Ditames da consciência e o dever de cuidar


A objeção de consciência é um direito humano previsto no direito internacional, na Constituição Federal, no Código de Ética Médica, em normas técnicas do Poder Executivo e em jurisprudências de tribunais brasileiros. Mas o exercício desse direito na assistência à saúde pode ser motivo de impasse entre médicos, pacientes e estabelecimentos de saúde.

//Ana Isabel de Aquino Corrêa

Aborto de feto anencéfalo ou em casos de estupro, reprodução assistida de casais homoafetivos, realização de procedimentos para tratamento da transexualidade, além das pesquisas com seres humanos. São muitas as situações na medicina em que os profissionais podem se ver obrigados a praticar atos contrários às suas convicções morais, éticas e religiosas. A objeção de consciência é um direito humano previsto no direito internacional, na Constituição Federal, no Código de Ética Médica, em normas técnicas do Poder Executivo e em jurisprudências de tribunais brasileiros. Mas o exercício desse direito na assistência à saúde pode ser motivo de impasse entre médicos, pacientes e estabelecimentos de saúde. Nesses momentos, há que se buscar uma solução de consenso para que o direito de um não impeça o do outro, e a solução possa vir de forma justa, legal e equilibrada.

O exercício da prerrogativa garantida ao médico de se negar a obedecer a uma norma emanada pelo Estado, quando entender que o ato fere sua opinião ou sua autonomia, é defendido em todo o mundo. No âmbito das Nações Unidas (ONU), está expressa no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, segundo o qual: “toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião (…) e de manifestar a sua religião ou crença”. Aprovado em 1966, o documento constitui um acordo de amplitude mundial.

A realização do aborto juridicamente permitido – nos casos de violência sexual, de fetos anencéfalos ou risco de vida para a gestante – é um dos temas mais controversos e complexos do ponto de vista social e um dos exemplos mais comuns de exercício da objeção de consciência. Mas além desse procedimento, temos vários outros na prática médica, como a reprodução assistida de casais homoafetivos e pessoas solteiras, e a cirurgia de transgenitalização e tratamento hormonal para pacientes transexuais – todos estes potenciais alvos de polêmicas, discriminação ou contestação religiosa.

No Brasil, aspectos do pacto das Nações Unidas estão na Constituição Federal, título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais. O artigo 5º assegura que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política” e que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

A proteção à escusa de consciência no País é comparável à garantia oferecida mundialmente, “na medida em que a Constituição Federal em vigor inclui entre os direitos e garantias fundamentais a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença”, avalia o advogado especialista em Direito Constitucional, Acelino de Carvalho.

Em âmbito internacional, além dos mecanismos da ONU, temos como exemplo a conduta na Europa. O Conselho Europeu – uma das organizações de cooperação política mais importantes do continente, com notória vocação para a defesa dos Direitos Humanos – aprovou em 2010 uma resolução que trata sobre o direito à objeção de consciência na prestação de cuidados de saúde garantidos por lei (Resolução 1.763/2010: “The right to conscientious objection in lawful medical care”).

Segundo a diretriz, “nenhum hospital, entidade jurídica ou pessoa pode ser objeto de pressões, ser responsabilizado, forçado ou sofrer discriminações de tipo algum por ter se recusado a ser sede, executar ou ajudar uma interrupção de gravidez, um aborto espontâneo induzido, um ato eutanásico, ou qualquer outra ação que possa causar a morte de um feto ou de um embrião, sejam quais forem as razões”.

Até a aprovação desse documento, não existia qualquer previsão de objeção de consciência a nível institucional na União Europeia, apenas individual. A divulgação do texto gerou controvérsias devido ao forte interesse social que envolve a questão. Algumas críticas assentam-se no argumento de que o uso abusivo da objeção de consciência – ainda mais institucionalizada –, somado a outras condutas, como períodos obrigatórios de espera e o aconselhamento tendencioso, perpetuaria barreiras ao atendimento de mulheres. Hoje, no entanto, a resolução representa um relevante ato de orientação para os países-membros.

Apesar da previsão constitucional e no direito internacional, a escusa de consciência na prática médica no Brasil carece de regulamentação. A questão é levantada por Aline Albuquerque Sant’ana de Oliveira, advogada da União e doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília (UnB).

Também professora da Pós-Graduação em Bioética da UnB e pós-doutora em Direitos Humanos à Saúde pela Emory University (EUA), Aline Albuquerque pondera: “não há uma lei específica que regulamente a forma como os médicos vão exercer esse direito. O que nós temos no Brasil é o Código de Ética Médica”, aponta (saiba mais nos próximos parágrafos).

Excluídas as situações consagradas como casos de urgência e emergência, quando o médico tem o dever de agir, profissionais e pacientes se veem muitas vezes diante de um impasse. É aí que entram em conflito deveres públicos e direitos individuais, quando o dispositivo da objeção de consciência é acionado para proteger a moral privada do indivíduo.

A melhor solução, ao que indica a análise dos diversos especialistas ouvidos, como mostraremos em outros textos, pode ser mesmo a busca do equilíbrio para que os médicos possam preservar o direito de não cometer atos que agridam à própria consciência, e os pacientes tenham garantido o direito à saúde, sem discriminação.

A imagem que ilustra esta matéria é a escultura Le Penseur (“O Pensador”), de Auguste Rodin, que retrata o homem como sujeito do seu próprio pensamento. A peça foi concebida como uma representação da obra “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Hoje tem sua interpretação amplificada como a simbolização da força do pensamento e do raciocínio. Retrata uma pessoa em profunda reflexão, cuja meditação concentra-se em si mesmo, ante a tomada de uma decisão.

Legislação protege o direito de crença

O direito à saúde, garantido pelo Estado, mediante políticas que visem ao acesso universal e igualitário, é uma previsão da Constituição Federal, inscrita no artigo 196, no capítulo que trata sobre a seguridade social. Ao atendimento igualitário à saúde da população previsto na Carta Magna, soma-se o artigo 5º, que dentre os direitos e garantias fundamentais determina: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença”.

Além dessa garantia, há outro inciso do artigo que complementa a determinação: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. São normas que estão entre as principais diretrizes legais, técnicas e administrativas sobre o tema.

O ordenamento jurídico brasileiro ratifica uma norma do direito internacional de recusa ao cumprimento dos deveres incompatíveis com as convicções morais, políticas e filosóficas. A previsão está na Declaração Universal dos Direitos Humanos – proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas –, que caracteriza a autonomia da razão e da consciência como direito fundamental, com a menção no artigo I: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

No documento, o direito à liberdade de consciência é assegurado também no artigo XVIII: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de (…) manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, (…) isolada ou coletivamente, em público ou em particular”.

A prerrogativa internacional encontra abrigo na Constituição Federal e, segundo o especialista em Direito Constitucional Acelino de Carvalho, o direito também está disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto d e San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 678, de 1992. A determinação consagra a liberdade de consciência e religião.

COM A PALAVRA, O CÓDIGO DOS MÉDICOS

O direito à objeção não é regulamentado por lei na atividade médica no Brasil, conforme aponta a advogada da União e professora da UnB, Aline Albuquerque, mas há dispositivos do Executivo e outros aprovados por conselhos profissionais que definem na prática a aplicação desse direito, como o Código de Ética Médica (CEM).

O inciso VII dos Princípios Fundamentais do CEM dispõe sobre a prerrogativa: “O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência”.

Contudo, o direito à objeção de consciência na prática médica não é uma prerrogativa absoluta. Prevalece o entendimento de que essa objeção não é permitida nas situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

A médica pediatra professora das Faculdades de Direito e de Medicina na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Maria Elisa Villas-Bôas, analisa a incoerência na negativa do médico em realizar o ato em um caso de urgência, em contradição à própria missão assumida pelo médico.

“Ele está ali como profissional. Indiscutivelmente, durante o exercício de sua atividade. Não há como ele deixar de atender por força de objeção de consciência se com isso colocar em risco a vida do paciente e ficar em paz com a própria consciência, sabendo que isso ocasionaria a morte de quem vem procurá-lo”, diz.

NORMA DO MINISTÉRIO

Entre as situações mais comuns para alegação de objeção de consciência por parte do médico estão os casos de aborto. Os aspectos que normatizam o tema estão entre os itens abordados na Norma Técnica para Atenção Humanizada ao Abortamento.

Reeditado pelo Ministério da Saúde em 2011, o documento foi instituído para dar apoio aos profissionais da área da saúde, com orientações para atenção e atendimento às mulheres em processo de abortamento que buscam os serviços públicos.

A diretriz traz orientações sobre Código Penal, doutrina e jurisprudência e informa a inimputabilidade do abortamento praticado por médico quando “não há outro meio de salvar a vida da mulher” ou quando “a gravidez é resultante de estupro (ou outra forma de violência sexual), com o consentimento da mulher ou, se incapaz, de seu representante legal”. Aponta ainda que a jurisprudência brasileira tem autorizado a interrupção de gravidez nos casos de malformação fetal com inviabilidade de vida extrauterina, com o consentimento da mulher.

A norma também preconiza que, segundo o CEM, não cabe objeção de consciência em caso de necessidade de abortamento por risco de vida para a mulher; em qualquer situação de abortamento juridicamente permitido, na ausência de outro médico que o faça e quando a mulher puder sofrer danos ou agravos à saúde em razão da omissão do médico; no atendimento de complicações derivadas de abortamento inseguro, por se tratarem de casos de urgência.

Bioética em jogo

Muitas vezes, o dispositivo da objeção de consciência é acionado em situações traumatizantes ou delicadas para pacientes. Um dos casos com grande relevância são as solicitações de aborto por estupro – bem como em outros casos de aborto legal. Também estão no rol de procedimentos que podem despertar controvérsias morais e religiosas a cirurgia de redesignação sexual e a prescrição de tratamento com terapia hormonal para pacientes transexuais, pesquisas com seres humanos, reprodução assistida e uma série de outras situações presentes na prática médica. É possível buscar o equilíbrio para que a proteção da integridade do médico não acarrete a obstrução do direito à saúde para alguns pacientes?

O exercício da objeção de consciência na prática da saúde pode representar um dos campos mais críticos da experiência humana, envolvendo, de um lado, médicos diante de um conflito moral e, de outro, pacientes em situações de franca vulnerabilidade. Como uma das situações mais comuns de ocorrência desses conflitos, podemos citar o aborto, que, mesmo os casos legalmente amparados, suscitam dilemas morais e éticos. A abordagem médica nesses casos não está imune à influência de um complexo e profundo conjunto de aspectos legais, morais, religiosos, sociais e culturais que repercutem na relação médico-paciente.

Para a professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Débora Diniz, apesar das orientações baseadas em referenciais éticos, legais e bioéticos previstos em documentos como as Normas Técnicas de Atenção Humanizada ao Abortamento ou de Atenção às Mulheres com Gestação de Anencéfalos, publicadas pelo Ministério da Saúde (nas situações juridicamente permitidas, o procedimento pode ser realizado em todos os estabelecimentos do Sistema Único de Saúde que possuam serviço de obstetrícia), as mulheres podem ter dificuldades para exercer esse direito.

BARREIRAS AO ATENDIMENTO

A antropóloga esteve à frente de pesquisas que apontaram que os serviços de referência para o abortamento muitas vezes criam barreiras, dificultando a prestação do atendimento, com a imposição de dificuldades burocráticas, como a exigência de documentos, visitas e laudos não previstos na política pública. “As equipes fazem esse aumento de burocracia por ignorância das normas técnicas do Ministério da Saúde ou por assumirem indevidamente para si a tarefa de regulamentar a assistência de saúde”, denuncia.

De acordo com a pesquisadora, as equipes de saúde alegam se sentirem mais seguras sobre a veracidade da palavra da mulher ao terem acesso ao documento. “Ora, essa é uma barreira cruel às mulheres. Uma mulher violentada está sofrida, tem medo, experimenta uma dor solitária. Ao invés de chegar ao serviço de saúde e ser cuidada, sua história é objeto de dúvida. Seu atendimento passa a ser condicionado ao escrutínio policial. É, na verdade, uma submissão desnecessária da autoridade médica à vigilância policial. E por quê? Pela moral de perseguição aos poucos médicos solidários às mulheres que enfrentam o estigma do aborto”, relata Diniz.

Para o advogado especialista em Direito Constitucional e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Acelino de Carvalho, a análise da objeção de consciência é emblemática em casos de aborto porque “esta prática, em tese, foge ao compromisso do profissional de defender a vida”. Para ele, a objeção de consciência é consectária da liberdade de consciência e de crença, e visa protegê-las. “Em virtude disso, a tese da total incompatibilidade entre a proteção do direito à integridade moral do médico e o direito à saúde da mulher, defendida no âmbito da bioética, é juridicamente insustentável. E aqui não cabe o argumento da laicidade do Estado: quando tal princípio se afirma nas sociedades modernas, as regras religiosas deixam de incidir na forma da organização política, e a religião, posta a salvo desta última, torna-se objeto de tutelada jurídica, sendo, doravante, considerada como um direito fundamental”, defende.

Também relacionada aos direitos sexuais e reprodutivos, podemos citar outra circunstância em que o direito à objeção de consciência pode ser exercido: a reprodução medicamente assistida. Previstas em resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), as normas éticas que regem as técnicas permitem o uso por casais homoafetivos. As orientações levam em consideração decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2011, quando foi reconhecida como entidade familiar a união estável homoafetiva. A diretriz do CFM destaca que “é permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico”.

Outra questão controversa relativa à sexualidade são os procedimentos de cirurgia de redesignação sexual e a prescrição de tratamento com terapia hormonal para travestis e transexuais desde a infância. Diretriz do CFM aprovada em 2013 (Parecer 8/13) orienta as normas éticas para desenvolvimento e abordagem terapêutica dos transtornos de identidade de gênero da criança, do adolescente e do adulto. O documento também pontua, entre as considerações éticas, a permissão para que o médico se recuse a realizar o procedimento por objeção de consciência.

Sobre esses casos, a advogada da União e doutora em Ciências da Saúde pela UnB, Aline Albuquerque Sant’ana de Oliveira, recomenda prudência aos profissionais. “Quando expressar a objeção, deve fazê-lo com cautela, porque o médico não pode tornar a expressão da sua objeção um ato discriminatório e deixar o paciente se sentindo discriminado”.

TESTAMENTO VITAL

Até mesmo a prerrogativa do paciente de definir os limites terapêuticos a serem adotados em uma fase terminal (prevista na Resolução CFM 1.995/2012) pode trazer interferências à atuação do médico. Pacientes em estado terminal podem se manifestar sobre os cuidados e tratamentos que querem, ou não, receber no momento em que estiverem incapacitados de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

Conhecido como testamento vital, o desejo do paciente, manifestado por uma declaração prévia de vontade, deve sempre ser cumprido, alerta Luciana Dadalto, autora de livros e artigos científicos sobre o tema no Brasil. “O paciente nunca poderá ter sua declaração prévia de vontade descumprida in totum, ou seja, deve haver algum médico para cumpri-la. Se o médico que está atendendo o paciente exercer sua objeção de consciência, deve encaminhar o paciente para outro colega”, sugere Dadalto, que também é Doutora em Ciências da Saúde pela faculdade de Medicina da UFMG e mestre em Direito Privado pela PUC Minas.

Quando há impasse, a pediatra e doutora em Direito Público Maria Elisa Villas-Bôas propõe uma solução de harmonia: “A questão é equilibrar os direitos, de modo que o reconhecido direito de um não anule completamente o do outro nem gere discriminações contra qualquer das partes, seja o médico que tem sua liberdade religiosa e sua formação moral própria, seja o paciente que não professa aquela religião e busca um direito legalmente conhecido”.

Para saber mais informações sobre o testamento vital, médicos e pacientes contam com um portal na internet que trata exclusivamente sobre o tema. A página eletrônica <www.testamentovital.com.br> foi criada para ser uma fonte de informações para leigos, estudantes e profissionais do direito e da saúde.

Fonte: Revista Medicina ED. 5 MAI/AGO 2014 P. 28