A desconstrução da Medicina


 // Luiz Roberto Londres *


“O Médico da Cidade” – Morgan Weistling

Pessoa > paciente > doença > sintomas e sinais > exames

Durante minha formação clínica, ainda estudante, tive o privilégio de ter convivido com Danilo Perestrello. É dele o livro “A Medicina da Pessoa”. E era essa a Medicina que aprendíamos. Vinham ao nosso consultório não só pessoas doentes, mas também pessoas que se sentiam doentes. Em meu consultório de cardiologia, com um bom movimento, isso acontecia. Um dia, em conversa com meu pai, cardiologista a quem segui os passos, comentei que metade dos meus atendimentos eram pessoas que não tinham doença física, ao que meu pai retrucou: “Só metade? Você deve estar adoecendo alguns”. Em inúmeros casos a simples conversa bem estruturada nos mostrava que a “doença” era, na verdade, uma representação de situações de sua vida psicológica e de sua vida social. E era grande o número daqueles que saiam da consulta sem solicitação de exames ou receita de medicamentos, apenas com a conscientização de seus quadros; e que voltavam em nova consulta previamente agendada, totalmente “curados”.

Aos poucos a pessoa passou a ser reduzida à condição de doente. Não mais interessava a sua vida, a sua história. O doente era tudo, os dados biológicos passaram a não ter relação com os dados psicológicos e muito menos com os dados sociais. A sua importância se limitava ao período nos quais os seus sintomas e os achados patológicos se instalavam. A anamnese passou a se limitar aos dados da doença apresentada pelo paciente. A sua alteração biológica passa a ser a totalidade a ser pesquisada e tratada, sendo ignorada a sua personalidade e sua estrutura mental.

Uma nova redução do campo médico passa a ser no momento em que o doente perde sua representatividade para a doença, passando esta a adquirir vida própria. Não mais são levadas em conta características especificas de cada paciente que podem determinar se o tratamento indicado deve ou não ser administrado. Uma das normas básicas da atividade médica – “Medicina são normas gerais aplicadas a casos particulares” – passa a ser inteiramente desconsiderada. Um dos exemplos mais gritantes é aplicação de cirurgias ou tratamentos agressivos e tantas vezes extremamente dispendiosos, a pacientes idosos os quais, provavelmente, iriam falecer de outras causas antes que a doença em questão os levasse ao óbito.

Os médicos dos dias atuais sentem-se oprimidos em relação ao tempo que podem dispensar a uma consulta e perderam o espírito crítico em relação ao valor da anamnese (a qual, segundo Howard Barrows, professor da Escola de Medicina da Universidade de Southern Illinois, dá ao médico bem preparado, 90% de chances de se chegar a uma hipótese diagnóstica correta. Essa afirmação consta de seu livro “Developing Clinical Problem-Solving Skills: A Guide to More Effective Diagnosis and Treatment”). Deixaram de lado os princípios médicos para atenderem volume. A própria história natural da doença passa a ser desconsiderada e os médicos de hoje costumam se ater aos sintomas e sinais presentes no momento da consulta. Recém-formado fui colocado em um ambulatório com uma lista de 40 pacientes para serem atendidos em 4 horas. Atendi como deveria e, ao final do meu tempo, havia atendido por volta de 15; devolvi a lista informando que havia muitos ainda a serem atendidos. No dia seguinte fui chamado à diretoria do hospital que questionava minha conduta. “Não atendo fila, atendo pacientes” foi a minha resposta.

E, uma vez dado esse passo, sua resultante é o pedido de exames complementares para lhes dar o diagnóstico em desacordo com o que aprendíamos em nosso tempo de estudante que tais exames tinham a função de confirmar ou não o diagnóstico e quantificar alguns parâmetros. Pessoas ficam esquartejadas e percebidas através de números e imagens – e bem sabemos as características das ilusões de ótica.  E, para coroar essa desconstrução, se fiam em laudos de colegas que freqüentemente não conhecem e sobre os quais não podem avaliar o grau de sua capacidade médica.

Nessa Medicina reducionista de nossos dias a figura do médico fica cada vez mais dispensável podendo ser substituído por um prático ou mesmo por um programa de computador. E o paciente…

 

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* Luiz Roberto Londres é membro da Comissão de Humanidades Médicas do CFM