Fonte saciando a sede do Sagrado em suas incontáveis moradas.

“A Vida, enraizada em cada criatura, é tulipa jamais inodora no decorrer ou fora da primavera”, disse para doutor Tulp e seus discípulos uma inaudível voz límpida, como de outro mundo, mas íntima. “E nunca se desvanece o que de sua essência exala”, completa a fala que só se escuta na alma.

O que do Nada brotara nunca retornaria ao Nada: a Eternidade é sua casa. Até a história de Adriaen, o ladrão condenado à forca, não seria por Cronos roubada e devorada, mas pela infinita Misericórdia purificada e magnificada.

“Não há limites, doutor Tulp, para o tapete da Vida que o Ser tece para além das quatro estações, é muito mais extenso que, nas planícies, os tapetes de tulipas e indescritivelmente mais colorido”, ecoou nos tímpanos como a silenciosa melodia do Santo Espírito.

“Antes de Amsterdã, desde Leiden, já sabia de Mim em toda forma de vida, em cada bulbo de tulipa, o inquieto Rembrandt. Só assim, em tensa harmonia com uma diversidade infinda, pode ser sonhada a saúde humana como obra-prima, fim da saudade do Éden, do inebriante jardim.”

Há uma luz mais forte que o jato que invade de um dos lados o anfiteatro. Entre as sombras, há uma nudez mais profunda que a da pálida pele de Adriaen, nudez por dentro, esquecida num Éden adiado, infenso ao método sem emoção, ao fórceps do falso conhecimento.

E o mais dentro sob a luz na tela não é memento mori, é memento vivere: cada momento é para alumbramento e relembramento do Amor em si, que é de tudo o Centro, resplandecimento do Mistério anterior à primeira manhã – disso tinha entendimento Rembrandt.

Que a mão de todo membro da Guilda fosse tanto pela Ciência guia da saúde humana quanto guiada com humildade pela Onisciência Divina. Fosse esse sem tardança o mister de todo tipo de artista, de Tulps e Rembrandts, perante semelhantes e dessemelhantes, para muito além de Amsterdã.

Para isso, soprando sobre o barro no Paraíso, deu vida o Espírito a uma criatura capaz de respirar e conspirar pela Paz, capaz de respeito, de olhar outra vez, respicere, capaz do encontro com o outro, capaz do cuidado, depois do deslumbramento.

*Péricles Brandão: membro da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina