Reflexões sobre um médico da Idade Média


// Lucio Prado Dias*

 

As ações que visam humanizar o exercício da medicina vêm crescendo de uma forma muito consistente, graças à intervenção, cada vez mais frequente, do Conselho Federal de Medicina (CFM), da Sociedade Brasileira de Medicina de Família (Sobramfa), da Federação Brasileira de Academias de Medicina (FBAM) e da própria Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames), entre outras instituições, com menor intensidade. Isso em razão do claro desgaste na relação médico-paciente percebido nos últimos anos, provocado pela perda progressiva das práticas humanísticas e pela deterioração de princípios éticos e morais no aparelho formador.

Nessa direção, o CFM mantém há alguns anos uma Comissão de Humanidades Médicas, que discute ações e práticas a serem desenvolvidas nas escolas médicas. Ela própria promove um consistente congresso de âmbito nacional, já tendo realizado seis edições, sempre a cada dois anos. Nos congressos do CFM ocorrem oficinas de literatura, música e cinema, entre outras atividades de cunho humanístico. A FBAM, através de colóquios acadêmicos, tem colocado também os temas citados na pauta de seus eventos. Num deles, ocorrido em 2016, na cidade de Belo Horizonte, a comissão organizadora programou para a abertura do evento a exibição seguida de debate do filme O físico (uma tradução duvidosa do título do filme original: Der Medicus, no alemão, e The Physician, no inglês), baseado no romance homônimo do escritor norte-americano Noah Gordon. Tive o privilégio de ser um dos debatedores e ter a oportunidade de vislumbrar práticas hoje remotas, mas utilizadas em longínquas eras.

O filme é emblemático, e sua trama se passa inicialmente na Inglaterra, na virada do século X para o século XI. Ainda criança, Rob Cole (Tom Payne) vê sua mãe morrer em decorrência da “doença do lado” (nada mais do que um caso de apendicite). Ele cresce sob os cuidados de um barbeiro (e charlatão), que promete curar doenças. Adulto jovem, Rob acumula todos os conhecimentos do “curandeiro” sobre como cuidar de pessoas doentes (menos as trapalhadas), mas sonha em saber mais. Faz então uma longa e penosa viagem rumo à Ásia para conhecer e estudar com Ibn Sina, ou Avicena, como ficou mais conhecido no Ocidente, o “Príncipe dos Clínicos”, que viveu entre 980 e 1037, considerado ainda como o verdadeiro intérprete de Galeno. O filme, que pode ser encontrado com facilidade nas lojas especializadas e na internet, deixa-nos uma bela mensagem de persistência, determinação e humanismo médico.

Chamou-me especialmente a atenção, de uma forma muito expressiva, as cenas de narrativas: quando a moça lê uma história para acalmar o pequeno doente febril e fazê-lo dormir, e quando ela mesma, doente, ouve histórias contadas por seu médico. Parece-me isso algo importante: a medicina narrativa que cura, as histórias dos pacientes que temos de escutar, com paciência e calma, porque são terapêuticas.

Outro ponto alto do filme é mostrar cenas dos ensinamentos de Avicena, reunidos num dos compêndios mais importantes da história da medicina, chamado Cânone de Medicina, que o jovem aprendiz termina levando para o Ocidente. As aulas no anfiteatro, ao ar livre, evocam os princípios humanísticos da medicina, com a arte em primeiro lugar, os estudos de música e outras manifestações artísticas. Esses médicos admiravam a cultura helênica, absorvendo os ensinamentos de Aristóteles, Hipócrates e Galeno, entre outros. Nenhum era só médico; a medicina era uma parte do seu saber, distribuído entre a música, filosofia, matemática e astronomia.

Momento marcante do filme é o aparecimento da peste negra, ou peste bubônica. Acredita-se que um terço da população mundial da época tenha morrido pela ação da epidemia. O terror vivido diariamente em cada cidade, sob o espectro da morte inevitável, trouxe o reino do caos, o desaparecimento das leis e da ordem. Os curiosos no tema podem ler o testemunho de Giovanni Boccaccio, sobrevivente da peste negra na Europa, em seu clássico Decameron, que faz uma descrição dramática do acontecimento.

Considerei expressiva a cena em que Cole fica desolado por tantas mortes causadas pela peste negra. Ele olha para a quantidade de mortos e a quantidade de sobreviventes à doença e não se conforma. Até que enfim consegue parar a contaminação, mas, entre os que já estavam doentes, pouquíssimos sobrevivem. Em total tristeza, ele desabafa com seu mentor, demonstrando o quanto se sentia fracassado por não conseguir salvar a todos. Avicena então vira para Cole e fala: “Sucesso entre muitos fracassos é um fardo que devemos carregar quando escolhemos isso”.

Na Idade Média, era proibida a dissecção de cadáveres humanos, por determinação da Igreja, que considerava tal prática um pecado, por desrespeitar o homem. Cabe ao jovem Rob Cole quebrar esse dogma, na calada da noite, pondo em cheque conceitos até então vigentes. Com esses estudos, ele chega ao diagnóstico da causa da “doença do lado”, que afligira sua mãe quando ele ainda era jovem, levando-a ao óbito: a apendicite, que leva à gangrena e à morte se não for feita uma intervenção de urgência.

A explicação para o título do filme em português, O físico, está no fato de que, na Idade Média, não existia a palavra “médico” como conhecemos hoje, de modo que deve ter parecido mais sensato ao tradutor manter a lógica do passado, livrando-o assim de um maior assédio dos críticos de cinema!

Como nos diz sabiamente o colega Heitor Rosa, no capítulo “A medicina na Idade Média”, do livro Seara de Asclépio: uma visão diacrônica da medicina, organizado pelos confrades Joffre Marcondes de Rezende (in memoriam), Vardeli Alves de Moraes e Gil Eduardo Perini: “Ao contrário do imaginário popular, a chamada Idade Média não foi um período obscurantista nem idade das trevas! […] O estudo da Idade Média leva-nos a reflexões sobre o esforço do homem para progredir e o grande legado para os séculos posteriores, como a criação de universidades que até hoje mantêm o seu prestígio ou as grandes obras de engenharia como as catedrais e pontes que desafiam o tempo”.

Vemos, em O Físico, fatos acontecidos há quase mil anos, e por isso podemos sentir a tentação de sorrir ou desdenhar da ingenuidade da época, se comparada a nosso tempo. Mas, se pensamos assim, o que pensarão de nós os habitantes do ano de 3020? Seremos vistos como primitivos?

Gostaria de deixar como reflexão para as pessoas do nosso tempo como é importante renovar práticas humanísticas na formação médica e voltar a discutir a história, a filosofia, as artes, a música e a literatura na prática médica, na busca incessante de retomar a relação médico-paciente com base no amor e na fraternidade.

 

 

*é médico, jornalista, memorialista e escritor. É membro da Academia Sergipana de Letras, onde ocupa a Cadeira 36, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e a Associação Sergipana de Imprensa. Membro da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina. É coautor do Dicionário Biográfico de Médicos de Sergipe, organizador de três antologias de contos e poesias da SOBRAMES Sergipe – VIDA, HUMANIDADES e SENTIDOS. Organizador do livro GOL DE PLACA e autor de abas de livros dos escritores Ana Medina Fontes ( Perfil Biográfico de Dr. Valmir Fontes), Lilian Rocha (Antes da Escuridão) e Antônio Carlos Sobral Sousa (Entrelinhas da minha vida)