O tecer da cura


// Rejane Medeiros

A medicina busca o bem estar do paciente aliando-se à ciência para procurar a razão exata das doenças e a melhor forma de enfrentá-las. Mas, entre a enfermidade e o médico, há um ser humano, que precisa ser ouvido e respeitado. O avanço da tecnologia está tornando os médicos propensos a esquecer o ser humano que há entre a doença e seu possível antídoto? Para desafiar essa tendência, a médica norteamericana Rita Charon propôs a metodologia Narrativas Médicas, em que os profissionais de saúde são instados a ler obras literárias, escrever o que sentem e buscar conhecer as histórias de seus pacientes. Afinal, como a arte pode atuar como um instrumento de humanização e fortalecimento de vínculos?

“O Senhor ECS era diabético e hipertenso. Sofreu um AVCI e teve uma excelente evolução. Não apresentou depressão e retornava sempre muito animado, querendo continuar com as sessões de fisioterapia. No entanto, não aderia ao tratamento de diabetes. Após algumas consultas e percebendo minha disposição em ajudá-lo, confessou: ‘prefiro morrer a parar de tomar cerveja diariamente com meus amigos do dominó.’ Sem criticar sua crença, negociei com o paciente afirmando que ele até poderia continuar com sua cerveja, desde que não deixasse de tomar a metformina. Assim, ele acabou aderindo ao tratamento e teve sua glicemia regularizada”.

Essa é uma das várias histórias contadas pela médica Maria Auxiliadora de Benedetto, no artigo “Entre dois continentes: literatura e narrativas humanizando médicos e pacientes”, em que ela relata experiências vividas por ela ou pelos participantes do estágio supervisionado oferecido pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família (Sobramfa).

Com seus exemplos, ela mostra que ouvir o paciente é o melhor caminho a ser usado pelo médico na sua missão de cuidar. Assim como vários profissionais, Dora Benedetto defende a humanização da prática médica, a medicina centrada na pessoa e uma relação mais próxima entre médico e paciente.

A mesma defesa é feita por Rita Charon, no artigo “Medicina Narrativa: um modelo de empatia, reflexão, profissionalismo e confiança”. “Apesar do progresso tecnológico, os médicos não têm a capacidade de reconhecer os males de seus pacientes”, critica a médica norte-americana. Ela defende que junto com o conhecimento científico, os médicos precisam desenvolver a capacidade de ouvir e entender os pacientes.

O coordenador do Laboratório de Humanidades (LabHum) e diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Universidade Federal de São Paulo, Dante Gallian,
também defende que os médicos voltem a ouvir seus pacientes. “O médico não consegue tirar uma história do paciente. O resultado é uma medicina hiperespecializada, cada vez mais cara, baseada em exames complementares, quando 80% dos problemas poderiam ser resolvidos com uma boa anamnese e um bom exame físico”, argumenta.

“O ideal é que o médico use os avanços científicos, sem esquecer os valores humanos do paciente. Una a tecnologia com uma ação humanitária e humanista”, ensina o conselheiro e coordenador da Comissão de Humanidades Médicas do CFM, Henrique Batista e Silva, que foi professor da Universidade Federal de Sergipe de 1972 a 2004. Nesses mais de 30 anos em sala de aula, ele percebeu uma mudança no perfil dos formandos.“Hoje os alunos estão mais interessados em diagnósticos baseados em evidências científicas, deixando em segundo plano o exame físico, as narrativas e as histórias do paciente”, constata.

Henrique Silva reconhece que a atração exercida pela tecnologia é arrebatadora. “É como se fosse algo impactante, grandioso e belo, pelo qual você fica fascinado. Eu mesmo passei a ter uma
preocupação mais humanista quando comecei a dar disciplinas de conteúdo humanístico, como história e ética da medicina e tive de me debruçar sobre os valores estruturantes do ser
humano, culminando com a dignidade médica” exemplifica.

Mas, como promover essa humanização? A empatia pode ser ensinada? Diversos médicos já se concentraram nessa questão e dão algumas pistas. O Programa de Medicinas Narrativas, na Universidade de Columbia, criado por Rita Charon em 2000, leva os participantes a refletirem sobre textos previamente definidos. O curso também estimula estudantes a escreverem sobre o que sentem nos momentos de atendimento. Rita Charon admite que o profissional de medicina procura se proteger das dores daqueles que são tratados. O antídoto, no entanto, é o contrário da fuga e da frieza.

“O pouco envolvimento dos médicos com seus pacientes é uma estratégia defensiva. Pensam: se eu for frio, objetivo e distante não terei de sofrer. Isso é verdade, mas o que eles não sabem é
que não recebem nenhuma alegria e é por isso que sentem burnout (caracterizado por exaustão emocional, esvaziamento afetivo, despersonalização etc.) e um vazio por dentro. Isto porque não têm a ligação necessária para saber que a sua presença tem significado na vida de um doente e que são uma presença estável e muscular”, argumentou Rita Charon, em entrevista ao jornal português Notícias Médicas.

 

O CURSO QUE DESUMANIZA

Pesquisa do professor da universidade americana Thomas Jefferson Mohammadreza Hojat mostra que o nível de empatia dos estudantes demedicina decai no decorrer no curso. No artigo The devil is in the third year: a longitudinal study of erosion of empathy in medical school, publicado, em 2009, na revista Academic Medicine, o psicólogo afirma que o terceiro ano se configura como o período em que os níveis de empatia dos estudantes começam a decrescer. Para chegar a essa conclusão, o pesquisador norte-americano usou a Escala Jefferson de Empatia Médica, que ele ajudou a formatar nos anos 1990.

A vivência de sala de aula do conselheiro do CFM, Henrique Silva, confirma o que os americanos mensuraram em números. “Os estudantes entram no curso com uma visão humanitária e holística do paciente, a qual vai sendo suplantada pelas aulas em que predominam o racionalismo cartesiano e o avanço tecnológico. No início predomina a vontade de ajudar quem está sofrendo, sendo a medicina uma vocação e uma espécie de sacerdócio.”

Nas aulas de anatomia há o primeiro impacto pois o homem passa a ser visto unicamente como corpo, com seus músculos, tendões, vasos e sangue. Em fisiopatologia, o deslumbramento com o belo intrincado das funções corporais muda de tom. É quando o estudante aprende que esse corpo tem partes doentes a serem tratadas e passa a perder a visão holística, dando lugar a outra, fragmentada e biométrica.

“Começa aí o fascínio pela tecnologia. Ele [o estudante] descobre que pode curar um corpo doente usando os equipamentos e a farmacopeia correta. Ele passa a se afastar dos dogmas que tinha até então, inclusive os éticos e religiosos. É um poder muito forte e o estudante passa a confiar mais nos aparelhos e exames diagnósticos do que na anamnese”, conta Henrique Silva, que enfatiza: “O racionalismo cartesiano se sobrepõe à concepção humanitária e holística inicial”.

Para a presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), Jadete Lampert, um dos problemas dos currículos das escolas médicas é a pouca carga horária dedicada à semiologia, disciplina na qual o aluno aprende a interagir com o paciente, a fazer o diagnóstico e o encaminhamento. “Há um excesso de carga horária, por exemplo, em cirurgia, quando a semiologia médica é
vista uma vez, no meio do curso, e depois é quase abandonada”, critica.

Jadete defende uma mudança nos currículos de medicina, que seriam mais centrados na construção do conhecimento e não na memorização. O excesso de cursos de medicina, que passaram de 83, em 1990, para 202, em 2013, é um empecilho para que haja essa mudança. “Temos um problema de capacitação, pois não há como formar tantos professores dentro dessa perspectiva mais
contemporânea, de humanização e construção do saber”, argumenta.

Dora Benedetto também concorda que há uma desumanização do estudante de medicina no decorrer do curso. “Pesquisas mostram que os estudantes da área de saúde começam o curso com um nível de empatia bom, mas no último ano, esse nível é menor”, explica.

Ela defende que os formandos sejam incentivados a expressarem seus sentimentos, mas destaca que o distanciamento em relação ao paciente tem sido preponderante no decorrer do curso. “Soube de alunos do terceiro ano que faziam apostas para ver quem atendia os pacientes com menos palavras”, critica. Na avaliação da médica, os jovens médicos, como forma de proteção, tentam se distanciar dos pacientes. “Mas a nossa profissão trata com emoções e não podemos fugir delas”, avalia.

 

EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS

No Brasil, algumas universidades têm oferecido disciplinas eletivas com o objetivo de debater textos literários e o contexto em que eles se inserem na relação médico-paciente. Na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Laboratório de Humanidades (LabHum), do Centro de História e Filosofi a das Ciências da Saúde (CeHFi), oferece há nove anos uma disciplina em que essa discussão é feita. São duas turmas, elas se tornaram uma de graduação e outra, de pós. No segundo semestre de 2013, um dos livros debatidos foi Os irmãos Karamazov, de Fiodor Dostoiésvski, que deu a linha para a discussão do tema Mergulhando nas profundezas do humano.

Outro autor russo que é muito usado nesses cursos é Leon Tolstoi, principalmente o texto A morte de Ivan Ilitch, que relata o sofrimento de um juiz russo à beira da morte. “Esses são dois autores que trabalham bem as histórias de caos, de desespero; elas se tornam histórias de busca, em que os sofrimentos ou doenças podem ser uma oportunidade de aprendizado, daí porque são muito usados nos cursos”, resume Dora Benedetto.

Para o diretor do CeHFi e coordenador do LabHum, Dante Gallian, só é possível humanizar a partir da experiência estética, que pode ser literária ou outra forma de arte. “Não será um treinamento que tornará o médico mais humano, só a partir da arrebentação provocada pela arte é que alguém, anestesiado por uma formação tecnicista e desumana, pode começar a se sentir no lugar do outro”, argumenta Gallian.

Além de lerem e debaterem os textos, os participantes dos cursos são levados a escrever sobre o que sentiram. “Através de contos que aparentemente não têm nada a ver conosco, descobrimos a nós mesmos por entre as linhas, letras e páginas”, avalia Miriam Xavier, que participou do LabHum no primeiro semestre de 2012.

A atividade do LabHum foi tema de pesquisa realizada por Yuri Bittar e rendeu o artigo “A experiência estética da literatura como meio de humanização em saúde: o laboratório de Humanidades da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo”. Nele, são relatados depoimentos de participantes que se sentiram transformados com a experiência.

“A ciência te dá muitas informações, mas te consome, exige uma dedicação quase exclusiva, e há uma supervalorização desse lado técnico-científico, mas foram as humanidades que me salvaram de um naufrágio”, admitiu um dos entrevistados citados na pesquisa de Bittar.

“O médico está inserido em um trabalho perverso, desumanizador, no qual ele tem de atender centenas de pacientes em pouco tempo, com consultas cronometradas, mas a melhoria das condições de trabalho, por si só, não vai torná-lo mais humano, é preciso investir na formação humanística desse profissional”, argumenta Gallian.

Aluno do LabHum, o estudante Thiago Gomes, que no dia 20 de dezembro recebeu o diploma de médico formado pela Unifesp, é um entusiasta da metodologia aplicada. “A maior discussão que é feita hoje na nossa profissão é que ficamos reféns das habilidades técnicas. É possível sair dessa armadilha a partir do momento em que estabelecemos uma relação mais humana com
nossos pacientes”, raciocina.

As Narrativas Médicas também são incluídas no ementário de disciplinas como História da Medicina, ou oferecidas de forma eletiva. Faculdades de medicina do Espírito Santo e de alguns estados do Nordeste têm provocado essa discussão. A Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) também está buscando introduzir no currículo a
disciplina Literatura e Medicina.

 

ESCREVER SOBRE OS SENTIMENTOS

O curso prático oferecido pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família (Sobramfa) procura aplicar a metodologia denominada Medicina Baseada em Narrativas, na qual os estudantes são levados a escrever sobre o que sentiram durante os atendimentos e incentivados a ler obras literárias, cujos enredos sejam de alguma forma relacionados a temas médicos.

Nesses cursos, os estudantes acompanham profissionais de medicina da família em ambulatórios, visitas domiciliares, locais de cuidados paliativos e abrigos de idosos. Após o atendimento, são realizadas discussões em grupos, em que tanto o médico experiente, quanto os formados, falam sobre as histórias contadas pelos pacientes e suas próprias impressões. É realizada uma correlação entre os temas abordados nas obras literárias indicadas e os estudantes são incentivados a escrever o que sentiram.

Ao levar os estudantes a escreverem o que sentem, Dora Benedetto, que é a tutora de muitos dos cursos da Sobramfa, revela que há uma ojeriza inicial por parte deles. “Isto de ouvir os pacientes parece ser mais adequado a psicólogos e psiquiatras do que a médicos generalistas”, dizem alguns alunos. “Com o escasso tempo para a realização das atividades requeridas para o aprendizado da prática da medicina, a orientação para se prestar atenção aos pacientes e ouvi-los com atenção e empatia não seria uma perda de tempo e uma tarefa a mais a nos sobrecarregar? Como as narrativas podem contribuir com a prática clínica?”, questionam outros.

Esse receio inicial vai sendo diluído no decorrer do curso. “As histórias dos pacientes me permitem tratar, de forma especial, cada diabético ou hipertenso e não simplesmente tratar diabetes ou hipertensão”, escreveu um dos participantes do curso no encerramento do módulo. “Aplicar as narrativas como metodologia nos faz refletir sempre. Com reflexão, cada encontro com o paciente se transforma em um aprendizado. Compartilhar histórias nos ajuda a construir nossa profissão e nossas próprias vidas”, afirmam outros.

Há até quem sugira que o curso se torne obrigatório. Nas escolas médicas se começou a falar bastante sobre o humanismo, mas ainda não se estabeleceu uma conexão com a prática. “A utilização das narrativas e dos recursos literários pode fazer tal conexão”, recomendou um dos participantes do curso da Sociedade.

 

HUMANIZAR A MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS

O pneumologista escocês Archie Cochrane atuou em hospitais de campanha na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Guerra Mundial. A sua experiência no campo de batalha o levou a concluir que muitos dos tratamentos utilizados no tratamento de doenças respiratórias não tinham comprovação científi ca. A partir dessa constatação, Archie Cochrane passou a mobilizar a comunidade médica a adotar métodos científicos para o tratamento de doenças, lançando os fundamentos para a Medicina Baseada em Evidências (MEB). Os principais difusores dos preceitos do médico são os The Cochrane Collaboration, existentes em todo o mundo, inclusive no Brasil.

A MEB defende que o médico, ao prescrever um tratamento, tome a decisão baseado no maior número de informações disponíveis em artigos científicos sobre a doença. Também propõe linhas de condutas clínicas, o que resulta em uma padronização dos tratamentos. Para Dora Benedetto, é importante que além do conhecimento científico, o médico interprete o que o paciente tem a dizer. Ela destaca que é certo que a MEB oferece incontáveis vantagens e foi a responsável pela supressão de grande parte do sofrimento humano decorrente de enfermidades e traumatismos. Mas não podemos nos esquecer – diz – que as dimensões sutis e imponderáveis do ser humano influenciam a forma como ele adoece e interfere nos processos de cura.

“É preciso contemplar não apenas a doença (que seria algo igual para todos os pacientes), mas também a enfermidade (que é a forma como o indivíduo vivencia a doença),” defende Dora. Ela deixa claro não existir uma contestação ao MEB, mas sim a reafirmação da necessidade de se adequar as evidências científicas “ao paciente único que o médico tem diante de si”.

A presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), Jadete Lampert, tem o mesmo raciocínio. “É possível uma complementaridade entre a MEB e uma medicina centrada no paciente. O médico pode usar todo o conhecimento científico disponível no processo de diagnóstico da doença e, observando e respeitando as peculiaridades do paciente, prescrever o melhor tratamento”, argumenta.

 

Fonte: Revista Medicina ED. 3 SET/DEZ 2013 P.18