Por que ensinar Humanidades em Medicina


//Josimário Silva*

Introdução

Como observador social contextualizado em um momento histórico da civilização humana, em que há uma crise de valores bastante acentuada, pensar a formação médica sob a luz do humanismo é um grande desafio. Em uma sociedade fluida em que, de acordo com Bauman (2009), os valores se pulverizam e são altamente voláteis, o educador deve estar preparado para implantar modelos didático-pedagógicos que atendam às necessidades dos discentes e ao mesmo tempo desencadeie no aluno reflexões acerca das responsabilidades em relação ao outro e à sociedade em que vivem. Ensinar é uma arte esculpida pela a capacidade humana que tem como mira formar cidadãos conscientes de seu papel social em um mundo plural eivado de vulnerabilidade.

Going to Work | Laurence Stephen Lowry | The Lowry Collection, Salford

Ensinar Humanidades

Na sociedade cosmética e fluida, o imediatismo se tornou a moeda de troca para as relações humanas. O grau de exigência por resultados se tornou estéril e regimentar. Estamos o tempo todo buscando resultados. Busca-se o certo a toda hora. Para atender essa necessidade pedagógica, implantam-se modelos formativos cartesiano, ensinando aos nossos discentes a conseguir sempre os melhores resultados, que é o modelo da medicina baseado em evidências.

No outro lado, há uma sociedade de direitos, e a relação paternalista médico / paciente começa a ser desenhada no escopo da autonomia do paciente. Com isso, surge a judicialização, medicina defensiva e da indústria do dano. Surge a medicina protetiva, que é necessária, mas cuja consequência é a perda no foco da medicina humanista, ou seja, a medicina fundada nos pilares da dignidade da pessoa humana. A tecnologia se instalou na ação médica humana, tornando-se a medicina da doença. O inimigo a ser vencido é a doença a todo custo, afastando à morte de qualquer tentativa de aproximação. O doente refém dos guide line e protocolos tornam-se apenas “pacientes” vítimas da doença, e como na vida real, para a vítima não há proteção.

É preciso ensinar aos nossos alunos a pensar.  No livro “Eichaman em Jerusalém”, Hannah Arendt (1996) destaca que a capacidade de pensar é uma faculdade vital, que sem ela a banalidade do mal se perpetua e rouba do tomador de decisões a sensibilidade e a percepção tão necessária para apreender o outro ser humano na sua singularidade e dignidade.

Para Paulo Freire (1996), ensinar é um convite ao diálogo que, enquanto tal, só existe se estivermos “desarmados” de nossos dogmas e abertos à investigação, o que implica em ouvir e em dizer sua palavra. O rompimento com o modelo tradicional do ensino unidirecional instaura os questionamentos pela dúvida. Não há espaço para os dogmas inquestionáveis. Não há espaço para a visão engessada do certo ou do errado, em uma visão dualista, como se o mundo pudesse ser observado apenas sobre esses dois contextos.

Ao ensinar as humanidades na medicina, estamos ensejando verdadeira reflexão sobre questões éticas tão transdisciplinares e tão multiculturais que envolvem situações de vida e que são “os alicerces concretos de nossos códigos morais e de nossa conduta” (CAMARGO, 2009).

Conclusões

Os novos problemas éticos advindos das fronteiras alargadas da ciência e da tecnologia médica fizeram surgir inúmeros questionamentos sobre limites da atuação profissional, direitos dos pacientes, recursos limitados para as novas demandas, direitos de escolha, dentre tantos outros problemas éticos que surgem a cada dia.

Urge que o doente deixe de ser visto apenas como uma estrutura orgânica alterada e desvinculado da sua essência humana: os seus valores.

 

*Pós Doutor em Bioética / Centro Universitário São Camilo; Professor do Departamento de Cirurgia do Curso Médico da Universidade Federal de Pernambuco.

 

Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Cia das Letras. 1999.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

CAMARGO M. C. Z. A. O ensino da ética médica e o horizonte da bioética. Campinas: Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, 2009.