A prostituição da Medicina


// Luiz Roberto Londres

 

A mulher enferma , Jan Steen, 1663

Privatização > Intermediários > Exploração > Comissão

A profissão do médico era chamada de profissão liberal, ou seja, uma profissão exercida por conta própria. Os médicos com seus conhecimentos em uma atividade extremamente complexa usavam o seu raciocínio clinico para desvendar o diagnóstico e estabelecer um programa terapêutico. Conheciam os tempos da consulta: Queixa principal, História da doença atual, História patológica pregressa, História familiar, História fisiológica, Historia social.

Alguns aforismos importantes como “Medicina é uma profissão de meios e não de fins” ou “Medicina são normas gerais aplicadas a casos particulares” vêm sendo desconsiderados na atualidade. Mais ainda, hoje é quase deixada de lado a História Natural da Doença que permitia ao médico reconhecê-la com muito mais facilidade do que pensando apenas através de sinais e sintomas. Também a inserção do paciente em seu universo psico-social dava ao médico elementos preciosos para o diagnóstico.

Tudo isso acontecia no tempo em que a Medicina era uma atividade voltada para o  serviço público, para a assistência, para a beneficência e para o ensino e a pesquisa. Os templos que aglomeravam os médicos eram os hospitais públicos e beneficentes. Na década de 80 começou o avanço da privatização. A partir de então surgiram hospitais tendo o lucro como seu alvo, os serviços de exames complementares depois auto-intitulados de “Medicina Diagnóstica”, aos poucos fusões, aquisições, IPOs visando a “consolidação do mercado” que nada é senão a formação de
oligopólios.

Ao largo da atividade médica, cresciam os serviços de intermediação financeira em várias formas, mas todas visando o lucro maximizado. Gradativamente foram burlando leis, limitando a escolha do médico e hospital, criando a verticalização com aquisição de hospitais e laboratórios e usando capital estrangeiro para esses passos. Os médicos passaram a ser ameaçados de  escredenciamento se não cumprissem determinadas regras que, quase sempre, nada tinham a ver com o caso em si. O auditor do plano se tornava a autoridade máxima do tratamento de alguém que ele nunca vira (a auditoria médica foi um tema importante na elaboração do novo Código de Ética Médica).

O encolhimento da figura do médico foi logo aproveitado pelos intermediários financeiros. Enquanto os preços dos planos subiam os honorários dos médicos se tornavam ridiculamente menores. Quase todas as profissões passaram a ganhar mais do que um profissional de Medicina em seu consultório. E isso acontece pela falta de conscientização, pela falta de ação, pela falta de união entre os médicos. O medo de perda de pacientes, o medo do descredenciamento faz com que a maioria dos médicos apenas defenda os seus próprios interesses. Ou seja, agindo dessa forma estão se entregando aos intermediários e se deixam por eles serem explorados.

Procurando minimizar as perdas dos honorários os médicos, progressivamente, adotam duas posturas. A primeira é diminuir o tempo de consulta visando atender mais pacientes, o que aumentaria seus ganhos. A segunda, quase criminosa, é aceitar propinas, presentes e comissões pelo uso de materiais e medicamentos em seus pacientes. Com o estabelecimento entre o interesse pela saúde do paciente e o interesse em forrar seu bolso, este quase sempre ganha. Certa vez um médico veio reclamar a respeito de um material não recebido. Foi encaminhado ao Responsável
Técnico da instituição. Este veio me trazer o que havia apurado: “Ele teve o material que queria; o que ele não teve foi o fornecedor que ele queria”.

Esse comportamento, além de desconsiderar o paciente como seu foco principal, tem como corolário o encarecimento do tratamento dispensado ao paciente, seja ele público ou privado, particular ou de plano de saúde. Casos diversos são descritos na literatura “boca a boca”. Os nomes das principais empresas corruptoras e dos médicos corrompívies são conhecidos. Mas, assim como acontece com a corrupção nos altos escalões da república, nada costuma ser esclarecido.

Os médicos que assim agem deixam os pacientes em companhia de duas outras profissões que, como eles, têm seus corpos explorados por terceiros: a prostituição e a escravatura. A principal diferença entre elas é que a prostituta ganha, o escravo nada ganha e o paciente, direta ou indiretamente paga.

Em tempos passados as pesquisas de novos medicamentos, de novos métodos, de novos materiais, no Rio de Janeiro eram feitas por médicos em instituições de ensino como as três escolas médicas todas públicas, institutos de assistência como o INTO, o INCA e outros, além de institutos científicos reconhecidos internacionalmente dos quais os mais importantes eram a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto de Biofísica da Universidade do Brasil onde pontificava o professor Carlos Chagas Filho. Hoje são feitas pelos laboratórios e outras instituições particulares com fins lucrativos. Imagino que esta situação dispensa mais comentários.

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* Luiz Roberto Londres é membro da Comissão de Humanidades Médicas do CFM